Lei Geral de Comércio Exterior: onde anda você?

Rosaldo Trevisan

E por falar em saudade, onde anda você…? Assim inicia a icônica canção de Toquinho e Vinícius de Moraes, lançada em 1975, que explora a saudade de um grande amor, e a esperança do reencontro [1].

Apesar de não tratarmos aqui de um grande amor, mas de um grande projeto de lei, cultivado no seio de grupo técnico especializado [2] que debateu por meses os principais temas de comércio exterior à luz das melhores práticas internacionais, disponibilizando o texto a consulta e a sugestões de órgãos públicos e de entidades profissionais que atuam no comércio exterior, chegando a um projeto moderno, contendo 170 artigos, a alusão à canção é válida, porque a estética e a robustez do resultado formou uma espécie de encantamento nos que atuam no comércio exterior, gerando expectativa de um reencontro próximo com o texto, após o trâmite legislativo, com o desejo de que ele, nessa jornada, conserve sua modernidade e seu caráter sistêmico.

O PL 4.423/2024 – Lei Geral de Comércio Exterior (LGCE)
Muito se falou nesta coluna, majoritariamente de forma elogiosa, sobre o texto do Projeto de Lei 4.423/2024, que estabelece normas gerais sobre o comércio exterior de mercadorias, alinhando a legislação brasileira às melhores práticas internacionais presentes em tratados assinados pelo Brasil, como a Convenção de Quioto Revisada (no âmbito da OMA – CQR/OMA) e o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (da OMC – AFC/OMC). Em cinco colunas do Território Aduaneiro, o leitor pode acompanhar a concepção [3], os impactos [4], a consulta pública [5], a busca pelo consenso [6] e a veiculação do PL 4.423/2024 [7].

As poucas críticas ao projeto se referem às ausências, mormente de temas como tributos, penalidades e contencioso, e fazemos coro a elas, apesar de compreender que tais temas não estão hoje suficientemente disciplinados em tratados internacionais, e nem uniformizados em melhores práticas, havendo ainda a percepção de que esses assuntos poderiam ficar para um segundo (ou um terceiro) momento, posterior à reforma tributária e à restruturação do contencioso administrativo (veiculada em uma série de projetos em trâmite legislativo), possibilitando a posterior sistematização e redução do universo de infrações e penalidades.

Em 13/11/2024 iniciou o trâmite legislativo do PL, na 13ª Reunião Extraordinária da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, tendo o senador Espiridião Amin, na ocasião, proferido palavras que pareceriam antever o cenário internacional que se desenhou no início do ano seguinte: “…o Brasil procura fazer jus ao seu destino de uma potência de comércio, uma potência que prega a paz. E, quanto mais intensificarmos o comércio, menos pensaremos em agressões físicas. Uma das melhores maneiras de se ter relações pacíficas é ter relações comerciais e intercâmbio cultural e tecnológico pacíficos”.

Em 18/11/2024 o projeto foi autuado, sendo aberto à apresentação de emendas de 21 a 29/11/2024, mas nenhuma emenda foi apresentada, tendo sido o texto enviado à Comissão de Assuntos Econômicos em 2/12/2024.

Trâmite na CAE – Emendas
Na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), a relatoria do projeto foi atribuída ao senador Fernando Farias em 12/3/2025, tendo o relator apresentado parecer favorável ao projeto com uma emenda de sua autoria, que alterou o artigo 3º (que trata de regulação, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior de mercadorias, incluindo um §2º, prevendo expressamente na legislação nacional a possibilidade de adoção de medidas de defesa comercial), o artigo 4º (que trata de diretrizes, acrescentando uma que estabelece identidade de requisitos entre produção e comércio interno com importação), o artigo 27 (que trata de não discriminação, incluindo um parágrafo único com lista de sete exceções), o artigo 35 (incluindo o trânsito nas medidas de facilitação), o artigo 37 (agregando parágrafo único que parece retroceder em relação ao avanço promovido na Lei 14.195/2021, resgatando a aplicação restritiva de tratamento administrativo para casos de suspeita de cometimento de infrações), o artigo 80 (deixando mais subjetivo o texto do §2º, dispensando a observância da ordem estabelecida no § 1º), e o artigo 82 (ampliando a remissão anterior a toda a Lei 13.874/2019 e, ainda, à Lei 14.195/2021).

Spacca
Rosaldo Trevisan tarja

Na CAE, o projeto recebeu, inicialmente, a Emenda 1, do senador Mecias de Jesus (com alteração no artigo 35, de teor semelhante ao já adotado pelo relator), as Emendas 2 a 9, do senador Hamilton Mourão (propondo alterações nos artigos 36, §1º; 38, §2º; 65; 75, §1º; 99, VI; 108, §2º; 111, parágrafo único; e 121, §1º; todas relacionadas com defesa nacional), e as Emendas 10 a 14, do senador Eduardo Girão, todas tratando de diretrizes de comércio exterior (embora posicionadas em distintos locais do texto): a Emenda 11 propôs agregar uma diretriz no artigo 35 (recordando-se que as diretrizes estão no artigo 4º do PL); a Emenda 13 buscou aumentar o rol de interesses tutelados no artigo 3º e determinar a observância de lei interna; e a Emenda 14 objetiva acrescentar dois artigos preocupados com o cenário internacional de protecionismo, prevendo medidas retaliatórias. A Emenda 10, por seu turno, objetivou alterar o artigo 27, retirando o parágrafo único proposto pelo relator, substituindo-o por dois parágrafos que já encontram comandos semelhantes em outros artigos do texto: o § 1º (que trata de previsibilidade e conformidade, já presente, v.g., no artigo 4º), e o § 2º (coincidente com os interesses tutelados de que trata o artigo 3º). Por fim, a Emenda 12 adicionou dois incisos ao artigo 4º, aparentemente sobrepondo aquele originalmente proposto pelo relator, para tratar do incentivo à conformidade e da observância ao AFC/OMC e a lei interna, retirando do parágrafo único (regulação em legislação específica) a menção a tributos.

Trâmite na CAE – Relatório Legislativo
Entre as emendas aqui referidas, o relator acolheu apenas as de número 10 e 12. Mas, em seu relatório, o Senador Fernando Farias destacou que recebeu ainda “…valiosas contribuições dos Senadores Eduardo Braga e Ciro Nogueira, da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado e da Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo, bem como de órgãos do Poder Executivo e de representantes da iniciativa privada”, o que culminou em alteração dos seguintes artigos do PL: artigo 3º (com um §1º basicamente mantendo o texto original, mas remetendo à observância de “acordos”, que refletem apenas uma espécie do gênero “tratados”, na denominação adotada pela Convenção de Viena sobre o Direito do Tratados, da qual o Brasil é parte, e um §2º, que prevê medidas de defesa comercial, respeitados os “acordos” internacionais e observada a “legislação aplicável”); artigo 4º (basicamente mantendo o texto original do relator, mas agregando, no parágrafo, a necessidade de observância a “acordos”); artigo 27 (flexibilizando a não discriminação prevista no caput, condicionando-a à observância da “legislação aplicável”, e mantendo a relação proposta na Emenda 10, conflitiva com o artigo 3º, como parágrafo único), artigo 35 (agregando o trânsito nas medidas de facilitação), artigo 37 (mantendo a proposta de tratamento administrativo restritivo em caso de suspeita de cometimento de infrações), artigo 80 (mantendo a subjetividade no texto, para a aplicação de tratamentos administrativos conforme o grau de risco das operações), artigo 136 (ausente no texto escrito das emendas, mas permitindo como modalidade de extinção da aplicação do EIZOF a reexportação) -aqui, para não haver desbalanceamento do sistema, outros regimes similares, como o próprio entreposto aduaneiro, deveriam também contemplar a medida, cabendo ainda salientar que nos parágrafos acrescentados, é ampliado o regime na Zona Franca de Manaus e agregada a autorização para exigência de taxa (diga-se, em local inadequado na norma, tendo em conta que as taxas estão tratadas no artigo 33 do PL, e que não pode haver autorização para taxas em dissonância com tal disposição), artigo 137 (também ausente no texto escrito das emendas, agregando um parágrafo que permite o não cumprimento do processo produtivo básico (PPB), na proporção das exportações realizadas a partir da Zona Franca de Manaus por empresa industrial beneficiada, na forma a ser regulada em norma de hierarquia inferior), artigo 156 (igualmente não contemplado nas emendas escritas, e também tratando de Zona Franca de Manaus, regressando à legislação de 1967 – cuja revogação parcial é desautorizada ao final), artigo 157 (mais uma vez inovando em relação a emendas escritas e tratando da Zona Franca de Manaus, com hipótese de desobrigação de cumprimento de PPB), e artigo 157 (alongando em 23 anos os benefícios das Áreas de Livre Comércio). São ainda suprimidos os incisos II, III e XIV do artigo 170 (que tratam de revogações de temas consolidados no texto do projeto, e que, portanto, permanecerão com vigência dúplice).

Após o relatório, a matéria foi retirada de pauta, em 8/4/2025.

E, em 5/5/2025, recebeu novas emendas do senador Mecias de Jesus: a Emenda 15 (criando artigo novo, tratando de “diferimento tributário” aplicável à importação de bens de capital e à produção nacional de bens de capital similares); a Emenda 16 (com artigo novo, que trata de devolução “em moeda corrente” de créditos acumulados na exportação); a Emenda 17 (que propõe agregar dois parágrafos ao artigo 3º, para tratar de “normas de rastreamento de mercadorias de origem vegetal”); a Emenda 18 (que altera o inciso II do artigo 13, para melhor especificar quais forças poderiam auxiliar a aduana no caso de riscos à segurança); e a Emenda 19 (que cria artigos autorizando as aduanas, basicamente, a verificar mercadorias em determinados locais, o que já encontra previsão no artigo 12 do PL, possibilitando ainda apreensão e aplicação de penalidades, e prevendo que determinados recursos seriam “disponibilizados”, sem indicar fonte, tratando ainda de princípios já contemplados no artigo 4º , VII e X do PL).

Por fim, em 8/5/2025, o senador Laércio Oliveira apresentou a Emenda 20, que busca alterar o artigo 101, para tratar dos casos de trânsito aduaneiro com pagamento prévio de tributos, na hipótese de registro antecipado da declaração de importação, com continuidade do despacho em outra unidade aduaneira.

Cenas dos próximos capítulos
Ao contrário de projetos polêmicos, que dividem as casas legislativas, o PL 4.423/2024 reflete um texto em que há majoritária convergência de posicionamentos. Embora isso certamente não seja um medidor confiável, pela baixa participação popular, quando se consulta o referido PL no Senado [8] (local onde o leitor pode ver o texto na íntegra, e todos os relatórios e emendas que aqui resumimos), as totalidade das pessoas (lamentavelmente, apenas seis) que votaram na enquete do site concordam com o PL. Essa convergência de ideias em prol do texto do PL, como uma melhoria no ambiente de comércio exterior, é ainda visível, em minha percepção, nos operadores de comércio exterior e na sociedade, nos vários eventos em que tenho participado.

Assim, os poucos riscos que podem afligir o PL, em verdade, são meramente aparentes: (a) cenário internacional e nacional que pareça não priorizar o tema — em verdade, tanto o cenário internacional quanto o nacional clamam pela regulação do tema, que trará previsibilidade, segurança jurídica e alinhamento às melhores práticas internacionais, entre outros benefícios, cuja importância se intensifica no atual panorama geopolítico-comercial internacional; (b) desconfiança por parte de órgãos públicos de que haveria conflitos de competência não resolvidos na norma — essa questão já está resolvida no parágrafo único do artigo 1º , que deixa claro que o PL não modifica “as competências da administração aduaneira e dos órgãos intervenientes”; e (c) excessiva e compreensível vontade parlamentar de inclusão de benefícios fiscais no PL, o que pode e deve ser analisado no processo legislativo, sempre com a preocupação de indicar contrapartida orçamentária.

É certo que o rito ainda é longo, e que depois da esperada aprovação no Senado o PL ainda segue à Câmara dos Deputados. Contudo, é de se registrar que o trâmite não parece encontrar obstáculos significativos, e as Emendas apresentadas até o momento estão, em sua maioria, conservando a modernidade e a sistematização daquele texto que se espera reencontrar em breve, como uma Lei Geral de Comércio Exterior.

Aqui no Território Aduaneiro estamos de olho no andamento do PL 4.423/2024, sempre na esperança de que ele, onde quer que esteja, volte a nos dar o ar da graça, e não se distancie muito do admirável objetivo para o qual foi concebido.

No caso do PL, o motivo da esperança de reencontro é o desejo de um país melhor e mais desenvolvido (e não a paixão, sentimento incomparável tratado na letra de Toquinho e Vinícius), mas, ainda assim, aproveitamos, ceteris paribus, a conclusão da letra da memorável canção: “…você bem que podia me aparecer, nesses mesmos lugares, na noite nos bares, onde anda você”.

[1] Sugere-se ao leitor, como pano de fundo da coluna, ouvir a música-tema, em: https://www.youtube.com/watch?v=5COwRYGAavg.

[2] Na Apresentação do PL no Senado, o Senado Espiridião Amin tece agradecimentos nominais ao grupo técnico, como registrado à fl. 67 do Avulso, disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166166. No mesmo Avulso são ainda identificadas propostas do setor público, do setor privado, e comuns a ambos.

[3] TREVISAN, Rosaldo. Lei Geral de Comércio Exterior: um alinhamento importante, em 17 de setembro de 2024 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-17/lei-geral-de-comercio-exterior-um-alinhamento-importante.

[4] BRANCO, Leonardo, ANDRADE, Thális. Lei Geral de Comércio Exterior e a modernização das aduanas, em 15 de outubro de 2024 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-15/820823.

[5] PIERI, Fernando. Anteprojeto da Lei Geral de Comex: comentários (parte 1), em 22 de outubro de 2024 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-22/anteprojeto-da-lei-geral-de-comex-comentarios-parte-1

[6] TREVISAN, Rosaldo. Churchill, Caetano e o ‘tema do momento’, em 5 de novembro de 2024 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-05/churchill-caetano-e-o-tema-do-momento.

[7] PIERI, Fernando. Anteprojeto de Lei Geral de Comex (parte 2): PL nº 4.423/2024, em 26 de novembro de 2024 – disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-nov-26/anteprojeto-de-lei-geral-de-comex-parte-2-pl-no-4-423-2024.

[8] Em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166166, onde estão dados transparentes sobre documentos, publicações, emendas e tramitação.

Rosaldo Trevisan

é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

Depo 25 Bonus 25

Depo 25 Bonus 25