Limites do poder regulamentar no Reintegra

João Colussi

A tentativa do Executivo de excluir produtos da Tabela de Incidência do IPI (Tipi) por decreto presidencial acende um alerta importante: até onde pode ir a atuação unilateral do governo em regimes legais que buscam assegurar a competitividade das exportações brasileiras? Essa tensão se materializa especialmente no Reintegra (Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras), um programa de ressarcimento tributário cuja aplicação depende da definição legal dos produtos abrangidos. Ao contornar o Legislativo para alterar o escopo da Tipi, o governo afronta princípios estruturantes do sistema tributário, como a legalidade e a hierarquia das normas, comprometendo a segurança jurídica dos exportadores e a confiança essencial ao investimento em comércio exterior.

Esse debate traz à tona um dos temas mais sensíveis do direito tributário contemporâneo: os limites da delegação ao Poder Executivo para definir os percentuais do Reintegra. A controvérsia, levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADIs 6.040 e 6.055, mobilizou argumentos doutrinários e constitucionais de grande densidade, que merecem análise detida sob a perspectiva da legalidade, da separação dos poderes e da segurança jurídica.

Correção de distorções no sistema tributário

O ponto de partida da discussão reside na natureza jurídica do Reintegra. Embora o programa tenha sido instituído por legislação infraconstitucional (Lei 13.043/2014), sua finalidade é claramente vinculada à devolução de resíduos tributários acumulados na cadeia de produção de bens exportados, buscando corrigir distorções do sistema tributário nacional e garantir a neutralidade fiscal nas operações internacionais. A Constituição, ao adotar o princípio do destino e ao vedar a exportação de tributos, impõe ao legislador e ao administrador público o dever de estruturar mecanismos que assegurem a competitividade do produto nacional no exterior, evitando a chamada “exportação de tributos”.

Nesse contexto, a doutrina majoritária sustenta que a definição dos elementos essenciais de benefícios fiscais, como o Reintegra, deve ser feita por lei em sentido formal, em respeito ao princípio da legalidade estrita. A legalidade, enquanto garantia fundamental do contribuinte, exige que a instituição, a modificação e a extinção de benefícios fiscais sejam disciplinadas pelo Legislativo, não podendo ser objeto de delegação ampla ao Executivo. A autorização para que o Executivo fixe percentuais de devolução dentro de uma faixa legalmente estabelecida (0,1% a 3%) não pode ser interpretada como carta branca para alterações discricionárias, sobretudo quando tais mudanças impactam diretamente a carga tributária suportada pelos exportadores.

A separação dos poderes, princípio estruturante do Estado de direito, reforça essa limitação. A doutrina constitucional, em especial a de Heleno Taveira Torres, adverte que a delegação legislativa só é admissível nos estritos limites previstos na Constituição, não podendo abranger a definição do campo de incidência de benefícios fiscais ou a restrição de direitos tributários de forma não fundamentada. Permitir que o Executivo, por ato infralegal, altere substancialmente o alcance de um benefício fiscal significa transferir-lhe competência legislativa, o que é vedado pelo ordenamento constitucional. Trata-se de uma salvaguarda não apenas formal, mas material, destinada a proteger o contribuinte contra mudanças abruptas e imprevisíveis no regime tributário.

Segurança jurídica e confiança dos contribuintes
A segurança jurídica e a proteção da confiança legítima dos contribuintes são princípios igualmente invocados pela doutrina e pelos ministros do STF. A previsibilidade e a estabilidade das regras tributárias são essenciais para o livre exercício da atividade econômica, especialmente em setores como o de exportação, que demandam planejamento de longo prazo e investimentos significativos. Alterações discricionárias e abruptas pelo Executivo frustram expectativas legítimas dos exportadores, que estruturam seus negócios com base na legislação vigente. A doutrina de Humberto Ávila destaca que a proteção da confiança e o princípio da não-surpresa são corolários do Estado de direito, impondo limites à atuação estatal em matéria tributária.

Spacca
Outro aspecto relevante é o princípio da neutralidade fiscal e da não exportação de tributos. O Reintegra foi concebido para eliminar resíduos tributários que, não sendo recuperados ao longo da cadeia produtiva, acabam onerando o produto exportado e prejudicando a competitividade internacional do Brasil. A manipulação arbitrária dos percentuais de devolução pelo Executivo pode comprometer essa finalidade, contrariando os princípios da isonomia, da livre concorrência e do desenvolvimento nacional. A doutrina alerta que a finalidade constitucional do Reintegra não pode ser desvirtuada por razões meramente arrecadatórias ou de ajuste fiscal, sob pena de configurar desvio de finalidade e vício de motivação.

No julgamento das ADIs 6.040 e 6.055, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a decidir se a autorização legal para o Executivo fixar os percentuais do Reintegra conferia-lhe discricionariedade absoluta ou se deveria ser exercida dentro de parâmetros técnicos e constitucionais. A maioria da Corte, acompanhando o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, reconheceu a natureza de subvenção econômica do Reintegra e validou a possibilidade de o Executivo ajustar os percentuais conforme as políticas fiscais e econômicas em vigor. Contudo, votos divergentes, como os dos ministros Edson Fachin e Luiz Fux, enfatizaram a necessidade de observância de critérios técnicos, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos exportadores, defendendo que a redução dos percentuais não poderia ser feita de forma discricionária e sem motivação adequada.

Anterioridade tributária
A discussão também alcançou o tema da anterioridade tributária, especialmente quanto à aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal e, eventualmente, da anterioridade anual, diante do entendimento de que a redução do benefício do Reintegra implica majoração indireta da carga tributária. O STF, em decisões recentes, tem reconhecido a necessidade de observância da anterioridade nonagesimal para a vigência de atos normativos que reduzam o percentual do benefício, em respeito à segurança jurídica e à proteção do contribuinte contra surpresas fiscais.

Em síntese, a vedação à delegação ampla ao Executivo na definição dos percentuais do Reintegra encontra fundamento sólido na doutrina e na jurisprudência constitucional. Trata-se de uma exigência de respeito à legalidade, à separação dos poderes e à segurança jurídica, princípios que asseguram a previsibilidade e a estabilidade do regime tributário, essenciais para o desenvolvimento econômico e para a inserção competitiva do Brasil no comércio internacional. O debate permanece atual e relevante, especialmente diante dos desafios de conciliar a necessidade de ajuste fiscal com a promoção do desenvolvimento e da competitividade das exportações nacionais.

João Colussi

sócio da área tributária do escritório Mattos Filho.

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