Imunidade das entidades de educação e limites de utilização de seu superávit
Jeferson Teodorovicz , Thais de Laurentiis
Na coluna de hoje, trataremos de um debate interessante relacionado aos limites da concessão da imunidade para entidades de educação. A questão central trazida ao debate refere-se ao requisito legal da necessidade de aplicação integral de recursos no país, para manutenção dos objetivos estruturais da entidade imune (artigo 14, II do CTN).
Mais especificamente, a questão controversa na jurisprudência do Carf, a ser explorada, diz respeito à necessidade de aplicação imediata do superávit da entidade de educação imune em seus fins sociais.
Para bem compreender o tema, são necessárias algumas considerações introdutórias.
Como se sabe, as entidades de educação podem, se atenderem a alguns requisitos, obter a imunidade (condicionada) prevista na Constituição (artigo 150, VI, “c”) relativa aos impostos e, geralmente, podem usufruir também isenções concedidas pelos entes federativos, dada a alta relevância de seu papel formador na sociedade.
O artigo 146, II da própria CF remete à lei complementar a função de regular as limitações constitucionais tributárias. Para cumprir o texto constitucional acima mencionado, o Código Tributário Nacional (que possui status de lei complementar, pelo menos materialmente), no seu artigo 14, apresenta expressamente os requisitos necessários para obtenção e conservação da imunidade [1], dentre as quais, temos: a aplicação integral, no país, dos seus recursos para manutenção de seus objetivos estruturais; não distribuição de qualquer parcela de seu patrimônio ou rendas; e manutenção da escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
Em outras palavras, as entidades que se enquadrem na situação do artigo 150, da CF/88 (e, por decorrência, ao artigo 9ª do CTN), precisam cumprir os requisitos previstos no artigo 14 do CTN para adquirirem e preservarem o status de “entidade imune”.
É claro que tais requisitos guardam suas próprias peculiaridades de acordo com o tipo de entidade imune, suas atividades e a compreensão dos limites de atuação dessas para obtenção e manutenção do benefício. Assim, enquanto algumas atividades e distorções dos fins institucionais parecem de fácil identificação, não é raro que dúvidas surjam a respeito de situações não expressamente disciplinadas pela legislação.
É nesse sentido que os tribunais analisaram uma série de situações em que se questionava se as atividades voltadas à obtenção de recursos estariam “dentro” ou “fora” do que se considera “imune”.
Clássica é a situação de imóvel de entidade imune no âmbito do IPTU.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, restou consolidado o entendimento que a renda decorrente do aluguel de imóvel pertencente à fundação sem fins econômicos e lucrativos, em sendo revertida às suas atividades próprias, autorizam os plenos efeitos da imunidade [2]. Esse entendimento, inclusive, ficou consolidado na Súmula 724 e depois reforçado na Súmula Vinculante nº 52 do Supremo Tribunal Federal [3].
Noutro giro, confimou-se que enquanto a própria Constituição não proíba a cobrança por serviços realizados por entidade filantrópica ou sem fins lucrativos, a manutenção da imunidade exige apenas que esses recursos sejam integralmente aplicados na conservação dos seus próprios objetivos institucionais, sem distribuição de lucros.
Assim, para a jurisprudência judicial, o que importa é que a aplicação de recursos (ainda que com superávit) oriundos das atividades desenvolvidas pela entidade imune seja de fato feita na manutenção integral da própria atividade fim.
Como já mencionado, a discussão sofistica-se de acordo com a complexidade das atividades desenvolvidas pela entidade imune. Isso se vê de forma clara no contencioso administrativo tributário federal sobre as entidades relacionadas à educação.
Um primeiro aspecto controverso diz respeito às atividades de aplicação e correção de concursos públicos ou outros exames educacionais (tais como vestibulares), grandes geradoras de receita de diferentes entidades de educação. A fiscalização põe e xeque o enquadramento dessas fundações como “instituições de educação”.
A discussão tem sido pacificada no Carf no mesmo sentido do Judiciário [4], vale dizer, pela compreensão de que tais atividades encontram-se no campo material dos serviços educacionais, já que o conceito de educação, para fins da fruição da imunidade prevista no artigo 150, VI, “c” da Constituição, deve ser considerado de forma ampla, abrangendo toda e qualquer forma de acesso à cultura e à ciência, como preconiza o artigo 23, V do Texto Constitucional (cf. Acórdãos nº 1302.003.421 e nº 1201-003.192, entre outros). Nessa esteira, no Acórdão nº 103-23.662, o Carf entendeu que o conceito de ensino deve ser compreendido em sentido amplo, não se limitando às atividades de ministrar aulas (ensino em sentido estrito), mas englobando outros grupos de atividades, a saber: 1) o ensino no sentido estrito, 2) a pesquisa e 3) a extensão. Esse entendimento também se desdobrou para fundações ou entidades de amparo e apoio às universidades.
O segundo aspecto relevante é justamente a preocupação inicial do nosso artigo de hoje, qual seja, a necessidade de aplicação imediata do superávit da entidade de educação imune em seus fins sociais.
Sobre o tema, destacamos o Acórdão nº 1401-003.038, no qual se discutia a imunidade tributária de fundação que se dedicava à educação. Tal entidade, além de oferecer bolsas de estudo, também realizava programas de formação de professores e estudos de qualidade sobre a educação. Assim, a discussão voltava-se às atividades realizadas pela entidade para a preservação de seu patrimônio fundacional. A dúvida surgiu porque, à época, questionou-se a razão do superávit obtido pela entidade não ter sido imediatamente aplicado na manutenção de suas atividades ou objetivos sociais.
Em sua defesa, sustentou a entidade sua responsabilidade com a eficiência da instituição e preservação de seu patrimônio, afastando eventual descapitalização, razão pela qual a não aplicação do superávit em exercício subsequente não poderia ser questionada pela fiscalização.
A relatora do caso entendeu que a preservação do patrimônio fundacional é compromisso dos administradores e que a inexistência de fins lucrativos não implicaria necessariamente em limitação de receitas destinadas unicamente a suportar custos operacionais. Faria sentido a entidade possuir “sobras financeiras”, que deveriam ser bem administradas, considerando inclusive a necessidade de modernização da entidade, assim como seus próprios objetivos institucionais para melhor cumprimento de sua finalidade.
Contudo, por voto de qualidade, prevaleceu o entendimento de que a fundação não fazia jus à imunidade, pois, segundo o voto vencedor, não basta que a entidade tenha, em tese, alguma função social. Seria necessário que essa função se verificasse na prática e, logo que não haja fins lucrativos, ou seja, que a entidade não apresente superávit ou, em caso de apresentação, que destine o resultado integralmente à manutenção e ao desenvolvimento de seus objetivos sociais, pois, do contrário, os requisitos para gozo da imunidade não estariam atendidos. Pela leitura do voto vencedor, vê-se que a pedra de toque que determinou o resultado do julgamento foi que a entidade, com o tempo, passou a receber a maior parte de seus rendimentos com outras atividades que não diretamente ligadas ao ensino e pesquisa [5].
Entre as atividades consideradas “fora do campo da imunidade”, estariam os rendimentos oriundos de aluguéis de imóveis e aplicações financeiras. Ou seja, segundo esse precedente, as atividades desenvolvidas pela entidade não estariam inclusas entre as atividades-fim da empresa (ensino e pesquisa), já que, naquele caso concreto, quase 98% do superávit era destinado ao mercado financeiro e aquisição de imóveis, o que levou à conclusão que os recursos não estariam sendo integralmente aplicados na manutenção dos seus objetivos institucionais. Entendeu-se que a desproporção entre as atividades desenvolvidas evidenciaria que a entidade está voltada à realização de atividades típicas de mercado (com finalidade lucrativa).
Entretanto, em julgamento posterior (Acórdão nº 1201-005.581), a mesma entidade recebeu tratamento distinto, sendo dado provimento ao recurso voluntário por maioria de votos.
Nesse caso, a discussão centrou-se sobre o sentido e a amplitude do requisito da aplicação integral dos recursos institucionais para a manutenção e preservação dos objetivos sociais da entidade, ou com a destinação integral do resultado à manutenção e ao desenvolvimento dos objetos sociais da entidade (conforme artigo 12, § 2º, “b” e § 3º da Lei 9.530/97). A celeuma ocorreu com base na prática, pela entidade, de conservação de reservas (para investimento futuro), para além do mesmo ano calendário em que tais reservas foram obtidas, com a perspectiva de que esse montante seria futuramente aplicado nos objetivos sociais da entidade.
Nesse caso, o Carf entendeu que não haveria previsão expressa de lapso temporal mínimo ou máximo para a administração de reservas ou recursos em favor dos fins institucionais da entidade beneficiada. Da mesma forma, a legislação tributária não indicaria qualquer limitação (mínima ou máxima) para recebimento ou aplicação dessas reservas e recursos. Noutros termos, julgou-se que não é necessário que haja aplicação imediata dos recursos para que esteja sendo cumprido o artigo 14, II do CTN pela entidade imune. Assim, entendeu-se que, se essas reservas forem utilizadas em prol da manutenção e conservação da própria entidade, são válidas eventuais estratégias adotadas por gestores para fortalecimento das mesmas reservas, visando a estabilidade e segurança do patrimônio da sociedade, sempre no sentido de atingimento dos seus fins/objetivo sociais.
Outros precedentes do Carf trilharam caminho semelhante, conforme se observa no Acórdão nº 107-08.568, no qual restou decidido que não constituiria ofensa ao CTN, “(…) o fato de instituição de educação aplicar seu ‘superávit’ no mercado financeiro, mantidos no patrimônio em conta de reservas para manutenção de seus objetivos, sem que tenha havido prova de favorecimento aos seus instituidores”. No mesmo sentido, o Acórdão nº 101-92.178 pontuou à ausência de impedimento legal para que entidades imunes aplicassem seus recursos financeiros em bens, inclusive no mercado financeiro, buscando obter recursos para melhor atender suas próprias necessidades. Da mesma forma, assinalou que a entidade deve ser livre para julgar a oportunidade de melhor realizar esses investimentos, indicando também que a própria administração tributária (nos termos do entendimento firmado no ADN nº 27/93) já se posicionou no sentido de que rendimentos oriundos de aplicações financeiras efetuadas por entidades imunes “(…) quando resultantes de recursos que aguardam destinação específica, não se sujeitam ao imposto de renda”, ressalvada a hipótese de utilização em caráter meramente especulativo (e, logo, desvirtuando a finalidade essencial da instituição).
Dessarte, vemos que a limitação constitucional ao poder de tributar, constitucionalmente assegurada às instituições de educação, gera problemas bastante específicos que resvalam no contencioso administrativo fiscal. A forma e o tempo de aplicação do superávit das entidades imunes destinadas à educação é um deles.
Em análise dos casos julgados pelo Carf, pode-se observar uma certa nebulosidade sobre a margem de atuação que se compreende aceitável na gerência patrimonial das entidades imunes, mas com uma tendência pelo entendimento da inexistência de limites legais para aplicação das reservas da entidade, sendo possível que se façam aplicações financeiras sem ter, como consequência, a suspensão da imunidade. Porém, só o exame das peculiaridades de cada caso concreto poderá nos dar a resposta mais acurada para esse relevante assunto.
[1] Lembremos que Supremo Tribunal Federal (STF) cuidou da matéria no RE 636.941, julgado em 2014, bem como da ADI 1.802-DF, julgada em 2018. Nesse último caso, o Pretório Excelso analisou os artigos 12, 13 e 14 da Lei nº 9.532/97, reconhecendo que há espaço para atuação de lei ordinária na disciplina das imunidades, mas conservando a inteligência da necessidade de lei complementar para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar (no que se incluem os próprios requisitos para manutenção e preservação da imunidade condicionada).
[2] TJ-SP; Apelação Cível 0007438-82.2014.8.26.0068; relator (a): Raul De Felice; órgão julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Barueri – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 1/12/2015; Data de Registro: 10/12/2015); TJSP; Apelação Cível 0012774-38.2012.8.26.0068; Relator (a): Eutálio Porto; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Barueri – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 15/3/2016; Data de Registro: 21/03/2016); (TJSP; Apelação Cível 1001834-72.2020.8.26.0114; Relator (a): Botto Muscari; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas – 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 24/09/2021; Data de Registro: 24/09/2021).
[3] “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades” (ARE 760.876 AgR, rel. min. Dias Toffoli, 1ª T, j. 4-2-2014, DJE 65 de 2-4-2014.). Nesse aspecto, veja-se a Tese de Repercussão Geral: “A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da CF/88 aplica-se aos bens imóveis, temporariamente ociosos, de propriedade das instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos que atendam os requisitos legais”.[Tese definida no RE 767.332 RG, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 31-10-2013, DJE 230 de 22-11-2013, Tema 693.]
[4] Citamos, como exemplo, o Processo nº 0020266-76.2010.4.01.3400, julgado pelo TRF-1.
[5] Apontou também a desnecessidade de se considerar a ADI 1.802-DF, pois mesmo diante da cessação de alguns dispositivos da Lei 9.532/97, no caso concreto a autuação estava fundamentada claramente no art. 14 do Código Tributário Nacional.
Jeferson Teodorovicz , Thais de Laurentiis
Jeferson Teodorovicz é pós-doutorado em Direito pela UnB, doutorado em Direito Econômico e Financeiro pela USP, mestrado em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC-PR, especialista (MBA) em Gestão Contábil e Tributária pela UFPR, conselheiro do Carf, professor e pesquisador.
Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.