Impactos e desafios da reforma tributária no setor cooperativista

Priscila Anselmini, Leonardo Xavier

A reforma tributária já gerou (e continua gerando) múltiplos debates nos mais diversos setores da sociedade brasileira. Este artigo preocupa-se em analisar especificamente o setor cooperativista, o qual emprega mais de 500 mil pessoas e possui, aproximadamente, 20 milhões de cooperados, demonstrando a sua importância para o cotidiano de milhões de brasileiros, bem como o seu papel no desenvolvimento econômico e social do país.

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Uma sociedade cooperativa é constituída pelo esforço de pessoas que, reciprocamente, se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum e sem objetivo de lucro. Essa cooperação objetiva a consecução de objetivos sociais comuns entre os cooperados e, por possuir esse fim cooperativo e social, o ordenamento jurídico cuidou de prever normas mais benéficas e que incentivassem o seu desenvolvimento.

Prova disso é a previsão legislativa sobre o adequado tratamento tributário, disposta no texto constitucional, em seu artigo 146, inciso III, alínea ‘c’. O referido dispositivo normativo, anterior à Emenda Constitucional nº 132/2023, disciplinava que os atos cooperativos seriam contemplados pelo adequado tratamento tributário, cuja definição caberia à lei complementar.

Antes da promulgação do texto constitucional vigente, já havia a discussão sobre como seria o tratamento tributário do setor cooperativista. À época, a Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, foi responsável por disciplinar a questão. Com a Constituição, publicada em 1988, aguardava-se uma definição mais precisa de como seria a tributação de tal setor. Todavia, ficou à cargo de uma lei complementar a sua definição, que, até a reforma tributária, não havia sido elaborada.

Jurisprudência define tratamento tributário
Nesse contexto, coube à doutrina e a jurisprudência definir como seria o tratamento tributário adequado do cooperativismo. Assim, diversos juristas explicam que, no caso das cooperativas, não haveria incidência tributária sobre os seus atos; isto é, os atos praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais (definição dada pelo artigo 79 da Lei nº 5.764/71) não poderiam compor hipóteses de incidência tributárias.

Cabe ressaltar que a não incidência de tributos é distinta da isenção ou da imunidade tributária. Enquanto, na isenção, a desoneração decorre de previsão infraconstitucional (legal), a imunidade funda-se em uma previsão constitucional que retira competência tributária dos entes federativos. As cooperativas, por sua vez, não sofrem incidência de tributos no contexto referido simplesmente porque os seus atos não se caracterizam como fatos geradores.

Em outras palavras, somente os atos que se enquadram no conceito de ato cooperativo é que não sofrem incidência de tributos, uma vez que o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

Exemplificando:

Figura – Ilustração da cadeia econômica e reflexos tributários nas operações com cooperativas

Entretanto, apesar do entendimento da doutrina majoritária sobre a não incidência tributária sobre atos cooperativos, ainda persiste nos tribunais a discussão acerca da definição de atos cooperativos e quais atividades poderiam ser enquadradas nesse conceito. Como exemplo, cita-se o Tema nº 536 — Incidência de Cofins, PIS e CSLL sobre o produto de ato cooperado ou cooperativo; em relação ao ICMS, menciona-se o ARE nº 1015848/DF; e, sobre o ISS, pode-se destacar o REsp/STJ, nº 1213479/AL. Em todos estes julgados, concluiu-se pela não incidência de tributos sobre as atividades consideradas como atos cooperativos.

Como forma de dirimir tais debates, a reforma tributária, instituída mediante a aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, trouxe disposições importantes para as sociedades cooperativas. Dentre as inovações, destaca-se a nova redação dada à alínea ‘c’, do inciso III do artigo 146 da Constituição, que prevê expressamente o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas, inclusive em relação aos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V”. Trata-se de previsão relevante e que cuidou de resguardar o ato cooperativo em relação aos novos tributos introduzidos pela reforma, isto é, o IBS e a CBS — os quais, em princípio, somente incidirão sobre os atos não cooperativos, conforme será adiante exposto.

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Ademais, a reforma introduziu um regime específico de tributação para as cooperativas com relação ao IBS, previsto no artigo 156-A, § 6º, III da Constituição. Embora a definição final dependa de uma lei complementar, já foi adiantado que esse regime será opcional e terá por objetivo garantir a competitividade das cooperativas no mercado, respeitando os princípios da livre concorrência e da isonomia, compreendendo-se que as sociedades cooperativas poderão dispor um regime favorecido quanto aos novos tributos.

Além disso, a EC nº 132/2023 também trouxe duas regras importantes, nas alíneas “a” e “b” do inciso III, no que concerne ao regime específico do IBS para as cooperativas. A alínea “a” dispõe expressamente sobre a não incidência do imposto sobre operações entre a cooperativa e seus associados, entre estes e a cooperativa e pelas cooperativas entre si, desde que realizadas para atingir os objetivos sociais. Ou seja, a emenda, finalmente, constitucionalizou o conceito de ato cooperativo, inicialmente disposto no artigo 79 da Lei nº 5.764/71, e confirmou que o adequado tratamento tributário aos atos cooperativos se trata de hipótese de não incidência tributária.

Já a alínea “b” estabelece expressamente a possibilidade de aproveitamento de crédito tributário das etapas anteriores da cadeia do IBS, previsão importante que repercute o regime da não cumulatividade plena do novo imposto, mediante a sistemática do amplo creditamento.

Regimes diferenciados de tributação
A EC nº 132/2023, ainda, em seu artigo 9º, estabeleceu que a lei complementar poderá prever os regimes diferenciados de tributação, hipótese em que definirá operações beneficiadas com redução de 60% das alíquotas (§1º) e redução de 100% das alíquotas (§3º, II). Nessa toada, as reduções de 60% e 100% aplicam-se a uma série de bens e serviços elencados pela emenda, os quais correspondem ao cerne da atividade de diversos ramos de cooperativas.

Devido à ausência de lei complementar, uma série de regulamentações ainda estão pendentes. Nesta senda, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68/2024 intenta pôr fim às lacunas legislativas, inclusive no âmbito das sociedades cooperativas. No aludido projeto, especificamente em seu Capítulo IV, estão presentes as disposições gerais sobre a tributação das cooperativas.

Contudo, num primeiro olhar, já pode ser notada uma certa incongruência com a disposição constitucional oriunda da Emenda nº 132/2023. Isso porque, enquanto a emenda aborda o tratamento tributário como hipótese de não incidência, o projeto, no caput do artigo 256, dispõe sobre a possibilidade de alíquotas zero incidentes nas operações cooperadas, com exceção das cooperativas de consumo, crédito e de saúde.

Desse modo, questiona-se se estas alíquotas reduzidas a zero, num futuro, não poderiam ser eventualmente modificadas por lei específica. Caso assim ocorrer, poderá haver um desvirtuamento da previsão constitucional, posto que o regime de alíquota zero não possui a mesma natureza da não incidência tributária, prevista expressamente na Constituição. Neste último caso, somente uma emenda constitucional poderia modificar o tratamento tributário, fato esse distinto da previsão legal sobre percentual de alíquota.

Mudança de alíquota
Em que pese no atual momento o efeito prático dessa disposição no PLP nº 68/2024 seja o mesmo da não incidência tributária, nada impede que uma lei ordinária modifique a alíquota, passando a ser tributado o ato cooperativo. Por isso, o PLP nº 68/2024 precisa estar em consonância ao disposto no texto constitucional.

Para além das disposições incoerentes do PLP nº 68/2024 em relação ao texto constitucional, o artigo 258 do projeto esboçou o que seria o regime específico e opcional de tributação das cooperativas, contemplando a redução a zero das alíquotas do IBS e da CBS, ao passo que o artigo 260 retirou de tal regime excepcional as cooperativas dos ramos agropecuário e de transporte. No intento de remediar os efeitos dessa exclusão, o projeto facultou a estas cooperativas a apropriação de crédito presumido. Contudo, é consabido que o crédito presumido não se mostra vantajoso tal qual a alíquota zero, uma vez que a hipótese de creditamento exige o efetivo recolhimento do tributo, o que enseja questionamentos sobre a isonomia e a competitividade prática dos setores, valores inerentes ao regime específico, conforme previsto no artigo 156-A, § 6º, inciso III, inserido na Constituição pela EC nº 132/2023.

Em síntese, a reforma tributária, por meio da promulgação da EC nº 132/2023, trouxe avanços significativos para o setor cooperativista, assegurando o adequado tratamento tributário para os atos cooperativos e contemplando um regime específico que resguarde a não incidência dos novos tributos sobre os atos desta natureza.

Resta saber se a regulamentação da matéria por lei complementar permanece uma questão central, especialmente diante de possíveis desarmonias entre a EC nº 132/2023 e o PLP nº 68/2024, ou se as regulamentações atenderão aos critérios de arrecadação e manutenção das políticas fiscais.

É crucial que a nova regulamentação observe o texto constitucional, de modo a preservar o caráter distintivo das operações das cooperativas e evitar que interpretações futuras comprometam a competitividade do setor e o seu papel social no país.

Priscila Anselmini, Leonardo Xavier

Priscila Anselmini
é advogada do Contencioso Administrativo no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados, pós-doutora em Direito Tributário (UFRGS), doutora em Direito (Unisinos), mestre em Direito Público (Unisinos), especialista em Direito Público (Esmafe-RS) e professora universitária.

Leonardo Xavier
é estagiário do Contencioso Administrativo na Rafael Pandolfo Advogados Associados, graduando em Direito na UFRGS, membro do Grupo de Estudos da Liga Acadêmica de Direito Tributário (LADT) da UFRGS e diretor de Marketing do Escritório Júnior Ruy Cirne Lima (EJRCL).

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