IPVA: o que pouco se fala sobre a reforma tributária

Hugo de Brito Machado Segundo

Quando se cogita da reforma tributária, nos meios de comunicação, e mesmo em eventos técnicos específicos, geralmente se menciona a tributação sobre o consumo, e, em particular, o IVA-Dual. Imposto sobre Bens e Serviços, e Contribuição sobre Bens e Serviços, e todas as implicações processuais e materiais que o tema traz. E, de fato, a reforma essencialmente trata disso, sendo este o seu aspecto central.

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Neste artigo, contudo, pretendo tratar de alguns pontos não relacionados diretamente com tais linhas mestras, e que talvez tenham sido inseridos na Emenda Constitucional 132/2023 apenas para se “aproveitar a oportunidade” de um Congresso simpático à ideia de modificar o sistema constitucional tributário.

Refiro-me à ampliação do âmbito de incidência do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), e ao alargamento das finalidades a serem atendidas pela contribuição de custeio do serviço de iluminação pública (Cosip).

Interpretação histórica
Quanto ao IPVA, sabe-se que o Supremo Tribunal Federal (STF), realizando uma interpretação histórica, calcada na antiga taxa rodoviária única que deu origem a este imposta, e que não era taxa (pois tinha base de cálculo de imposto), não era rodoviária (porque devida mesmo por quem não usasse rodovias), tampouco única (porquanto cobrada juntamente com a taxa de licenciamento), considerou que ele, o IPVA, não poderia alcançar embarcações ou aeronaves, mas apenas veículos terrestres.

Com base nesses fundamentos, declarou inconstitucionais dispositivos de leis estaduais que pretendiam tributar a propriedade de tais bens, como lanchas, helicópteros etc.

Com a EC 132/2023, inserem-se tais veículos, de modo expresso, no âmbito de incidência do imposto, que passa a poder alcançá-los.

A mudança talvez tenha sido mais retórica, ou simbólica, do que efetiva, dada dimensão e a extensão das exceções inseridas no texto constitucional, sob a forma de verdadeiras imunidades; mas, ainda assim, alguns veículos serão alcançados.

Mas não se pense — e este é o aspecto que se pretende frisar neste artigo — que basta a alteração constitucional para que os Estados-membros, e o Distrito Federal, automaticamente, já possam lançar o imposto sobre a propriedade de barcos, aviões, lanchas etc., com amparo na legislação estadual pré-existente.

Será preciso editar novas leis estaduais, atendendo a todos os princípios constitucionais aplicáveis, como a anterioridade, para que se possa fazê-lo.

Isso porque as leis estaduais pré-existentes, mesmo que expressamente prevejam a incidência do IPVA sobre embarcações e aeronaves, se anteriores à EC 132/2023, eram, neste ponto, inconstitucionais, como já reconhecido pelo STF, não se “convalidando” pelo fato de o texto constitucional posterior se ter tornado compatível com elas.

A Corte, aliás, já teve a oportunidade de manifestar entendimento nesse sentido, quando da ampliação da base de cálculo da Cofins levada a efeito pela EC 20/1998, que não foi considerada suficiente para validar a tributação de receitas não operacionais (não enquadradas no conceito de faturamento) autorizada por lei ordinária anterior (Lei 9.718/98 – RE 346.084/PR).

Conflitos de competência
Outro ponto a ser destacado é o da necessidade, ou não, de edição de lei complementar nacional destinada a evitar conflitos de competência (CF/88, artigo 146, I). O

STF reconheceu a essencialidade da prévia edição de lei dessa natureza, para que os entes federativos possam validamente exercer a competência tributária que lhes confere a Constituição, em relação ao imposto de renda estadual (Aire – RE 136.215-4/RJ), e ao ICMS, seja o incidente sobre transporte aéreo de passageiros (ADI 1600/DF), seja o diferencial de alíquota nos casos referidos pela EC 87/2015, seja o ITCMD incidente sobre heranças e doações oriundas do exterior (aspecto que a reforma também regulamentou — artigo 16 d EC 132/2023), mostrando ser mais fácil inserir um cascudinho em uma PEC embalada politicamente do que editar uma lei infraconstitucional.

Em todos esses casos, a possibilidade de surgirem conflitos de competência entre Estados-membros e Distrito Federal fez com que o STF condicionasse o exercício da competência à prévia edição de lei complementar traçando normas gerais a serem observadas por todos.

No caso do IPVA, estabeleceu-se um distinguishing. Entendeu-se que, sendo os veículos licenciados junto ao departamento de trânsito de cada Estado-membros, ou do Distrito Federal, seria este mesmo ente federativo o competente para exigir o respectivo IPVA, inexistindo espaço para conflito (AI 167.777 AgR/SP).

Daí ser o IPVA um imposto estadual que, previsto na Constituição apenas após a edição do CTN, e desobrigado de possuir normas gerais pelo entendimento do STF, não possui qualquer norma geral em lei complementar nacional definindo seu perfil ou tratando de conflitos de competência.

A questão é que, com a previsão de que incidirá sobre embarcações, e aeronaves, a edição de uma lei complementar se pode mostrar necessária.

Mais dúvidas
O imposto será devido ao ente federativo em que domiciliado o proprietário do veículo? E se se tratar de pessoa jurídica com mais de um estabelecimento no país? E se a pessoa jurídica for situada no exterior? Ou mesmo pessoa física, mas com mais de uma residência? Em qual estado será devido o IPVA?

A simplicidade do registro no Detran, que levou o STF a considerar desnecessárias as normas gerais nacionais, em um claro distinguishing de seu entendimento pacífico quanto aos outros impostos, desaparece, deixando a questão em aberto.

O outro ponto, ainda menos comentado, diz respeito à Cosip, que agora poderá ser utilizada para custear serviço de videomonitoramento usado pelo Poder Público.

Neste caso, a questão que coloco, aqui, não é de Direito Tributário, mas referente à proteção de dados, porque o fato de se ter incluído essa previsão no artigo 149-A da CF/88 pode parecer ter “constitucionalizado” o uso de câmeras nas vias públicas, as quais filmam initerruptamente cidadãos e seus veículos, reconhecendo faces de pessoas e placas de carros, para assim capturar suspeitos, apreender veículos etc., o que não é verdade.

A inserção de mais esse jabuti na reforma não foi antecedida de qualquer debate sobre privacidade, possibilidade de erros, vieses etc., que o uso de tais sistemas suscita, sendo certo que o direito à proteção de dados é objeto de expressa e específica proteção constitucional (artigo 5.o., LXXIX).

Não se está, note-se, manifestando posição contra o uso de câmeras de videomonitoramento. Nem a favor. Apenas salientando que o artigo 149-A pode sugerir, com sua redação dada pela EC 132/2023, que esse uso está constitucionalmente autorizado, pois até mesmo se prevê uma contribuição para financiá-lo.

Só que o tema não contou com a discussão que precisaria ter havido para tanto, carecendo, no plano da proteção de dados, da intimidade, e mesmo do processo penal, ser ainda devida e criteriosamente disciplinado.

Hugo de Brito Machado Segundo

mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ex-coordenador (2012/2016) do programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) da UFC, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena, na Áustria.

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