Instrumentalidade e a relação entre transação, NJP e parcelamento

Paulo Cesar Conrado

O fortalecimento dos meios alternativos à jurisdição “usual” em ambiente tributário – fato mais do que notório desde quando introduzidas no sistema pátrio figuras como a da transação e do plano de amortização/pagamento em negócio jurídico processual – tem sido acertadamente enaltecido pela comunidade jurídica lato sensu considerada.

Tanto assim que, pouco a pouco, contribuintes, para além dos Fiscos (sobretudo o federal), têm sido iterativamente chamados a considerar, no momento da definição de suas estratégias, a possibilidade de “renunciar” ao fluxo dos processos “tradicionais” (um fluxo muitas vezes desgastante e pouco efetivo), buscando adotar, no lugar disso, outro(s) encaminhamento(s) – justamente os que, saindo do lugar comum da beligerância intransigente, tendem à consensualidade.

Transação e negócio jurídico processual – notadamente, nesse último caso, os que envolvem a formulação de plano customizado de amortização/pagamento – representam, hoje, os grandes protagonistas nesse movimento (r)evolucionário, sem prejuízo da iminente inclusão de outras personagens no subsistema das ferramentas alternativas, como a mediação e a arbitragem.

A par da fortíssima massa crítica constituída no sentido da valorização desses mecanismos, alguns embaraços teórico-conceituais ainda persistem, estando boa parte desses embaraços a que nos referimos aparentemente atrelados a uma espécie de “visão retrospectiva”, aquilo que coloquialmente nós definiríamos como “olhar em retrovisor”.

Parcelamento e retroalimentação

Explicamos: no passado recente, antes da semeadura dos meios alternativos, grande parte dos contribuintes que almejassem sair do ambiente jurisdicional, podiam contar, de tempos em tempos, com a possibilidade de acessar algum(ns) dos inúmeros e sucessivos programas de parcelamento disponibilizados pelos Fiscos, estruturas mobilizadas muito mais por intenções político-arrecadatórias do que por convicção de que soluções consensuais são as mais saudáveis.

Sabedores desse “hábito”, parte dos contribuintes apropriava-se da expectativa de um possível parcelamento e assim se organizavam financeiramente, num movimento de retroalimentação viciosa de posturas que, nem de um lado, nem de outro, se mostravam verdadeiramente republicanas – a despeito de sua irrecusável legalidade.

A pecha adquirida pela figura do parcelamento, nesse cenário, não poderia ser pior, formando-se, apesar de sua juridicidade, uma espécie de preconceito negativo a respeito de seu uso.

Notem, de todo modo, que essa brevíssima e descomprometida descrição diz respeito ao passado – ainda recente, mas passado, de qualquer maneira.

Transação tributária

Focados no presente, precisamos urgentemente deixar de olhar para o retrovisor e entender definitivamente: transação e plano de amortização/pagamento em negócio jurídico processual representam outra realidade, mesmo que identificável, em seu conteúdo, a presença de parcelamentos.

Fixemo-nos na transação federal (embora o racional seja o mesmo para o negócio jurídico processual) para entender o que se passa.

Por objetivar a solução de litígio tributário fazendo-o mediante concessões recíprocas, referida figura inevitavelmente suscitaria o atravessamento de instrumentos viabilizadores das mencionadas concessões.

Pois um desses instrumentos é precisamente o parcelamento, figura que entra em cena quando se cogita a celebração de uma transação (assim como ocorreria no plano de amortização/pagamento em negócio jurídico processual) não por outra razão, senão porque é, como sucede com a outorga de descontos, uma das mais potentes ferramentas para que Fiscos-transacionantes, sem transbordar os limites do direito, concedam vantagens aos contribuintes que queiram assumir a mesma posição, a de transacionante.

Se o direito é instrumental e, nessa linha, o tributário não tem nada de diferente, não podemos perder de vista que essa instrumentalidade tão bem compreendida em termos teóricos, é o que explica a relação existente entre parcelamento e transação.

Quando utilizado no âmbito de um caso concreto de transação, o parcelamento entra em cena não como protagonista (o mesmo protagonista do passado, um verdadeiro vilão, legitimamente tão criticado pelos que postulavam, e ainda postulam, um sistema tributário sério), mas sim como instrumento viabilizador de uma das possíveis concessões factíveis pela administração, materializando, por derivação, a própria efetivabilidade da transação, tudo sem que daí decorra – e aí está o salto de compreensão que precisamos dar – a sobreposição das duas figuras.

Transação instrumentaliza a composição de litígio tributário, fazendo-o por meio de concessões recíprocas, o que, se do lado do contribuinte, pode ensejar a renúncia ao debate judicial, do lado do Fisco pode envolver a outorga da possibilidade de pagamento parcelado, apresentando-se a velha figura (do parcelamento), no novo contexto, como ferramenta ensejadora da extinção do crédito, cumprindo-se, nesse sentido, o desiderato simultaneamente contemplado pela legislação brasileira para as transações – além de por fim ao litígio (CTN, 171), a transação tenderia a instrumentalizar a extinção do crédito até então debatido (CTN, 156, III), tudo como se em círculos concêntricos essas figuras estivessem.

O revestimento formal que instrumentaliza (1) a satisfação do crédito e (2) a simultânea expulsão do estado de litigiosidade, notem, seria a transação, um instrumento que, em sua complexidade constitutiva, reclama a presença das decantadas concessões mútuas, justamente o ponto de potencial atração do parcelamento, personagem que assume, nesse sentido, o papel de “instrumento do instrumento”, sendo, por isso mesmo, inconfundível com o instituto que a alberga – a transação.

Olhando para a imagem que registramos, note-se, falar que um (transação) e outro (parcelamento) representam a mesma coisa seria o mesmo que ignorar a relação de continência entre eles havida – não de sinonímia –, daí resultando o gravíssimo equívoco e ainda reiterado de desprezar que a natureza de um instituto, em perspectiva formal, se define olhando para o invólucro de maior amplitude, aquele funciona como continente.

Essa forma de ver as coisas, para mais do que tentar colocar o passado no passado e controlar o ânimo de intérpretes mal-humorados, nos parece especialmente importante na prática tributária porque faz realçar a seriedade imanente à decisão de transacionar – incisivamente diferente da decisão de parcelar, aquela que se tomava no passado unicamente com fins estratégico-financeiros.

Nada disso quer significar que esse último aspecto (o estratégico-financeiro, reitere-se) não seja relevante quando falamos de uma possível transação (ou de um possível plano de amortização/pagamento em negócio jurídico processual) – seria irresponsável o contribuinte que não tomasse esse viés em consideração.

O que não se pode entender, no entanto, é que os institutos, porque relacionáveis em termos de continência, representam a mesma velha e desprezível ideia do passado – aquela que recaia sobre os parcelamentos, vistos, quiçá acertadamente, como um instrumento de uso político (lado do Fisco) e de “empurra-empurra” financeiro (lado do contribuinte).

Disso depende não só a dignificação teórico-conceitual desses meios alternativos, mas a nossa própria dignificação do futuro do ainda conturbado ambiente tributário.

Paulo Cesar Conrado

é juiz federal em São Paulo, mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, professor no programa de mestrado profissional em direito tributário da FGV Direito SP e professor e coordenador no curso de extensão “Processo Tributário Analítico” do Ibet.

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