Não é obrigado a gastar: vinculações orçamentárias e gastos obrigatórios

Fernando Facury Scaff

Existe um debate candente que visa a desvinculação de receitas públicas. Desde o governo Itamar Franco, foi criado um instrumento financeiro para desvincular as receitas do direcionamento para o qual elas foram criadas. Isso passou pelos governos FHC, Lula e Dilma e, agora, adentra o governo Temer, que apoia um Projeto de Emenda Constitucional que visa prorrogar esse mecanismo financeiro denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU). Entendo que essa é uma medida paliativa, pois não resolve o problema, antes o agrava, uma vez que o ponto central do debate está nos chamados gastos obrigatórios, que têm outra natureza.

Vinculação é um liame jurídico que une determinado grupo de receitas para uso em certa finalidade. São exemplos de vinculação constitucional a obrigação imposta à União de aplicar 15% de sua receita corrente líquida em ações e serviços públicos de saúde (artigo 198, parágrafo 2º, I), ou ainda a obrigação de estados e municípios de aplicar 25% de sua receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino (artigo 212). Nesse sentido, há destinação específica dessas receitas por meio desse vínculo jurídico que as une a uma determinada ação estatal específica.

Tais vinculações são exceções ao princípio da não afetação, previsto no artigo 167, IV, da Constituição. Isso porque a regra é que o legislador orçamentário deva ter plena liberdade para dispor do orçamento como lhe aprouver, com verbas livres para custear o programa de governo para o qual foi eleito. Logo, a regra geral é a não afetação, com as exceções permitidas pela Constituição.

Sempre imaginei que essas vinculações constitucionais para saúde e educação, dentre outras, foram criadas pelo legislador constituinte em face da enorme suspeita que tinha do legislador ordinário. Suponho que deve ter pensado algo como: se não for estabelecido um percentual mínimo para aplicação nesses gastos sociais, os governantes poderão usar esse dinheiro em outras coisas e deixar essas atividades essenciais à míngua de recursos. Lembro sempre de uma visita que, juntamente com o professor Regis de Oliveira, fizemos com alunos de pós graduação da USP na cracolândia, no centro de São Paulo, para conhecer um pouco da realidade naquele local e as políticas públicas que lá estavam sendo desenvolvidas. Nosso guia, William Thomaz, oficial da PM responsável pela área, que então cursava mestrado em políticas públicas, afirmou que não havia problema de verbas para ações naquele local, o que faltava era coordenação entre os diversos órgãos que por lá atuavam. Esse singelo exemplo reforça a sabedoria do constituinte, em bloquear parte do dinheiro para gastos sociais, vinculando-os. É verdade que não temos conseguido organizar com qualidade esse gasto social, mas isso não é culpa das vinculações, mas de gestão. Aliás, é curioso que nosso país tenha mais faculdades de administração que faculdades de Direito, estas já em número excessivo, e o Brasil ande tão mal administrado.

Existe outro mecanismo jurídico que não se constitui propriamente em uma vinculação, mas tem efeitos semelhantes, que é a referibilidade das contribuições. O que distingue as contribuições dos impostos é exatamente essa característica, da sua referibilidade. Em linhas básicas, consiste em estabelecer na lei de sua criação uma destinação para seu gasto. Por exemplo, os gastos com a famigerada CPMF eram, na lei, em grande parte dirigidos para ações na área de saúde. Muitos desvios ocorreram, como se sabe, mas esse era o escopo legalmente estabelecido. O liame jurídico na referibilidade é mais fraco que na vinculação, como se pode ver na amplíssima destinação estabelecida para a arrecadação de PIS e Cofins.

Pode ocorrer em alguns momentos que essas duas figuras se sobreponham, como se vê no caso da CIDE-combustíveis, cuja arrecadação é destinada para financiamento de programas de infraestrutura de transportes e para financiamento de projetos ambientais na área de petróleo e gás, entre outros (artigo 177, parágrafo 4, II, CF). Aqui a vinculação se sobrepõe à referibilidade, pois mais ampla.

A desvinculação de receitas alcança todos esses gastos, pois atinge em cheio sua fonte de recursos. A sanha desvinculatória é tamanha que a Proposta de Emenda Constitucional em debate prevê até 30% de desvinculação e inclui estados e municípios. Assim, surgirão, além da DRU, a DRE e a DRM. Fico imaginando como se comportarão os prefeitos com essa redução do limite de gastos mínimos em educação. Gastarão “no limite”. Aliás, terá isso efeito retroativo?

Quando acima afirmei que desvincular não é solução, apenas agravando a questão social, é porque percebo que o problema está em outro ponto. Encontra-se naquilo que se chama de gastos obrigatórios, que tem outra natureza jusfinanceira.

Os gastos obrigatórios não têm fonte específica de receita para seu custeio, diferentemente das vinculações. Os dois itens mais destacados dos gastos obrigatórios são o serviço da dívida pública e os gastos com pessoal e encargos. Tais gastos obrigatórios são custeados pela fonte geral de recursos, ou seja, pela arrecadação geral, não havendo nenhum liame jurídico que os una a uma específica receita.

Parece-me que o problema está nos gastos obrigatórios, porque as despesas com esses dois itens globalmente considerados (serviço da dívida e pessoal e encargos) são muito maiores do que as vinculadas à saúde e educação.

O serviço da dívida (juros e encargos) consumiu R$ 208 bilhões[1] em 2015. Trata-se de uma espécie de gastos sobre o qual o governo pode ter razoável controle para os próximos anos, sendo suficiente calibrar na LDO a meta de superávit primário a ser perseguida. É certo que os rentistas chiarão com uma eventual redução desse valor, mas é uma alternativa a ser trilhada.

Os gastos com pessoal e encargos consumiram R$ 255 bilhões[2] em 2015, e durante o governo FHC foram criados diversos mecanismos para sua redução, por meio da Emenda Constitucional 19/98 e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), alguns dos quais, salvo melhor juízo, até hoje não foram utilizados. Destaco, dentre outros, o que consta do artigo 169 da Constituição, que estabelece que a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, bem como a criação de cargos, empregos ou funções, ou alteração na estrutura de carreira, e ainda, contratação de pessoal a qualquer título, só poderão ser feitas em condições bastante rigorosas, inclusive com o foco intertemporal, pois isso agrega vantagens irredutíveis aos servidores públicos, que as receberão até sua morte, sendo algumas transferidas à suas famílias. Tais condições financeiras estão nos incisos I e II do parágrafo 1º, do artigo 169, CF.

Deve-se atentar para as consequências, caso os limites para gastos com pessoal estabelecidos na LRF não estiverem sendo cumpridos. Eles preveem redução de pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança, exoneração de servidores não estáveis (artigo 169, parágrafo 3º, CF) e, se essas medidas não forem suficientes, o servidor estável poderá perder o cargo (artigo 169, parágrafo 4º, CF). Ouvem-se rumores que isso já esteja acontecendo em alguns estados, dentre os quais o Rio de Janeiro.

Observe-se que estados e municípios vêm conseguindo burlar esses limites com o amplo beneplácito do Supremo Tribunal Federal, por meio de um argumento denominado postulado da intranscendência das medidas restritivas de direitos. O Poder Judiciário, o Poder Legislativo, o Ministério Público e o Tribunal de Contas possuem limitação para gastos de pessoal estabelecido pelo artigo 20 da LRF. Ocorre que, como o Poder Executivo não pode impor sanções ou segurar os repasses orçamentários a esses órgãos políticos, que são autônomos, quando o limite para gastos com pessoal é ultrapassado, toda a população do estado ou do município é penalizada, pois deixam de receber verbas da União. Logo, as explosões de gastos com pessoal do Poder Judiciário, Legislativo, Ministério Público e Tribunal de Contas de estados e municípios (onde couber, pois os municípios não possuem Judiciário e a maioria não tem Tribunal de Contas) não são controladas, restando ao Poder Executivo ingressar com ações perante o STF para evitar que os necessários repasses de verba federal não sejam interrompidos. O acórdão paradigma desses casos é o ACO 1.612, ministro Celso de Mello, que, sob o argumento do “postulado da intranscendência das medidas restritivas de direitos”, libera as verbas federais que ingressam no cofre dos estados e municípios, que são obrigados a repassar os recursos orçamentários àqueles órgãos, que rotineiramente descumprem os limites de gastos com pessoal e encargos. Não admira que estados e municípios estejam com o pires na mão em busca de renegociação dos juros de sua dívida com a União e raspando o tacho dos depósitos judiciais. Isso para não tratar do aumento da carga de tributos estaduais e municipais. Ou seja, é necessário tapar o ralo dos gastos obrigatórios federais, estaduais e municipais, de todos os poderes e demais órgãos políticos do Estado federado brasileiro.

O heroico leitor que acompanhou ou texto até aqui poderia perguntar: afinal, qual a diferença? Não é tudo gasto público? Ou isso é só teoria sem efetividade?

A diferença é enorme e reside no fato de que, nos gastos obrigatórios, há efetiva obrigação de gastar; já nas vinculações não há obrigação de gastar; há um vínculo para custeio de gastos específicos, mas não essa obrigação de gastar de imediato, no mesmo exercício financeiro. Não fosse isso, não haveria diferença.

Daí decorre uma divergência teórica com alguns notáveis colegas da área de Direito Financeiro, pois a compreensão atual é que a verba com vinculações deve ser obrigatoriamente gasta no mesmo exercício financeiro em que foi arrecadada, não sendo possível transferi-la de um período a outro. Ou seja, vigora a compreensão jusfinanceira de que é obrigado a gastar no mesmo exercício o que tiver sido vinculado! Assim, quando a Constituição estabelece a vinculação para educação e determina que os municípios devam aplicar 25% de suas receitas nessa área, o entendimento doutrinário e jurisprudencial, das cortes de Contas, do Ministério Público de Contas e, por extensão, do Judiciário, é que esse município deva gastar naquele exercício financeiro todos os valores vinculados. Daí advém uma infinidade de erros e gastos malfeitos pelos entes federados, pois, na ânsia de gastar, gastam mal. Não cumprir essa determinação acarreta rejeição das contas, abertura de processos por improbidade administrativa e um sem fim de sanções. Logo, o que fazem os gestores públicos? Gastam!

Isso decorre da compreensão de que o verbo “aplicar” utilizado pela Constituição nos artigos 212 e 198, parágrafo 2º, I, que vinculam receitas para saúde e educação, significa exatamente “gastar”, quando não possui apenas esse inequívoco e exclusivo significado.

A ADI 2.925 do Supremo Tribunal Federal dá amparo a esse entendimento. O ano de 2002 findou sem que a totalidade dos recursos arrecadados com a CIDE fosse gasto, e a Lei Orçamentária Anual para 2003 previa que esses recursos fossem remanejados para serem gastos em finalidades distintas daquelas estabelecidas de forma vinculativa no texto constitucional. O STF decidiu ser esse remanejamento inconstitucional. O voto do ministro Carlos Mário bem espelha o teor do pronunciamento do tribunal: “A Constituição estabelece a destinação do produto da arrecadação da CIDE. Estamos todos de acordo em que a destinação dessa contribuição não pode ser desviada porque não há como escapar do comando constitucional, artigo 177, parágrafo 4º, II. Mas o que ouvi dos debates e das manifestações dos advogados é que o desvio está ocorrendo. (…) Evidentemente que não estou mandando o governo gastar. A realização de despesas depende de políticas públicas. O que digo é que o Governo não pode gastar o produto da arrecadação da CIDE fora do que estabelece a Constituição Federal, artigo 177, parágrafo 4º, II”.

Essa decisão determinou que as receitas da CIDE permanecessem vinculadas ao gasto para a qual foram criadas, mas não era obrigado a gastar no mesmo ano em que foram arrecadadas. Porém, quando esse gasto fosse feito, deveria ser naquelas específicas finalidades.

Logo, tentando sintetizar as ideias expostas, entendo que: 1) desvincular não é a solução, pois os valores envolvidos são relativamente baixos, em face dos gastos obrigatórios, os quais constituem o verdadeiro problema a ser enfrentado; 2) os gastos obrigatórios embora rígidos, tem margem de compressão em razão das alterações normativas efetuadas durante o governo FHC, no que tange aos gastos com pessoal e encargos, e pela calibragem anual do superávit primário na LDO — trata-se de algo para o futuro, que não tem efeito retroativo; 3) essas medidas devem ser tomadas de forma federativa, alcançando também os estados e municípios, em todas suas esferas de poder; e 4) não é obrigado a gastar no mesmo exercício financeiro as verbas vinculadas, podendo ser utilizadas de um exercício para outro, desde que no mesmo mandato, o que envidará redobrados esforços do sistema de controle de contas de todos os entes federados.

Estou seguro que essas considerações melhorarão o gasto público no Brasil. Os contribuintes, já completamente escovados, agradecerão. E os beneficiários das vinculações, que não devem ser desvinculadas, também.

[1] Observe-se que esse montante não corresponde ao total de gastos com a dívida, pois a amortização da dívida custou, em 2015, R$ 333 bilhões, e foram refinanciados outros R$ 571 bilhões. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/352657/RRSdez2015-Corr.pdf/7b5d14fc-6dc1-4315-9abe-3e09ad36f770
[2] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/352657/RRSdez2015-Corr.pdf/7b5d14fc-6dc1-4315-9abe-3e09ad36f770

Fernando Facury Scaff

Advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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