Ilegalidades no IRPF sobre variação cambial
Isabela Schenberg Frascino
A Lei nº 14.754/2023, recentemente editada, contém alterações relevantes às regras do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF) incidentes sobre rendimentos provenientes de aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior.
Uma das alterações é a revogação, com efeitos desde 1º de janeiro, da regra do artigo 24 da Medida Provisória (MP) nº 2.158-35/2001, que isenta de IRPF, para pessoas físicas residentes no país, a variação cambial na alienação de bens ou direitos e na liquidação ou resgate de aplicações financeiras adquiridas em moeda estrangeira com recursos auferidos originariamente em moeda estrangeira (artigo 46, IX, “a”, e 47, II, da Lei nº 14.754/2023).
Isso afetará todos os bens e direitos adquiridos em moeda estrangeira, incluindo o principal aplicado em entidades controladas e em aplicações financeiras diretas no exterior.
Segundo o artigo 7º da lei, a variação cambial positiva do principal aplicado em controladas no exterior (sujeitas ou não à tributação automática anual dos lucros) será tributada como ganho de capital, nos termos do artigo 21 da Lei nº 8.981/1995, por ocasião da alienação, baixa ou liquidação do investimento, inclusive por meio de devolução de capital.
Tal ganho corresponderá à diferença positiva entre o valor percebido em reais e o custo de aquisição médio por cota ou ação alienada, baixada ou liquidada, em reais. Caso não haja cancelamento de cota ou ação na devolução do capital, o custo de aquisição médio deverá ser calculado considerando a proporção que o valor da devolução de capital representará do capital total aplicado na entidade.
Até 31 de dezembro, não eram tributáveis as variações cambiais de investimentos que “nasceram” em moeda estrangeira, isto é, feitos/adquiridos em moeda estrangeira com recursos auferidos originariamente em moeda estrangeira. É o caso, por exemplo, de ativos legalizados sob o RERCT (anistia), entre outros.
Primeiramente, é questionável a exigência de IRPF sobre variações cambiais nesses casos, por ausência de efetivo acréscimo patrimonial (fato gerador do imposto), considerando que o custo de aquisição do ativo foi formado originariamente na moeda estrangeira em que adquirido.
Ainda que se considere válida a exigência de IRPF nessas situações, tratando-se de ativo com liquidez realizável a qualquer momento por ato discricionário e unilateral da pessoa física, o imposto deveria incidir, quando muito, somente sobre a variação cambial verificada a partir de 1º de janeiro, mas não sobre aquela ocorrida até 31 de dezembro, considerando que a lei tributária não pode retroagir para alcançar fatos geradores ocorridos antes de sua vigência (artigo 150, III, “a”, da Constituição Federal).
Seria o caso, por exemplo, de investimento em controlada no exterior em que a pessoa física tenha a capacidade de impor a liquidação da entidade a qualquer momento, unilateralmente ou em conjunto com pessoas vinculadas. Nessas situações, o contribuinte já terá adquirido disponibilidade jurídica (fato gerador do IR) sobre a renda de variação cambial ocorrida até 31 de dezembro, verificando-se nesse momento a possibilidade de realizar a respectiva renda e, portanto, a manifestação da capacidade contributiva que autoriza a incidência do imposto.
A Lei nº 14.754/2023 somente excepcionou a tributação de variação cambial ocorrida até 31 de dezembro no caso de o contribuinte optar por atualizar o valor do respectivo ativo para seu valor de mercado em 31 de dezembro e pagar 8% de IRPF sobre o excedente ao custo de aquisição até 31 de maio deste ano. A isenção da variação cambial ocorrida até 31 de dezembro não deveria ficar limitada e condicionada à atualização do valor dos ativos a valor de mercado e à tributação antecipada de IRPF sobre tal atualização.
No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), embora não haja julgados que discutam especificamente a questão do momento de ocorrência do fato gerador do IRPF em se tratando de ganho de variação cambial, há precedentes que confirmam a premissa de que o fato gerador do IRPF é complexivo, ou seja, ocorrido minuto a minuto durante o ano, e se perfaz apenas em 31 de dezembro do ano-calendário. Desse modo, o fato gerador relativo à variação cambial positiva ocorreria antes da entrada em vigor da nova lei, não podendo ser atingido por ela.
Ao analisar situação similar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.588, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, que pretendia retroagir para tributar lucros de entidades controladas ou coligadas no exterior apurados anteriormente à vigência dessa norma. A Corte vedou, nessa ocasião, que o dispositivo retroagisse para alcançar fatos geradores ocorridos anteriormente à sua vigência (i.e. lucros apurados até 31 de dezembro de 2001).
Contribuintes que se sintam prejudicados nesse aspecto poderão questionar a exigência de IRPF sobre variações cambiais nesses casos, seja de forma integral por ausência de efetivo acréscimo patrimonial, seja de forma parcial para que o imposto incida somente sobre a variação cambial verificada a partir de 1º de janeiro (havendo ou não opção pela atualização de valores), face à irretroatividade da lei tributária.
Isabela Schenberg Frascino
sócia de Levy & Salomão Advogados