Luta à Covid-19 exige Estado forte, alimentado por tributos justos

Sergio André Rocha

Por Sergio André Rocha

As últimas semanas nos transportaram diretamente da realidade à qual estávamos habituados para um cenário com o qual antes somente tínhamos contato através do cinema e da criatividade dos escritores. Por mais que fique cada vez mais claro que a crise atual poderia ter sido antecipada, o fato é que para a grande maioria de nós ainda parece que estamos vivendo em um drama do cinema-catástrofe — salvo para os “terraplanistas” que acham que a pandemia é uma criação da mídia ou um complô comunista para dominação global.

Como o fenômeno tributário é uma parte indissociável da vida em sociedade, a atual crise provocada pela Covid-19 tem diversas implicações financeiras e tributárias, desde a possibilidade de moratórias, remissões e anistias, passando pela utilização extrafiscal do tributo, para induzir ou desencorajar comportamentos, chegando a questões financeiras relevantes relacionadas ao teto de gastos e ao princípio do equilíbrio orçamentário.

Este artigo, contudo, não tem como foco analisar quaisquer aspectos de política financeiro-tributária relacionados à pandemia da Covid-19. Tais temas certamente são relevantes e seu estudo, considerando a pressão de caixa que afligirá grande parte das empresas — e os próprios entes federativos — é imprescindível e urgente. O que queremos colocar em destaque neste breve texto é como a crise pela qual estamos passando põe em xeque duas crenças ingênuas, que habitam o ideário de alguns setores da sociedade: primeiro, a ideia de que o Estado é, de alguma forma, desnecessário; e, segundo, a percepção de que os tributos são indevidas apropriações do patrimônio privado, desvios de recursos que são sempre perdidos para a corrupção e a má-gestão.

A teoria tributária brasileira se desenvolveu, em grande medida, em torno do mito do Estado-vilão, contra o qual qualquer medida de revolta — leia-se, de infração — seria — ou deveria ser — tolerada. Esta percepção quanto ao papel do Estado na vida em sociedade vai encontrar fundamento teórico explícito nas publicações do professor Ives Gandra da Silva Martins, mas habita, mesmo que de forma implícita, as posições de um grande número de estudiosos do Direito Tributário no Brasil.

Desde o início da década de 1980, Ives Gandra vem sustentando este tipo de interpretação com empenho. Este autor tem um grande mérito que é a transparência de suas posições. Nada fica subentendido. O professor é absolutamente explícito ao afirmar que “o tributo é, portanto, a transferência de recursos da sociedade desprivilegiada para o sustento dos governantes, não sendo a prioridade maior destes a prestação de serviços públicos, mas a sua própria manutenção no domínio das gentes e dos que os apoiam”. E prossegue o referido autor: “Em outras palavras, grande parte dos tributos que a sociedade paga para o poder não objetiva beneficiar a sociedade, mas, exclusivamente, seus detentores (políticos, burocratas, aproveitadores, amigos e empresários beneficiários de obras públicas), razão pela qual poder e tributo são irmãos siameses inseparáveis, sustentados pela classe inferior e dominada, que é o povo e a sociedade”.[i]

Ousamos discordar da posição do professor Ives Gandra. Parece-nos injustificável que uma análise acadêmica tenha como ponto de partida a premissa de que o dinheiro dos tributos não presta a coisa alguma que não enriquecer governantes inescrupulosos, seus amigos e comparsas. Ademais, um sistema tributário justo e progressivo não faria a carga tributária recair sobre uma “classe inferior e dominada” de contribuintes.

Analisamos este tipo de argumento pela primeira vez em um artigo publicado em 2007, onde registramos que uma “circunstância que mina o interesse em contribuir reside na complexidade do mundo atual e do papel desempenhado pelo poder público, de forma que no dia a dia das nossas vidas temos a falsa impressão de que não aproveitamos nada do Estado e da organização estatal e que, portanto, não devemos contribuir para a sua manutenção”.[ii]

Não estamos defendendo uma posição ingênua, como se o Estado brasileiro fosse um exemplo global de gestão eficiente dos recursos públicos. Temos sérios problemas de corrupção e má-gestão. Contudo, essas patologias não transformam o Estado em uma alegoria inoperante. Ademais, o Estado não se confunde com a política, sendo integrado por instituições que não são alteradas pelas transições democráticas de poder. Assim, temos que reconhecer que, usualmente, “nossa capacidade de identificar as atividades estatais em nosso proveito e em proveito da coletividade é pequena, sendo inverídico afirmar que o poder público nada faz em benefício daqueles que contribuem aos cofres públicos, mesmo que estes não sintam tais efeitos diretamente”.[iii]

Infelizmente, a crise que estamos passando “pelas mãos” da Covid-19 mostra o quanto as sociedades, mesmo nas democracias mais liberais economicamente, são dependentes da ação estatal diante da crise. Foi assim em 2008, com a crise do sistema financeiro, e a história está se repetindo em 2020. Acredito ser possível afirmar, com absoluta certeza, que em nenhum país no mundo uma crise como a atual poderia ser administrada sem a intervenção forte e decisiva do Estado.

No Brasil, reclama-se muito do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), argumentando-se que ele é falho, insuficiente e deficiente. Não há como negar que temos problemas gravíssimos na área da saúde. Mas aí surgem algumas questões: onde estaríamos se não tivéssemos o SUS? Quantos países em desenvolvimento ou economias emergentes têm um sistema público e universal de saúde? Quantos países com mais de 200 milhões de habitantes têm um sistema público e universal de saúde? Podemos afirmar que sem o SUS a situação da saúde brasileira seria muito, mas muito mais dramática, e que, até onde sabemos, nenhum país no mundo, que seja comparável com o Brasil em termos de extensão geográfica, população e desenvolvimento econômico, tem um sistema público e universal de saúde como o nosso — mesmo na precária situação atual.

Critiquemos o Estado o quanto for necessário, busquemos a correção dos desvios, sejam aqueles decorrentes da má-gestão, sejam os que são consequência dos horrores da corrupção. Contudo, tenhamos os olhos abertos para a realidade. O Estado não é um vilão. Uma coisa é defendermos que o poder público deva se manter distante das atividades empresariais concorrenciais, que não deva ser um ator no mercado, deixando a atividade econômica empreendedora para os agentes privados. Outra, completamente diferente, é apequenar o relevantíssimo papel que o Estado tem na vida em sociedade, principalmente para aqueles menos favorecidos economicamente, que têm acesso às prestações mais básicas de educação e saúde através de prestações estatais.

Ora, diante da importância ímpar do Estado nas sociedades modernas, em momentos de crise como o atual todos os olhos se voltam para o poder público. Pretende-se que o Estado resgate empresas e salve empregos, que proveja renda mínima para os menos favorecidos, que postergue o vencimento dos tributos, que invista na aquisição de equipamentos e transfira recursos para o sistema de saúde, que fiscalize as ações individuais que coloquem em risco a segurança coletiva etc. Todas essas, e muitas outras, são pretensões legítimas. Contudo, todas têm uma característica comum: requerem vultosos recursos financeiros. E de onde vem tais recursos? De um pomar atrás do Palácio do Planalto? Não! Em grande medida eles provêm da arrecadação de tributos!

Essa constatação nos leva ao segundo ponto deste texto: o papel fundamental dos tributos em um Estado fiscal e a caracterização do dever de pagá-los como um dever constitucional.

Parece uma constatação óbvia demais para ser negada: todos os direitos previstos na Constituição Federal, sejam eles positivos ou negativos, individuais, coletivos ou difusos, requerem custos públicos que são financiados por tributos, especialmente por impostos. Quem fica com a conta de todos os gastos e renúncias fiscais bilionários necessários para o combate à Covid-19? O contribuinte, obviamente.

A visão negativa do Estado espoliador, preguiçoso e corrupto gerou uma percepção igualmente negativa sobre a tributação no Brasil. São poucos os estudos no país sobre psicologia tributária[iv], mas é possível reconhecer intuitivamente que a maioria dos contribuintes não se sente inclinada a contribuir.

O drama da crise atual pode servir de exemplo claríssimo sobre o papel dos tributos em um Estado fiscal. Poder-se-ia até argumentar que, considerando o cenário das contas públicas brasileiras, será necessário um aumento do endividamento para fazer face às novas despesas. É verdade. Entretanto, ninguém empresta para não receber. Em última instância, a carga sempre recai sobre o contribuinte, ainda mais no caso de um país como o Brasil, cujo custo de endividamento é tão alto.

Quando afirmamos que o pagamento de tributos é um dever constitucional enfrentamos dois tipos de oposição. A primeira que estaríamos defendendo o agigantamento do Estado e a segunda que nossa posição sugeriria uma carta branca para a tributação.

Ambas as afirmações, que possuem grande apelo retórico, estão, obviamente, equivocadas.

O reconhecimento de que o pagamento de tributos é um dever constitucional não tem nenhuma relação direta com o tamanho do Estado. Seja em um Estado onde grandes atribuições e prestações forem assumidas pelo Poder Público, seja em um Estado onde as pessoas têm uma rede de prestações públicas menos abrangente, o recolhimento tributário tenderá a ser um dever constitucional — desde que estejamos diante de um Estado Fiscal, que dependa da arrecadação tributária para o custeio da maior parte de seus gastos.

De outro lado, o reconhecimento de que existe um dever constitucional de contribuir não é, de forma alguma, a defesa de uma tributação sem limites. Os autores que defendem a existência de tal dever reconhecem, simultaneamente, que o mesmo somente será legítimo observadas as limitações constitucionais ao poder de tributar. Isso fica claro na obra seminal do professor português José Casalta Nabais, responsável pela difusão do tema no Brasil, onde se estuda, inicialmente, o dever fundamental de pagar impostos para, logo em seguida, examinar as suas limitações.[v]

A crise atual mostra que, se não pela solidariedade, se não pela proteção dos direitos humanos, se não pela garantia do mínimo vital de cada indivíduo, os investimentos na infraestrutura de saúde pública se justificam economicamente. Esta crise gerará um monumental empobrecimento de indivíduos, empresas e Estados. O risco da Covid-19 é, antes de mais nada, uma ameaça à infraestrutura hospitalar. Investimentos públicos de grande monta requerem recursos públicos. E de onde virão tais recursos? Da arrecadação tributária, justa e pautada pelo princípio da capacidade contributiva.

Umas das vítimas aparentes da Covid-19 foram as propostas de reforma tributária. Talvez este seja um dos dividendos da crise, forçar-nos a repensar a reforma do sistema tributário, não apenas da perspectiva da simplificação da tributação do consumo, mas sim em busca de uma revisão mais ampla, que reorganize as bases e distribua a carga tributária de uma maneira mais justa, mas sempre permitindo um financiamento adequado do Estado.

A destruição causada pelo novo coronavírus já é uma realidade, mas seus efeitos nefastos serão ainda mais dolorosos se não aprendermos nada com ela. Um Estado forte não é inimigo do setor privado, e não é necessariamente sinônimo de desperdício e desvios. Da mesma forma, tributos são o outro lado da moeda dos direitos e liberdades garantidas pela Constituição Federal. Lembrando a célebre frase do juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Oliver Wendell Holmes Jr., que já no início do século passado nos dizia que “tributos são o que pagamos por uma sociedade civilizada” (“taxes are what we pay for civilized society”).

[i] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Uma Teoria do Tributo. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 51-52.

[ii] ROCHA, Sergio André. Ética da Administração Fazendária e o Processo Administrativo Fiscal. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Processo Administrativo Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. Rio de Janeiro: Quartier Latin, 2007. p. 615.

[iii] ROCHA, Sergio André. Da Lei à Decisão: A Segurança Jurídica Tributária Possível na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 86. Disponível em: http://www.sarocha.com.br/pt/project/da-lei-decisao/.

[iv] Sobre o tema, ver: SOUZA, Danielle Nascimento Nogueira de. Neurodireito, Psicologia e Economia Comportamental no Combate à Evasão Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; ROCHA, Sergio André. Reconstruindo a Confiança na Relação Fisco-Contribuinte. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 39, 2018. Disponível em: http://www.sarocha.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Reconstruindo-a-Confian%C3%A7a-na-Rela%C3%A7%C3%A3o-Fisco-Contribuinte_SAR.pdf.

[v] NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998. Sobre o tema, ver: GODOI, Marciano Seabra de; ROCHA, Sergio André (Orgs.). O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017. Disponível em: http://www.sarocha.com.br/pt/project/dever-fundamental-de-pagar-impostos/.

Sergio André Rocha

Professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

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