Leasing internacional. Superação do impasse pelo STF

Kiyoshi Harada

O STF deu a única interpretação possível ao disposto na letra a do inciso IX, do § 2º, do art. 155, da CF, exigindo a circulação jurídica de bem ou de mercadoria importada do exterior como condição da incidência do ICMS previsto na CF.

Quanto à incidência ou não do ICMS no leasing internacional, a discussão teve início com base no disposto, no art. 3º, inciso VIII, da Lei Complementar nº 87/96, lei de regência nacional do ICMS, vazado nos seguintes termos:

Art. 3º O imposto não incide sobre:

VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário.

À luz desse dispositivo a jurisprudência do STF fixou o entendimento de que não incide o imposto na importação de equipamento objeto de contrato de arrendamento mercantil, consignando que o fato gerador do ICMS somente ocorrerá quando o bem arrendado incorporar-se ao patrimônio de arrendatário, caracterizando, nessa hipótese, a circulação mercantil.

Outrossim, o STF firmou posição acerca da não incidência do ICMS na importação de veículo por pessoa física para uso próprio (RE nº 203.075).

Depois foi editada a Súmula nº 660 do STF com a seguinte redação:

“Não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto”.
A exemplo do que aconteceu com a Emenda Passos Porto que enterrou nada menos que três teses consolidadas pelo STF, o legislador constituinte derivado reagiu ao entendimento da Corte Suprema, alterando, por via da EC n° 33/2001, a redação da letra a, do inciso IX, do § 2º, do art. 155 da CF para os seguintes termos:

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre:

II – Operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

IX – incidirá também:

a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”.

Essa emenda ampliou o campo de incidência do ICMS nas importações, não mais limitadas a mercadorias, pelo que qualquer pessoa física ou jurídica que promova a importação de bens passa a ser contribuinte do ICMS, independentemente de haver ato de mercancia ou não, bastando a simples entrada de um bem a qualquer título.

Essa reação afrontosa do legislador constituinte derivado que, na realidade, infringe o princípio da separação dos poderes, gerou uma enorme discussão jurisprudencial, com reflexo na área de serviços especificados na lista nacional de serviços que estão fora do campo de incidência do ICMS. O imposto estadual só pode incidir sobre a prestação do serviço de comunicação e dos serviços de transportes interestadual e intermunicipal ainda que iniciados no exterior.

Assim, surgiu no STF a tese de que o inciso VIII, do art. 3º, da LC nº 87/96 só tem aplicação no âmbito do leasing interno (RE nº 206.069). Transcrevamos, para maior clareza, trecho do voto da Ministra Relatora Ellen Gracie, condutora da decisão majoritária:

“O exame desse dispositivo revela que, nessa circunstância, a imposição de ICMS prescinde da verificação da natureza do negócio jurídico ensejador da importação. A Constituição Federal elegeu o elemento fático ‘entrada de mercadoria importada’ como caracterizador da circulação jurídica da mercadoria ou do bem, e dispensa indagações acerca dos contornos do negócio jurídico realizado no exterior.

Veja-se que, a par de incidir sobre ‘operações relativas a circulação de mercadorias’, fez o constituinte de 1988 constar do texto constitucional a expressa ressalva da incidência sobre a ‘entrada’ do bem ‘importado’”.

Interpretar o disposto na letra a, do inciso IX, do § 2º de forma isolada, sem conexão com o caput do art. 155, inciso II, da CF conduz à bitributação jurídica, pois a entrada do bem importado configura fato gerador do imposto de importação (art. 19 do CTN) conforme sustentado pelo STJ no REsp nº 622283.

E mais, o leasing nacional ou internacional, pouco importa, só se sujeita à incidência do ISS, pois a Constituição vigente não ressalvou a bitributação jurídica nesse particular, a exemplo do que havia feito originalmente em relação à venda a varejo de combustíveis líquidos e gasosos exceto óleo diesel, que estava inserido tanto na competência tributária do Estado (ICMS) como na competência tributária do município (IVV). Hoje, não há mais possibilidade de qualquer bitributação jurídica.

O leasing internacional sujeita-se apenas ao ISS, nos termos do art. 1º e § 1º, da Lei Complementar nº 116/2003, e item 15.09 da lista anexa c.c art. 156, III, da CF.

No meu entender o legislador constituinte derivado, ao promulgar a EC nº 33/01, não instituiu e nem pretendeu instituir a bitributação jurídica (ICMS/II, ou ICMS/ISS). Visou, tão somente, esvaziar a tese da não incidência do ICMS na importação de bens.

Entretanto, mesmo após a reversão da tese da tributação do leasing internacional pelo ICMS, o que se deu no julgamento do RE nº 461.968, Dje de 23-8-2007, a discussão em torno da nova redação conferida à letra a, do inciso IX, do § 2º, do art. 155, da CF continuou sustentando que a imposição do ICMS prescinde da verificação da natureza do negócio jurídico ensejador da importação. Em outras palavras, a circulação jurídica, assim entendida como operação que implique transferência de propriedade é irrelevante para fins de tributação do ICMS com base na nova redação conferida pela EC nº 33/2001. Para serem bem diferenciados o antes e o depois da emenda, foi editada a Súmula nº 660 do STF nos seguintes termos: “Até a vigência da EC nº 33/2001, não incide ICMS na importação de bens por pessoa física ou jurídica que não seja contribuinte do imposto”.

De fato, nada impede o legislador constituinte derivado de criar um quarto imposto estadual com o nome de ICMS, porém, diferente daquele previsto no inciso II, do art. 155, da CF, ou com outro nome qualquer como, por exemplo, “ICMS incidente sobre bens importados do exterior”, na esteira do que ocorreu com PIS/PASEP-importação e COFINS-importação.

O que o legislador constituinte derivado não pode é lançar a confusão sustentando que o ICMS referido no inciso II, do art. 155, da CF não expressa circulação de mercadorias.

Ora, dizer que o ICMS referido no inciso II, do art. 155, da CF (circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior) incide também na entrada de bens ou mercadorias importados do exterior qualquer que seja a sua finalidade é o mesmo que afirmar que aquele ICMS não se caracteriza pela circulação jurídica, transformando-o em um autêntico imposto sobre transporte ou de deslocamento físico da mercadoria.

Se se tratar de ICMS referido no inciso II do art. 155 não pode desconsiderar o aspecto da circulação jurídica a exigir transferência de propriedade, o que não acontece com o leasing internacional que, como já o dissemos, caracteriza o fato gerador do ISS, e não do ICMS, ainda que haja a previsão de opção de compra e venda que é elemento estrutural do leasing financeiro.

De fato, o leasing financeiro de que estamos falando, por expressa disposição legal (Lei nº 6.099/74 com as alterações de Lei nº 7.132/83 e Resolução nº 2.309/96 do Banco Central) pressupõe a existência de tríplice opção conferida ao arrendatário: (a) devolver o bem arrendado ao arrendador no final do prazo contratual; (b) prorrogar o contrato de arrendamento ao final do prazo pactuado; (c) exercer a opção de compra ao final do prazo contratual.

Se faltar a cláusula de opção de compra pelo valor residual garantido não se tratará de leasing financeiro.

Logo, exercida a opção de compra, que faz parte integrante e indissociável do leasing financeiro ensejador da incidência do ISS, não poderá haver incidência do ICMS à sombra do obscuro art. 3º, inciso VIII, da Lei Complementar nº 87/96, que invadiu a competência impositiva municipal, estendendo o campo da incidência do ICMS para além dos serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

E mais, quando o arrendatário exercer a opção de compra, necessariamente no final do prazo de arrendamento mercantil, não mais haverá mercadoria a ser vendida, como bem asseverou o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[1], nem base de cálculo do ICMS, porque o valor residual já foi pago de forma parcelada juntamente às prestações mensais a cargo do arrendatário.

A Súmula nº 263 do STF foi cancelada posteriormente pela Corte Especial que passou a entender que o valor residual pode ser pago no decorrer do contrato de leasing, sem que implique operação de compra e venda a descaracterizar o leasing, uma vez que a Resolução nº 2.309/96 do Banco Central permite tal faculdade.

Como assevera José Eduardo Soarez de Melo, “considerando que a LC 116/03 reiterou a incidência do ISS sobre o leasing (item 15.09), sem nenhuma ressalva de incidência do ICMS, pode-se entender que restaria prejudicado o preceito da LC 87/96 (art. 3º, VIII), que dispusera sobre a tributação estadual”.[2]

No julgamento do RE nº 540.829/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, onde foi reconhecida a existência de repercussão geral da matéria constitucional debatida, o STF encerrou definitivamente a controvérsia decidindo, por maioria de votos, vencidos o Ministro Relator e o Min. Teori Zavaski, que não há incidência do ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, nos termos da ementa abaixo:

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. ICMS. ENTRADA DE MERCADORIA IMPORTADA DO EXTERIOR. ART. 155, II, CF/88. OPERAÇÃO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL INTERNACIONAL. NÃO-INCIDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O ICMS tem fundamento no artigo 155, II, da CF/88, e incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. 2. A alínea “a” do inciso IX do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, na redação da EC 33/2001, faz incidir o ICMS na entrada de bem ou mercadoria importados do exterior, somente se de fato houver circulação de mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio (compra e venda). 3. Precedente: RE 461968, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 30/05/2007, Dje 23/08/2007, onde restou assentado que o imposto não é sobre a entrada de bem ou mercadoria importada, senão sobre essas entradas desde que elas sejam atinentes a operações relativas Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 6939018. Supremo Tribunal Federal Inteiro Teor do Acórdão – Página 1 de 65 Ementa e Acórdão RE 540829 / SP à circulação desses mesmos bens ou mercadorias. 4. Deveras, não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra, quando configurada a transferência da titularidade do bem. Consectariamente, se não houver aquisição de mercadoria, mas mera posse decorrente do arrendamento, não se pode cogitar de circulação econômica. 5. In casu, nos termos do acórdão recorrido, o contrato de arrendamento mercantil internacional trata de bem suscetível de devolução, sem opção de compra. 6. Os conceitos de direito privado não podem ser desnaturados pelo direito tributário, na forma do art. 110 do CTN, à luz da interpretação conjunta do art. 146, III, combinado com o art. 155, inciso II e § 2º, IX, “a”, da CF/88. 8. Recurso extraordinário a que se nega provimento” (RE nº 540.829/SP-RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 16-6-2015).
À primeira vista parece impressionante a tese sustentada pelo eminente Min. Relator Gilmar Mendes:

“O ICMS não pode ser visto, atualmente, como um imposto incidente apenas sobre operações mercantis e alguns serviços, mas também como um imposto que incide sobre importações. Poder-se-ia ter-lhe conferido nova denominação, mas o Constituinte Derivado optou por manter a tradicional nomenclatura”.
Em tese, está correto o eminente Ministro. Certamente, nada impede o Constituinte Derivado de prever a instituição de um quarto imposto para os Estados, pois o princípio da não bitributação jurídica é um princípio implícito que decorre da discriminação constitucional de impostos.

Isso aconteceu em relação ao PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação em que a EC nº 42/2003 acrescentou o inciso IV ao art. 195 da CF, prevendo a contribuição “do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equipar”.

Com fundamento nesse inciso IV, do art. 195, da CF a União instituiu o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação pela MP nº 164 de 29-1-2004 convolada na Lei nº 10.865/2004 com pequenas alterações.

Nos termos do art. 3º dessa Lei, essas contribuições não incidem sobre a totalidade da receita bruta do contribuinte, como ao PIS/PASEP e COFINS tradicionais, mas apenas sobre a “entrada de bens estrangeiros no território nacional ou o pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior como contra-prestação do serviço prestado”.

Uma coisa é a faculdade de o Constituinte Derivado alargar o rol de impostos conferidos privativamente a cada entidade política, que não se confunde com o exercício da competência tributária residual conferida apenas à União, com as limitações predeterminadas (art. 154 da CF), e outra coisa bem diversa é o Constituinte Derivado conferir competência tributária privativa para o Estado instituir determinado imposto, no caso, o ICMS com as características previstas no inciso II, do art. 155, e ao mesmo tempo pelo seu § 2º descaracterizar o ICMS previsto no caput, fazendo incidir o aludido imposto sobre mera entrada de bens ou mercadoria sem que haja “operação relativa à circulação de mercadorias” que na interpretação do STF implica operação de compra e venda, ou seja, circulação jurídica.

Alterando o elemento nuclear ou material do fato gerador do ICMS – circulação jurídica –, esse imposto deixará de ser aquele referido no inciso II do art. 155 da CF, pouco importado a denominação mantida. ICMS sem circulação jurídica não é aquele ICMS previsto no caput do art. 155 da CF. Como imposto novo que fica sendo não poderá prescindir de lei ordinária que o institua, definindo o respectivo fato gerador como sendo “a entrada de bens ou mercadorias importados do exterior por pessoa física ou jurídica”. E não poderá incluir a operação de arrendamento mercantil procedente do exterior, sob pena de invadir a esfera de competência do Município.

Por tudo isso, entendo que o STF deu a única interpretação possível ao disposto na letra a do inciso IX, do § 2º, do art. 155, da CF, exigindo a circulação jurídica do bem ou mercadoria importada do exterior como condição da incidência do ICMS previsto no caput do art. 155 da CF.

Confiante nessa tese, em 27 de maio de 2004, ajuizamos a favor de um cliente, contra a Fazenda do Estado de São Paulo, ação declaratória de inexigibilidade de crédito tributário pago pelo regime de parcelamento, cumulada com a ação de repetição (proc. nº 583.53.2004.016797-2), que foi julgada procedente, reconhecendo a nulidade do pedido de parcelamento e ordenando a restituição do ICMS pago. Entretanto, o TJSP reformou essa escorreita decisão monocrática, julgando a ação improcedente. Interposto o Recurso Especial perante o STJ o recurso foi provido restabelecendo-se na íntegra a decisão de primeira instância (Resp nº 1.34895-SP). A Fazenda do Estado ingressou com o Recurso Extraordinário contra a decisão proferida pelo STJ. Entretanto, o STJ sobrestou o andamento do Recurso Extraordinário, tendo em vista que o STF reconheceu a existência de repercussão geral no RE nº 540.829/SP. No julgamento final, o Colendo STF, contra os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Teori Zavascki, acolheu a tese de não incidência do imposto no leasing internacional, porque mera entrada de bem importado do exterior sem que haja circulação jurídica não caracteriza o ICMS previsto no inciso II, do art. 155, da CF.

Fico a imaginar como pode uma reação do legislador constituinte derivado contra a soberana decisão da Corte Suprema causar tanta insegurança jurídica e atravancar por mais de dez anos a prestação jurisdicional do Estado.

NOTAS

[1] Ap.Civ. nº 57.384-5-/SP, Rel. Des. Guerrier8i Rezende, JTJ vol. 218, Lex, julho de 1999, p. 74-78.

[2] ISS – Aspectos teóricos e práticos. 4. ed.; São Paulo: Dialética, 2005, p.105.

Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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