Não incidência do ISS sobre a atividade de produtoras e distribuidoras de conteúdo audiovisual: a relevância do REsp 1.308.628 para a indústria do audiovisual

Matheus dos Santos Buarque Eichler

Recentemente o STJ pacificou o entendimento sobre a não incidência do ISS sobre a atividade de produção, gravação e distribuição de conteúdo audiovisual. Abordam-se as discussões teóricas e implicações práticas do tema.

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo abordaremos as razões que justificam a não incidência do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (“ISSQN”) sobre a atividade de produtoras, partindo de uma visão geral do tributo e do histórico de indexações indevidas, passando a abordagem do STJ sobre o tema e finalizando com a abordagem dos efeitos práticos deste julgamento.

 

2. O ISS – PANORAMA GERAL

O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) é um tributo de competência municipal, que incide sobre a atividade de prestação de serviços, excetuadas as de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação, previsto no art. 156, da CFRB:

 

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”.

 

Por se tratar de norma constitucional de eficácia limitada, sua aplicabilidade dependeria da instituição de Lei Complementar, dotada de suficiente abstração e generalidade, consoante disposto na CFRB:

 

“Art. 146. Cabe à lei complementar:

 

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”;

 

Atendendo ao comando da CFRB, em 2003 foi promulgada a Lei Complementar nº. 116/03, que definindo em seu art. 1º o campo de incidência da norma, contemplando quais hipóteses de incidência seriam contempladas como fato gerador do tributo:

 

“Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador”.

 

Junto aos contornos das normas gerais contidas na LC 116/03 sobre o ISS, seu anexo trouxe também o rol taxativo das hipóteses de incidencia deste tributo. Por uma questão de segurança jurídica, a fim de se proteger o contribuinte, convencionou-se que a interpretação da norma de incidência deve ser feita de forma literal, não se permitindo o uso da interpretação analógica com a finalidade de se obter, pela via oblíqua, fatos geradores não pretendidos pelo legislador.

 

Tanto quanto a doutrina quanto a jurisprudência dos tribunais, vêm sedimentando os contornos, cada vez mais precisos, do Princípio da Taxatividade – um princípio de extrema importância para a garantia do devido processo legal na aplicação da legislação tributária. O Princípio da Taxatividade encontra fundamental legal nos §§ 1º e 2º, do art. 108, do CTN:

 

“Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:

§ 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.

 

 O Princípio da Taxatividade é um dos principais fundamentos na defesa de contribuintes em face de exações indevidas.O Fisco que, por vezes, persegue de forma cega o aumento da arrecadação, se valendo cada vez mais de recursos, digamos, apriorísticos, na aplicação e interpretação das condutas que ensejariam a incidência da norma tributária (fato gerador).

 

Quanto a taxatividade da lista anexa da LC 116/03. Aliomar Baleeiro (2003):

“A lista de serviços é TAXATIVA, não podendo ser ampliada por analogia, a teor do art. 97 do CTN ‘somente a lei pode estabelecer a instituição de tributos, ou a sua extinção’, e no art. 108 § 1º o CTN preceitua: ‘O emprego da anologia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei’. A obrigação tributária é ‘ex-lege’ e de caráter compulsório. A competência tributária dos Municípios atribuída pela Constituição Federal, para instituir ecobrar o ISS está limitada à Lista de Serviços que, em lei complementar, define quais as hipóteses, taxativamente, sujeitas ao imposto.”   


Como visto, Inexiste a possibilidade do Fisco ampliar o campo de incidência da norma sob o exclusivo e estéril emprego da analogia e equidade, elementos como base de cálculo e fato gerador não podem ser alterado com base no uso de recursos interpretativos de forma a prejudicar o contribuinte.

 

O antigo Decreto-Lei nº. 406/68 foi revogado em 2003 com o advento da Lei Complementar nº 116/03. Contudo, ao submeter a LC 116/03 a sanção presidencial, o Presidente Luis Inácio da Silva vetou alguns itens da referida lista, dentre eles o item 13.01 que previa de forma expressa a incidência do ISS sob “Produção, gravação, edição, legendagem e distribuição de filmes, vídeo-tapes, discos, fitas cassete, compact disc, digital video disc e congêneres”.

 

3 – DA COBRANÇA ABUSIVA DO ISS PELOS MUNICÍPIOS

 

  O uso da interpretação extensiva da legislação tributária não pode ser uma ferramenta cuja finalidade seja aplacar a sede arrecadatória do fisco, que, por vezes, parece não ter limites – chegando a desafiar a fé de um povo em suas leis. A luta pelo direito de não ser espoliado, ante a atuação desmedida, por vezes, ilegal e inconstitucional do Fisco é algo urgente num país cada vez mais incrédulo em suas instituições – o sentimento de impunidade e ilegalidade da máquina estatal deve ser duramente combatido.

Para tanto, cabe a intervenção do Poder Judiciário que deve primar pelo reequilíbrio das relações entre o fisco e os particulares, protegendo o contribuinte da espoliação estatal fundamentada sob o aparente império da legalidade – buscando a satisfação de justiça em todas as suas espécies, inclusive, tributária – pois, a justiça, deve ser o fim normal do direito.

 

Não obstante o veto ao item 13.01, os Municípios buscaram artifícios para continuar a exação do ISS em face das empresas que exerciam as atividades lá vetadas, ou seja: de produção, gravação e distribuição de filmes, destinadas ao comércio em geral ou ao atendimento de encomenda específica de terceiro – sob a alegação que a produção estaria abrangida pelo conceito de cinematografia constante no item 13.03 da lista da LC 116/03 (interpretação equivocada)

 

“13.03 – Fotografia e cinematografia, inclusive revelação, ampliação, cópia, reprodução, trucagem e congêneres”.

 

Com a publicação do veto presidencial ao item 13.01, as produtoras, que eram abrangidas pelo referido item, por interpretação da legislação tributária e do referido veto, passaram a não recolher mais o ISS, por entenderem que estariam excluídas com campo de incidência, o que posteriormente lhe rendeu inúmeros lançamentos ex officio penalidades.

 

Neste período, o Fisco Municipal teve por prática o uso de recursos interpretativos vagos, sobretudo, da analogia, ao argumento de que tais atividades estavam abrangidas pelo conceito de cinematografia previsto no item 13.03. A ânsia arrecadatória dos municípios, por vezes até desesperada não se justifica, devido a própria centralização trazida pela reforma tributária de 1988, que acarretou o aumento vertiginoso da arrecadação municipal.

 

A reforma tributária de 1988, promovida pela Constituição Federal, acarretou de forma surpreendente o aumento da arrecadação dos Municípios, que incorporam o movimento de descentralização de recursos tributários, nunca os municípios tiveram uma importância relativa tão elevada na administração pública nacional, como afirma José Roberto Rodrigues Afonso e Erika Amorim Araújo em A Capacidade de Gasto dos Municípios Brasileiros: Arrecadação Própria e Receita Disponível (2000; pág. 35):

 

“A receita própria municipal (não computadas as transferências recebidas) vem apresentando excelente desempenho nos últimos anos. Desde a promulgação da Constituição de 1988 até 2000, o volume de recursos próprios dos municípios elevou-se em cerca de R$ 12,2 bilhões, um acréscimo de aproximadamente 196%. Seu crescimento médio anual foi duas vezes mais rápido que o dos tributos estaduais e que o dos federais (ver Tabela 1). Em 2000, a receita tributária municipal atingiu um dos maiores níveis históricos: cerca de 1,7% do PIB, mais de R$ 18 bilhões anuais, montante que supera a principal transferência federal líquida, o Fundo de Participação Municipal (FPM), da ordem de R$ 13 bilhões”.

 

 A Analogia foi o principal recurso utilizado para fundamentar a exação indevida do fisco municipal em face das empresas que exerciam atividade de produção ou distribuição, tentando alterar até o significado das palavras. Novamente, com relação a tal recurso, mormente utilizado para saciar a sede arrecadatória do Município e de outros entes federativos, Claudio Carneiro (2011; pág.98):

“A analogia é técnica de integração, ou seja, trata-se de um recurso jurídico empregado diante de lacuna no ordenamento jurídico, o seu alcance ou sentido. Já a intepretação seja ela extensiva ou analógica, tem como objetivo extrair da norma o seu alcance e sentido, para então definir, com certeza, a sua extensão. Diferente da integração na interpretação existe uma norma a ser interpretada”.

 

Sobre o emprego da Analogia, Ricardo Lobo Torres em excelente artigo datado de 1991, intitulado “A Proibição de Analogia no Direito Tributário”, traça um panorama sobre a origem e as bases da proibição do uso de tal recurso:

 

"No Brasil predominou sempre a ideia da proibição de analogia desfavorável ao contribuinte. O princípio da legalidade (art. 153, §29, da CF), o princípio da reserva da lei na definição do fato gerador (art. 97 do CTN) e a regra expressa de que o "emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei" (art. 108, §1º do CTN) são claros na vedação da integração analógica. A doutrina em sua esmagadora maioria também se manifestou nesse sentido. Os juristras estrangeiros igualmente condenaram a analogia para a exigência de tributos. Na Alemanha essa era a opinião majoritária, que continuou a ser defendida, no âmbito da polêmica a que nos referimos antes, entre outros, por Kruse, Friauf e Friedrich"

 

Não obstante a proibição do uso da analogia encontrar abrigo na doutrina majoritária, ainda há estudiosos que defendem seu uso como forma de superação ao ranço positivista autoritário, que carrega em si uma “crença ingênua na tipicidade fechada” ou na rigidez dos sistemas jurídico tributários, com suas normas “hirtas e inflexíveis”, como afirma Ricardo Lobo Torres ao terminar seu supramencionado artigo. Contudo, advogamos no sentido de que o emprego da analogia deve ser proibido em casos que envolvam a discussão de elementos típicos como é o caso da delimitação do campo de incidência da norma jurídico-tributária,

 

Leis municipais e distritais não podem inovar ao ponto de criar fato gerador novo ou alterar a sua base de cálculo, sob pena de ser considerada inconstitucional. Como Leciona Roque Antônio Carrazza (2006; p. 33) as normas infraconstitucionais devem guardar perfeita harmonia com a norma ápice, a constituição:

“As norma subordinadas devem harmonizar-se com as superiores, sob pena de deixarem de ter validade, no ordenamento jurídico. Exemplificando: o decreto deve buscar fundamento jurídico de validade na lei, e esta, na Constituição. Se, eventualmente, o decreto contrariar a lei, estará fora da pirâmide, a ninguém podendo obrigar. O mesmo podemos dizer da lei, se em descompasso com a Constituição.”

 

O mesmo autor, já com relação a não incidência:

"A não-incidência é simplesmente a explicitação de uma situação que ontologicamente nunca esteve dentro da hipótese de incidência possível do tributo. Deveras, não há incidência quando não ocorre fato algum ou quando ocorre um fato tributariamente irrelevante, isto é, que não se ajusta (subsume) a nenhuma hipótese de incidência tributária”.

   Em virtude das exações abusivas realizadas pelos Municípios sob o uso abusivo da interpretação extensiva de um dos itens da lista anexa da LC 116/03, a questão foi submetida ao crivo do STJ, como veremos.

 

4 – A DISCUSSÃO NO STJ E A VITÓRIA DAS PRODUTORAS

 

Como afirma Eduardo Couture “O Direito é uma ciência que se aprende estudando, mas que se aplica pensando” – neste viés, é de extrema importância a compreensão de como ele vêm sendo aplicado, não como forma de conformação e sim de superação do pensamento jurídico vigente. Abordaremos neste capítulo o julgamento do Recurso Especial (REsp), subtítulo do presente artigo, rico na adoção da epistemologia, da hermenêutica e do uso de normas-regra e normas princípios, mas, sobretudo, na conjugação de postulados lógicos.

 

Em termos práticos, o REsp nº. 1.308.628/RS, também trouxe importantes fundamentos para a defesa dos interesses dos contribuintes no que diz respeito ao uso abusivo de recursos interpretativos pelo fisco. No referido julgado de Relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, da Primeira Turma do STJ concluiu-se sobre a não incidência do Imposto Sobre Serviços (ISS) nas atividades ligadas a produção e direção de obras audiovisuais, delineando, ao mesmo tempo, qual o correto sentido, conteúdo e alcance do comando legal trazido pela Lei 116/2006, rechaçando a atuação ilegal e abusiva do Fisco, como podemos verificar ab initio da transcrição abaixo:

 

“TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. LC 116/03. PRODUÇÃO DE FITAS E FILMES SOB ENCOMENDA. NÃO INCIDÊNCIA, EM FACE DE VETO DO ITEM 13.01 DA LISTA QUE PREVIA A TRIBUTAÇÃO DESSE SERVIÇO. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA PARA ENQUADRAMENTO COMO ATIVIDADE DE CINEMATOGRAFIA, PREVISTA NO ITEM 13.03. IMPOSSIBILIDADE. ATIVIDADES QUE, EMBORA RELACIONADAS, NÃO CORRESPONDEM À MESMA OBRIGAÇÃO DE FAZER. 1. Recurso especial que discute a incidência do ISS sobre a atividade de produção de filmes realizados sob encomenda à luz da LC 116/03. O acórdão recorrido, embora tenha afastado a incidência do tributo em face do item 13.01 (que previa expressamente tal atividade, mas foi vetado pela Presidência da República), manteve a tributação, mediante interpretação extensiva, com base no conceito de cinematografia, atividade prevista no item 13.03. 2. A partir da vigência da Lei Complementar 116/03, em face de veto presidencial em relação ao item 13.01, não mais existe previsão legal que ampare a incidência do ISS sobre a atividade de produção, gravação e distribuição de filmes, seja destinada ao comércio em geral ou ao atendimento de encomenda específica de terceiro, até mesmo porque o item vetado não fazia tal distinção.3. Ademais, não é possível, para fins de tributação, enquadrar a atividade em questão em hipótese diversa, de cinematografia, pois: i) "Existindo veto presidencial quanto à inclusão de serviço na Lista de Serviços Anexa ao Decreto-lei 406/68, com redação da Lei Complementar 56/87, é vedada a utilização da interpretação extensiva" (REsp 1.027.267/ES, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 29/04/2009); ii) Historicamente, a cinematografia já estava contida na lista anexa ao DL 406/68 (item 65) e nem por isso justificava a incidência do tributo sobre agravação (produção) e distribuição de filmes, que estava amparada em  hipótese autônoma (item 63); iii) a atividade de cinematografia não equivale à produção de filmes. A produção cinematográfica é uma atividade mais ampla que compreende, entre outras, o planejamento do filme a ser produzido, a contratação de elenco, a locação de espaços para filmagem e, é claro, a própria cinematografia. 4. Afasta-se, portanto, a incidência do ISS sobre a atividade exercida pela empresa recorrente. 5. Recurso especial provido. (STJ, REsp nº 1.308.628 – RS, Re. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, J. em 26/02/2012).

 

Uma das contribuições mais importantes deste precedente, para toda a comunidade, foi o reforço a proibição do uso de interpretação analógica extensiva das normas que delimitam o campo de incidência do tributo, por vezes tênue e imprecisa – em observância ao Princípio da Taxatividade e da vedação do ultrapassado in dubio pro fisco. Sob o seu viés prático o referido julgado nos trouxe também uma importante contribuição ao mercado das artes, sobretudo, do audiovisual, que aos poucos vai se reerguendo, reafirmando o Brasil como uma fonte inesgotável de criatividade e superação nos campos férteis de uma atividade de tamanha relevância cultural e estratégica para diversos mercados, em reafirmação a própria cultura brasileira.

 

 A discussão sobre a incidência do ISS sobre a atividade das produtoras, agora já pacificada, foi objeto de infindas discussões perante o Poder Judiciário e as instâncias administrativas municipais, uma vez que, a atividade de produção jamais esteve contida no item 13.03 da lista anexa da LC 116/03 (que define, de forma taxativa, quais os serviços que estariam sujeitos a incidência do ISS).

 

 Ao contrário do que fundamentava o Fisco Municipal reforçado pela posição de suas Procuradorias, a atividade de produção jamais esteve incluída no item 13.03, tanto por questões semânticas quanto jurídicas, até lógicas. Um dos indícios disso, talvez o principal foi o veto da Presidência da República sobre a inclusão do item 13.01, que previa justamente a atividade de produção em si.

 

É completamente abusivo o uso estéril do recurso da interpretação extensiva para alcançar determinada atividade que não se encontra explicitamente prevista como fato gerador da obrigação tributária. A Lei 116/03 traz em sua lista anexa o rol taxativo de quais serviços estariam sujeitos a incidência do referido tributo e a própria interpretação do veto do item 13.01 pela Presidência da República deveria inquinar de plano qualquer dúvida sobre a sua não incidência – o veto presidencial também é fonte do Direito, ali se consigna quais efeitos desejados e não desejados pela edição de determinada norma-regra.

 

Logo abaixo, a exposição de motivos do veto presidencial, motivado pelo Ministério da Fazenda, sobre a inclusão das atividades de produção no campo de incidência do ISS, como pretendia o item 13.01 da proposta:

 

“Verifica-se que alguns itens da relação de serviços sujeitos à incidência do imposto merecem reparo, tendo em vista decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. São eles: O item 13.01 da mesma Lista de serviços mencionada no item anterior coloca no campo da incidência do imposto gravação e distribuição de filmes. Ocorre que o STF, no julgamento dos RREE 179.560-SP, 194-705-SP e 196.856-SP, cujo relator foi o Ministro Ilmar Galvão, decidiu que é legítima a incidência do ICMS sobre a comercialização de filmes para videocassete, porquanto, nessa hipótese, a operação se quantifica como de circulação de mercadoria. Como consequência dessa decisão foram reformados acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que consideraram a operação de gravação de videotaipes sujeita tão-somente ao ISS. Deve-se esclarecer que, na espécie, tratava-se de empresas que se dedicam à comercialização de fitas por elas próprias gravadas, com a finalidade de entrega ao comércio em geral, operação que se distingue da hipótese de prestação individualizada do serviço de gravação de filmes com o fornecimento de mercadorias,  isto é, quando feita por solicitação de outrem ou por encomenda, prevalecendo, nesse caso a incidência do ISS. Assim, pelas razões expostas, entendemos indevida a inclusão destes itens na Lista de serviços”.

 

Com relação à interpretação de que a atividade de produção estaria incluída no conceito de cinematografia, como pretendeu o Fisco, o STJ entendeu que ambas as atividades comportam sentidos distintos, a cinematografia não equivale a produção de filmes, uma vez que a cinematografia diz respeito ao: " conjunto de princípios, processos e técnicas utilizadas para captar e projetar numa tela imagens estáticas sequenciais (fotogramas) obtidas com uma câmera especial, dando a impressão ao espectador de estarem em movimento" – Houaiss. Já a produção cinematográfica é uma atividade mais ampla que compreende, entre outras, o planejamento do filme a ser produzido, a contratação de elenco, a locação de espaços para filmagem, e, é claro, a própria cinematografia;.

 

Em reforço a aplicação do Princípio da Taxatividade, o qual fizemos questão de aprofundar no capítulo anterior, municiando o interlocutor, restou-se mais que evidente a nocividade da interpretação extensiva em matéria tributária, que acarretaria transgressão ao Princípio da Taxatividade.

 

 O enfrentamento e uso coordenado da hermenêutica e maestria dos princípios, foi categórica, tanto do ponto de vista jurídico quanto epistemológico, definindo os campos de incidência de acordo com a definição de cada atividade, distinguindo a cinematografia (item 13.03) da produção (item 13.01, vetado), articulando-se de forma sistemática o ordenamento a fim de se elucidar a questão, como afirmou o relator:

 

“Primeiro porque, logicamente, não é possível aplicar interpretação extensiva para alcançar atividade específica que foi expressamente excluída da lista anexa em face de veto presidencial (…). Segundo, historicamente, a cinematografia já estava contida na lista anexa ao DL 406/68 (item 65) e nem por isso justificava a incidência do tributo sobre a produção, gravação e distribuição de filmes, que, como visto, estava amparada no item 63.Terceiro, a atividade de cinematografia não equivale à produção de filmes, mas, certamente, a mais importante de suas etapas. Já a produção cinematográfica é uma atividade mais ampla que compreende, entre outras, o planejamento do filme a ser produzido, a contratação de elenco, a locação de espaços para filmagem, e, é claro, a própria cinematografia. É o que se depreende do conceito de produção de cinema contido na Enciclopédia Mirador Universa: 12.6.1. Produção: compreende todas as providências relativas à realização dos filmes, assumindo características particulares em cada centro industrial na medida em que divergem as atribuições do produtor. Estas são bem mais amplas, por exemplo, no esquema norte-americano de Hollywood, onde a produção se inicia já na seleção dos argumentos a serem desenvolvidos em roteiros de filmes, onde a linha da produção é antecipadamente planejada (..)”

Finalizando a abordagem deste julgado, passamos a colacionar a sua ementa, para, após, nos remetermos às consequências práticas deste importante precedente para toda a cadeia de produção do audiovisual. 


5 – DO DIREITO A RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE

 

Pacificado o entendimento a respeito da não incidência de determinado tributo, restando-se declarada a cobrança realizada em outrora, nasce o direito do contribuinte a restituição do valor pago indevidamente, por meio das ações repetitórias, sob pena de enriquecimento ilícito sem causa, como estipula o Código Tributário Nacional:

 

Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:

Na mesma esteira, preleciona o civilista Caio Mário (2012, pág. 211).

 

“No direito brasileiro como no alienígena a doutrina inclina-se neste sentido, e a jurisprudência, após vacilações, tem-no seguido. Entende-se que o fundamento do pedido de restituição do imposto indevidamente pago não é o erro do solvens, mas a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da cobrança ou, em termos genéricos, da falta de causa. “

 

Aliomar Baleeiro (2003; pág. 881) segue afirmando que os casos em que o sujeito ativo da obrigação tributária recorre ao uso das ações repetitórias em face de ato ilegal ou arbitrário do Fisco é o tema mais recorrente destas causas nos Tribunais: “Os tributos resultantes de inconstitucionalidade ou de ato ilegal e arbitrário, são os casos mais frequentes de aplicação do inciso I do art. 165”.

 

Cabe ao contribuinte lesado pela atuação arbitrária do Fisco pleitear a restituição dos valores pagos indevidamente de forma retroativa, dentro do prazo retroativo de 5 anos a contar da cobrança indevida ou de dois anos da decisão administrativa que denegar a restituição, que prescreve em 2 anos, consoante disposição do CTN:

Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:

 

I – nas hipótese dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário; (Vide art 3 da LCp nº 118, de 2005)

 

II – na hipótese do inciso III do artigo 165, da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória.

Art. 169. Prescreve em dois anos a ação anulatória da decisão administrativa que denegar a restituição.

 

Parágrafo único. O prazo de prescrição é interrompido pelo início da ação judicial, recomeçando o seu curso, por metade, a partir da data da intimação validamente feita ao representante judicial da Fazenda Pública interessada.

 

   Os valores pagos indevidamente podem ser restituídos das seguintes formas ou pela devolução (por meio de precatórios) ou da compensação, quando o Estado permite que o sujeito passivo compense, de imediato ou em recolhimentos futuros eventuais débitos.

 

 Eventuais débitos inscritos em dívida ativa municipal, com base na exação indevida, também podem ser revistos, como afirma Aliomar Baleeiro (2003; pág. 881):

 

“O crédito fiscal, mesmo depois de encerrada a instância administrativa e transformado em dívida ativa do Tesouro pela inscrição, que lhe imprime certeza e liquidez, pode ter essa presunção elidida pelo sujeito ativo ou terceiro a quem isso aproveite”.

Contudo, nem tudo são flores, o maior problema enfrentado pelos contribuintes é a restituição de tributos indiretos, uma vez sendo necessária a autorização daquele que assumiu, de fato, o encargo financeiro do pagamento do tributo:

 

”Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.

 

O Supremo Tribunal Federal assentou ser possível a repetição de tributo pago indevidamente, por meio da Súmula 546, ex vis:

 

“Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte "de jure" não recuperou do contribuinte "de facto" o "quantum" respectivo”.

 

   Como afirma Cristiano Rogério Candido, em seu artigo Repetição do Indébito Tributário Nos Tributos Indiretos, há verdadeira manifesta injustiça sob o argiloso império da legalidade tributária:

 

“Sob o ponto de vista do contribuinte, tais mecanismos revelam-se injustos, pois permitem ao fisco o enriquecimento ilícito em virtude de um erro do contribuinte de direito ou da própria instituição de tributos por meio de normas posteriormente julgadas ilegais e/ou inconstitucionais. Desta forma, muitos acreditam que são necessárias reformas no Código Tributário Nacional que reflitam a realidade dos empreendedores brasileiros, que, ao recolherem tributos indevidamente, veem-se impossibilitados de reaver os valores pagos”.

 

 A sistemática que une o Direito como um todo harmonioso é desafiada pelo verniz de lógica destas exigências, uma vez que a repercussão financeira dos tributos indiretos apenas pelo tomador é mais que incorporada aos custos do contribuinte, como leciona Cristiano Rogério Candido (2011):

 

“De outra forma, qualquer tributo seria indireto, pois é evidente que as empresas incorporam todos os seus custos ao preço de seus produtos e serviços, caso contrário sua atividade seria deficitária e com o tempo se mostraria inexeqüível. Assim, conforme o STJ, comportam transferência os tributos cujo fato gerador envolva uma dualidade de sujeitos, ou seja, o fato gerador é uma operação; tributos cujo contribuinte é pessoa que impulsiona o ciclo econômico podendo transferir o encargo para o outro partícipe do mesmo fato gerador (STJ, 1ª. T., REsp 118488, rel. Min. José Delgado, DJU 06/10/1997)”.

 

A resistência da repetição de indébito, sobretudo, nos casos em que ocorre a frustrante modulação dos efeitos da decisão é algo teratológico em termos de justiça tributária e precisa ser revisto, sob pena de continuarmos chancelando a atuação irresponsável do Fisco.

 

6 – CONCLUSÃO

Com este paradigmático precedente, futuras ações em face de exações indevidas e cobrança indevida do ISS poderão ser ajuizadas como forma de se reaver tributos pagos indevidamente ante a atuação abusiva do fisco, mesmo com todos os óbices aqui expostos. Contudo, a decisão do STJ merece ser festajada, não há previsão legal ou interpretação analógica que ampare a incidência do ISS sobre a atividade de produção, gravação e distribuição de filmes – as atividades de produção cultural certamente saíram fortalecidas desta batalha.

 

Além dos efeitos práticos do referido julgado, fortaleceu-se também a força de determinados princípios de proteção ao contribuinte em face da ânsia arrecadatória dos Municípios que são, em termos de aparelhamento fiscal, um dos mais avançados entes. 

 

7 – REFERÊNCIAS

AFONSO, José Roberto Rodrigues; ARAÚJO Erika Amorim. A Capacidade de Gasto dos Municípios Brasileiros: Arrecadação Própria e Receita Disponível. São Paulo: Cadernos Adenauer, 2000. Acesso em 09 de outubro de 2013: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/bf_bancos/e0001530.pdf

 

 

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Forense, 11ª Ed Rio de Janeiro: 2003.

CANDIDO, Cristiano Rogerio. Repetição do indébito tributário nos tributos indiretos. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2997, 15 set. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20000>. Acesso em: 01 de novembro de 2013.

 

BRASIL. Lei Nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htmt. Acesso em: 09 de outubro de 2013.

 

BRASIL. Decreto-Lei nº. 406, de 31 de dezembro de 1968. Estabelece normas gerais de direito financeiro, aplicáveis aos impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre serviços de qualquer natureza, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0406.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2013.

 

BRASIL. Mensagem nº. 362, de 31 de julho de 2003 da Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. Mensagem de Veto Parcial da Lei Complementar 116/03. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/Mensagem_Veto/2003/Mv362-03.htm>. Acesso em: 09 de outubro de 2013.

 

BRASIL. Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp116.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2013.

 

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 22. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

HOUAISS, A. e Villar, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: 2003.

 

HOFFMANN, Suzy Gomes. Curso de Especialização em Direito Tributário: estudos anal[íticos em homenagem a Paulo de Varros Carvalho. Coordenador: Eurico Marcos Diniz de Santi. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Dorense, 2005.

 

TORRES, Ricardo Lobo. A Proibição de Analogia no Direito Tributário. Disponível em: http://download.rj.gov.br/documentos/10112/928861/DLFE48168.pdf/Revista43Doutrina_pg_109_a_114.pdf Acesso em 09 de outubro de 2013.


Matheus dos Santos Buarque Eichler

Advogado Especialista em Propriedade Intelectual, Tributário, Empresarial e Marítimo, formado em Direito pela Universidade Cândido Mendes - Centro - Rio de Janeiro - RJ. Membro da Associação Brasileira de Agentes da Propriedade Industrial, da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual e da Licensing Executives Society.

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