Manifesto a favor da reforma tributária, PEC 45, na República nova
Fernando Facury Scaff
Os poucos leitores e leitoras que acompanham meus textos nesta ConJur e em outros veículos, bem como em palestras, aulas etc., bem sabem a preocupação que tenho em relação à PEC 45, a da reforma tributária, em qualquer de suas versões. Já publiquei inúmeras análises acerca do assunto no âmbito tributário (colunas Justiça Tributária) e no financeiro (coluna Contas à Vista).
Mesmo assim, se eu fosse governante, aprovaria a PEC 45 em sua versão original, embora aperfeiçoando a redação de seu texto, para ser implantada um país que estivesse sendo fundado (iniciado, inaugurado), de forma contemporânea com sua estrutura tributária.
Para expor a ideia, imaginemos recortar uma parte do Brasil e dela criar um novo país, em qualquer parte do território. Recortaríamos da cidade de São Paulo a região da avenida Faria Lima, os Jardins, Pinheiros e Higienópolis, e fundaríamos a República Paulistana. Ou declarar a independência da Ilha do Marajó, recortando o estado do Pará, e fundar a República Marajoara. Ou a Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, estabelecendo a República Tijucana. Ou aproveitar os ancestrais ideais gaúchos, e criar a República de Piratini. Qualquer dessas alternativas, dentre outras, são adequadas para analisar a hipótese que apresento, que poderia té mesmo ser uma monarquia, mas isso iria dar muita confusão.
Estabelecido um novo território para esse hipotético país, seria necessário criar fontes de receita. As bases econômicas tributáveis seriam, como sempre, a renda, a propriedade e o consumo, além dos impostos regulatórios (importação, exportação etc.). Não poderia ser cometido o erro crasso feito no Brasil, de usar como base tributável a folha de pagamento, pois onera e dificulta a empregabilidade.
Nessa República Nova (por favor, não confundir com a velha Nova República brasileira), que se fundaria a partir desse recorte territorial, teria na estrutura da PEC 45 uma boa tributação sobre o consumo, ainda que alguns ajustes fossem necessários em seu texto. A proposta de neutralidade tributária está correta. A tributação do consumo onde ele ocorre está correta. A adoção de um IVA único também. Um comando normativo centralizado para a federação (a República Nova seria uma federação, por certo), também está correto. Existem outros aspectos, mas paro por aqui.
A fórmula jurídica e econômica da PEC 45, em sua versão original, poderia ser implantada nessa hipotética República Nova sem grandes problemas, pois o território seria relativamente a-histórico e criado do zero.
A dificuldade está em implantar a PEC 45 no Brasil atual, que é um país real (existente, palpável), com trajetória e história econômica vivida quotidianamente, com 240 milhões de habitantes.
À essa preocupação se apresenta um dilatado prazo para o início de sua vigência, seja no âmbito tributário, envolvendo o pagamento dos tributos, seja no âmbito financeiro, envolvendo a repartição da arrecadação entre os entes federados. Ocorre que esse prazo demonstra a inexistência de prévio planejamento efetivo para sua implantação em um país real, como o Brasil, revelando as inúmeras alterações constitucionais que deverão ser feitas ao longo do tempo. Constata-se desde logo que a PEC 45, ao final de seu trâmite na Câmara dos Deputados (PEC 45-A), já contém 33 páginas de mudanças na Constituição, além de exigir incontáveis leis complementares, ordinárias, decretos e outros atos normativos para sua implantação, em diferentes níveis federativos. Seguramente serão necessárias outras normas de ajuste para aperfeiçoar o sistema, ao longo desses prazos.
Tudo isso aponta para dois aspectos: 1) o sistema atual é ruim e necessita ser alterado, embora não se possa esquecer que há menos de dez anos não nos atrapalhou a ser a 7ª economia mundial; e 2) como proceder, sendo ruim o sistema atual, e sendo dificílimo implantar a PEC 45 em um país real, como o Brasil?
A resposta é: fazendo micro reformas ao longo do tempo. Costuma-se dizer que Roma não foi feita em um dia, e nosso sistema tributário também não o será, senão à custa de muita confusão. É necessário dar tempo ao tempo, e respeitar a trajetória e a história econômica e social do Brasil, país real em que vivemos, e não a da República Nova, mera abstração teórica. Isso foi feito no âmbito federal brasileiro durante os governos de FHC — o então secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, está aí para relatar a experiência vivida.
Existe um conceito econômico importante que não está sendo levado em conta nesse processo, que é o de path dependence, a dependência da trajetória, que limita e condiciona as mudanças que se pretende fazer, quaisquer que sejam. Alterações podem e devem ser feitas, mas a seu tempo e modo. Revoluções tributárias, como a que está sendo proposta pela PEC 45, geram contrarrevoluções normativas, que descambam em intensa judicialização.
A vasta propaganda que tem sido feita para a provação da PEC 45 não aponta para esse problema, indicando apenas o mundo ideal em que viveremos a partir de sua aprovação. É fake. Há todo um trajeto para se chegar lá, que não pode ser ocultado.
Para se chegar ao mundo ideal da propaganda é necessário atravessar dois desertos: a) o período de transição, financeiro e tributário, e, b) mais longo ainda, o período de sedimentação dos novos conceitos e procedimentos que vierem a ser adotados em decorrência da PEC 45 — aqui se encontra o paraíso dos advogados tributaristas, que terão três gerações de problemas para resolver. Até hoje o todo o sistema de Justiça no Brasil ainda julga processos que se se discute problemas criados pelo texto da Constituição de 1988, criada 35 anos atrás, que, por sua vez, manteve amplamente o sistema implantado em 1965.
Concluo afirmando que seria muito bem aceita a implantação da estrutura da PEC 45 em um país novo, a ser fundado do zero, como a hipotética República Nova acima idealizada, pois a proposta é consentânea com o que de melhor se discute mundo afora. Porém, temo por sua implantação em um país real e concreto como o Brasil. Micro reformas seriam muito mais adequadas. Porém, não é esse o caminho que o Brasil está trilhando.
Fernando Facury Scaff
Professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.