Não incidência do ICMS sobre quebras na exportação de produtos agrícolas

Fábio Pallaretti Calcini; Gabriel Magalhães Borges Prata

Por Fábio Pallaretti Calcini e Gabriel Magalhães Borges Prata

É muito comum a ocorrência das chamadas “quebras” durante o processo de exportação de produtos agrícolas ou derivados de sua industrialização, vendidos a granel. Diversos são os fatores que ocasionam a diminuição do peso e volume de tais produtos, tais como variações de temperatura, umidade e demais intempéries naturais, ou mesmo em razão de ataques de insetos, roedores, sinistros etc., e que podem ocorrer durante a cadeia de exportação, ou seja, durante o armazenamento, transbordo e transporte da mercadoria até o local de embarque para exportação.

A Companhia Nacional de Abastecimento há muito editou a Resolução nº 009/92, que estabeleceu percentuais médios para quantificação das perdas oriundas da armazenagem de grãos. Tais perdas são chamadas de: 1) quebra técnica, que é a perda de peso decorrente da atividade respiratória dos grãos armazenados, cujo percentual aceitável é de 0,15% ao mês; e 2) quebra de umidade, que é a perda de peso decorrente da redução do teor de umidade do produto, cujo percentual aceitável é de 0,11% ao mês.

São ainda bastante comuns as perdas de volumes verificadas durante o transporte e transbordo da mercadoria, em quantidades muitas vezes difíceis de serem mensuradas e que podem variar de acordo com o modal utilizado (ferroviário, rodoviário ou ambos) e a distância percorrida até o porto.

O fato é que, via de regra, variações negativas no peso dos produtos são entendidas pelos Fiscos estaduais como sujeitas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), já que o exportador não consegue comprovar a exportação dessa diferença para fins da imunidade específica de tal imposto prevista artigo 155, parágrafo 2º, X, “a”, da Carta Constitucional de 1988 [1]. Tal entendimento encontraria amparo em dispositivos como a Cláusula Sexta do Convênio ICMS 84/2009 [2], frequentemente citado pelos fiscos estaduais para fundamentarem suas autuações. É como se a simples saída da mercadoria que se perdeu configurasse fato gerador do imposto, uma vez que não se comprovou a sua exportação.

Tal exigência, contudo, é um verdadeiro disparate, que não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico qualquer que seja ótica empregada para análise da questão.

O primeiro ponto que denota a inconstitucionalidade da exigência de ICMS sobre quebras está em que tal evento não se reveste da condição de operação relativa à circulação de mercadoria a que se refere o artigo 155, II da CF, ao traçar o arquétipo constitucional do ICMS.

É sabido que o critério material da regra-matriz de incidência do ICMS exige que o evento, para se tornar fato jurídico, se revista das seguintes características: 1) configure uma operação, enquanto negócio jurídico; 2) que implique a circulação jurídica, ou seja, que acarrete a transferência de titularidade de um bem móvel; 3) e que esse bem seja caracterizado como mercadoria, isto é, seja posto no ciclo comercial com o intuito de lucro (ato de mercancia). Não verificado um desses três elementos, não se há falar em surgimento da obrigação tributária respectiva.

As circulações físicas, ou meras saídas físicas, sem qualquer objeto negocial e sem transferência de titularidade, são irrelevantes para fins do imposto, até porque não denotam qualquer capacidade contributiva. Nessa esteira, vale destacar a repisada lição de Geraldo Ataliba, que, ao analisar a expressão “operação relativa à circulação de mercadorias”, assevera:

“A sua perfeita compreensão e a exegese dos textos normativos a ele referentes evidencia prontamente que toda a ênfase deve ser posta no termo ‘operação’ mais do que no tema ‘circulação’. A incidência é sobre operações e não sobre o fenômeno da circulação. O fato gerador do tributo é a operação que causa a circulação e não esta” [3].

A tese, em verdade, não é nova. O Supremo Tribunal Federal a havia enfrentando, já em 1974, ao julgar o ERE n.º 75.026, de relatoria do ministro Xavier de Albuquerque, quando o plenário da Corte decidiu que: “Não basta o simples deslocamento físico da mercadoria do estabelecimento. Faz-se mister que a saída importe num negócio jurídico ou operação econômica”.

Em 1996, o Superior Tribunal de Justiça editou a repisada Súmula nº 166 [4], pela qual firmou o entendimento que o mero deslocamento físico de mercadorias, sem transferência de titularidade, não ensejava a incidência do ICMS. Tal orientação, contudo, não foi respeitada pelo legislador complementar, visto que o artigo 12, I da Lei Complementar 87/96, elegia a saída como “fato gerador do ICMS”, embora a doutrina reclamasse que tal regra, quando muito, implicava o critério temporal da regra-matriz de incidência, sem se confundir com o critério material.

Mais recentemente, os tribunais superiores, nas ocasiões em que revisitaram o tema, reafirmaram tal entendimento. O Superior Tribunal de Justiça, em confirmação à sua súmula, julgou recurso especial sob a sistemática dos repetitivos, afastou a não incidência do ICMS sobre transferência de mercadorias entre filiais da mesma empresa [5].

Já o STF voltou a enfrentar a questão em duas oportunidades, quando do julgamento do Tema 1.099 e da ADC 49. No primeiro caso, ao julgar o ARE n° 1.255.885/MS, em sede de repercussão geral, o tribunal firmou a asseverou que “não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia”. No segundo, reputou inconstitucionais os dispositivos da Lei Kandir que determinava a incidência do imposto sobre operações desprovidas de mercancia, quais sejam dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal n° 87, de 13 de setembro de 1996”, ao argumento de que “a circulação de mercadorias que gera incidência de ICMS é a jurídica”.

As premissas firmadas em tais julgamentos se aplicam com precisão à hipótese em análise, eis que não se pode falar em incidência do imposto sobre as quebras de peso e volume verificadas durante o transporte, transbordo e armazenamento da mercadoria.

Em verdade, qualquer hipótese de saída que configure mera circulação física — perda, furto, roubo, incêndio, perecimento, sinistro, ou as chamadas quebras técnicas ou de umidade, não realiza o conceito de operação relativa à circulação de mercadoria. Trata-se de fato desprovido de conteúdo econômico, e que, por isso mesmo, não pode ser tomado como signo presuntivo de riqueza para fins de tributação.

Entender de forma contrária seria violar um princípio basilar do nosso ordenamento, qual seja a Capacidade Contribuitiva prevista no artigo 145, §1º da CF. É sabido que o legislador constituinte, ao eleger as materialidades possíveis dos tributos, elegeu fatos denotem capacidade econômica, ou seja, que permita presumir a existência de riqueza passível de tributação. A par da feição subjetiva, que impõe tributação proporcional à riqueza dos contribuintes como forma de atender ao princípio da isonomia, referido princípio também guarda sentido absoluto ou objetivo, assim entendido o dever atribuído ao legislador das pessoas políticas para elegerem, como hipótese de incidência dos tributos, fatos dotados de conteúdo econômico [6].

É evidente, no entanto, que fatos como furto, roubo, perecimento, sinistro ou quebra de peso e volume de mercadorias, além de não realizarem o critério material da hipótese de incidência do ICMS, não são indicativos de riqueza alguma.

A exigência de ICMS sobre meras quebras de produtos se revela ainda mais absurda quando promovida no contexto de mercadorias destinadas à exportação e que, por conseguinte, nem hipoteticamente estavam sujeitas à incidência do imposto. E aqui reside um enorme contrassenso: as exportações concretizadas, essas sim providas de conteúdo econômico, não se sujeitam à incidência do imposto; já as operações não concretizadas em razão das quebras de armazenagem ou transporte, que em verdade geram prejuízo ao exportador, devem se submeter à tributação!

Como bem observa o autor, tal regra de incompetência, além de estar em harmonia com o GATT/OMC, realiza o princípio da neutralidade econômica do ICMS, garantindo que o imposto onere uniformemente a cadeia de exportação, além de promover o equilíbrio econômico-financeiro e a livre concorrência das empresas, esse último um valor caro ao nosso legislador constituinte, consoante artigo 170, I da Constituição Federal.

Nessa ordem de ideias, pode-se dizer que a norma de imunidade visa atingir às operações que destinam mercadorias ao exterior — e não apenas as operações de exportação propriamente dita, de modo que não faz qualquer sentido lógico ou jurídico exigir imposto sobre perdas verificadas no decorrer — e como consequência natural — do processo de exportação.

A não tributação das perdas decorrentes de transporte ou armazenamento, ademais, garante tratamento isonômico aos contribuintes situados nas mais diversas regiões de país. Ora, é sabido que tão maiores são as perdas quanto mais distantes encontrem-se os contribuintes dos respectivos locais de exportação. A tributação de quebras, portanto, acarretaria maior carga tributária para contribuintes distantes de tais locais, em expressa afronta ao princípio da isonomia previsto no artigo 150, I da Constituição, e ao primado que veda a imposição de tratamento tributário diverso em decorrência da procedência ou destino da mercadoria, previsto no artigo 152 da mesma Carta.

As perdas físicas, ou quebras de peso e volume, portanto, são fenômenos inerentes às operações de exportação de produtos agrícolas, as quais não podem ser ignoradas pela Administração Fazendária sob pena de violação não só ao arquétipo constitucional do ICMS, mas a diversas princípios constitucionais tributários, como visto acima.

Embora o tema ainda tenha sido pouco discutido na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se pronunciar sobre a quebra de evaporação em operação com cana de açúcar, quando entendeu que tais perdas não ensejam o nascimento da obrigação de pagar ICMS:

“1 — A quebra por evaporação do produto não tem o condão de repercutir na incidência do ICMS a ser recolhido, nem mesmo de afetar o diferimento, pois o tributo deve recair sobre a quantidade de cana-de-açúcar que ingressou na usina, sem levar em consideração o álcool produzido (…)” (REsp 135.699/SP, relator ministro João Otávio de Noronha, 2° Turma, julgado em 07/12/2004, DJ 21/03/2005, p. 299).

Tal precedente, mais recentemente, serviu de fundamento a outra decisão da Corte no sentido de que diferenças apuradas em razão da dilatação volumétrica de combustível em razão da variação de temperatura não configuram fato gerador do ICMS:

“2 — A entrada a maior do combustível, em razão da variação da temperatura ambiente de carregamento e descarregamento se constitui em um fenômeno físico de dilatação volumétrica.
3 — A fenomenologia física de dilatação volumétrica do combustível não se amolda à descrição normativa hipotética que constitui o fato gerador do ICMS.(…)
5 — Não há novo fato gerador ocorrido com a variação volumétrica de combustíveis líquidos, uma vez que não se está diante de uma nova entrada ou saída intermediária não considerada para o cálculo do imposto antecipado, mas de mera expansão física de uma mercadoria volátil por natureza (…)” (REsp 1884431/PB, relator ministro Benedito Gonçalves, 1° Turma, julgado em 08/09/2020, DJe 11/09/2020).

Possível reconhecer, portanto, a ilegalidade e a inconstitucionalidade de exigência de ICMS sobre as chamadas quebras de produtos agrícolas, sobretudo as chamadas quebras de peso verificadas na cadeia de exportação de produtos primários agrícolas ou seus derivados industrializados.

É certo que as legislações de alguns poucos Estados reconhecem, ainda que de forma indireta, a existência do fenômeno das quebras, mas faltam ainda regramentos específicos a reconhecer percentuais aceitáveis por tipo de produtos, tipo de transportes utilizados para a exportação (ferroviário, rodoviário e multimodal) ou mesmo regras de textura aberta que permitissem o diálogo direto com o contribuinte e que lhe franqueasse formas de evidenciar os percentuais de quebra comumente experimentados em suas atividades, tais como laudos, verificação in locu etc.

Apesar de reconhecermos que há forte embasamento jurídico e fático em casos concretos para se questionar tais exigências, acreditamos que, em paralelo, o ajuste na legislação de cunho nacional possa ser uma solução inteligente para se reduzir esta insegurança jurídica cravada por nítida ilegalidade e inconstitucionalidade.

[1] Nos termos da redação conferida pela EC 42/03, tal dispositivo determina que o ICMS não incidirá “sobre operações que destinem mercadorias para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores.”

[2] Cláusula sexta O estabelecimento remetente ficará obrigado ao recolhimento do imposto devido, inclusive o relativo à prestação de serviço de transporte quando for o caso, monetariamente atualizado, sujeitando-se aos acréscimos legais, inclusive multa, segundo a respectiva legislação estadual, em qualquer dos seguintes casos em que não se efetivar a exportação: (…) II – em razão de perda, furto, roubo, incêndio, calamidade, perecimento, sinistro da mercadoria, ou qualquer outra causa;

[3] Sistema Constitucional Tributário Brasileiro – 1ª ed. São Paulo, RT, 1996. p. 246.

[4] “Súmula 166 – Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”

[5] REsp 1.125.133/SP

[6] Vale lembrar, nesse sentido, a lição de Paulo de Barros Carvalho: “Diante desse quadro, aliás corriqueiro nos sistemas tributários modernos, há necessidade premente de ater-se o legislador à procura de fatos que demonstrem signos de riquezas, pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo uniforme e com satisfatória atinência ao princípio da igualdade. Ter presente que, de uma ocorrência insusceptível de avaliação patrimonial, jamais conseguirá extrair cifras monetárias que traduzam, de alguma forma, um valor em dinheiro.” ( Direito Tributário, Linguagem e Método. 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2008, p. 308.)

Fonte Conjur

Fábio Pallaretti Calcini; Gabriel Magalhães Borges Prata

Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, professor da FGV Direito-SP, INSPER e Ibet, doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra.

Gabriel Magalhães Borges Prata é LLM em Direito Tributário pela Queen Mary, Universidade de Londres, mestre pela PUC/SP, professor conferencista do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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