ICMS não incide sobre a parcela da tarifa correspondente aos “gatos”
Igor Mauler Santiago
A energia elétrica sofre perdas técnicas e não técnicas nas redes de transmissão e distribuição. As primeiras, explica a Aneel, relacionam-se “à transformação de energia elétrica em energia térmica nos condutores (efeito joule), perdas nos núcleos dos transformadores, perdas dielétricas, etc.” [1]. As segundas “decorrem principalmente de furto (ligação clandestina, desvio direto da rede) ou fraude de energia (adulterações no medidor), popularmente conhecidos como ‘gatos’, erros de medição e de faturamento”. As perdas técnicas são eventos físicos inerentes ao setor, não suscitando maiores questionamentos. Já as perdas não técnicas são fenômenos evitáveis, decorrentes do dolo do fraudador ou da desídia da distribuidora.
Sempre segundo a agência, o custo das perdas não técnicas (que beneficiam os terceiros que furtam ou fraudam a energia elétrica ou se prevalecem de erros de medição ou de faturamento cometidos pela distribuidora) são — dentro de certos limites — repassados à tarifa cobrada do bom consumidor. Em suas palavras, “o consumidor regular arca pela fraude ou furto de energia na sua tarifa; as fraudes e furtos de energia elétrica impactam o valor regulatório considerado na tarifa do consumidor regular…”.
Embora tal repasse, de índole regulatória, seja válido, descabe exigir ICMS sobre essa parcela da tarifa. Segundo a Constituição, o ICMS tem por fato gerador — entre outros — “operações relativas à circulação de mercadorias” (artigo 155, inciso II). Base de cálculo do imposto é “o valor da operação” que acarreta a circulação da mercadoria (Lei Complementar 87/96, artigo 13, inciso I). Por força da pessoalidade e da capacidade contributiva (CF, artigo 145, parágrafo 1º), que no caso do ICMS visam o adquirente, este só pode arcar com o imposto relativo às mercadorias que adquire, sendo descabido impor-lhe o ônus do imposto (1) quanto a parcelas estranhas ao custo destas ou, mais grave ainda, (2) quanto a mercadorias destinadas a ou apropriadas por terceiros, em situações das quais ele nem remotamente participe.
Ambas as distorções, no entanto, têm sido cometidas pelos estados na tributação da energia elétrica. A primeira delas já foi repudiada pelo STF e pelo STJ, nos quais se formou o entendimento de que, mesmo integrando a tarifa, não se sujeitam ao ICMS os valores que não correspondem à energia elétrica efetivamente consumida. No julgamento da demanda contratada de potência, foi enfatizada a “clara distinção entre a política tarifária do setor elétrico e a delimitação da regra-matriz do ICMS” (STF, Pleno, RE 593.824/SC, relator ministro Edson Fachin, DJe 19.05.2020; no mesmo sentido: STJ, 1ª Seção, REsp. 960.476/SC, relator ministro Teori Albino Zavascki, DJe 13.05.2009). A separação entre os níveis regulatório e tributário foi novamente posta em relevo quanto ao seguro-apagão, tendo o STJ assentado que, “a despeito da natureza do encargo de capacidade emergencial (tarifa ou preço público), (…) não se tratando de cobrança decorrente do consumo de energia elétrica propriamente dito (…), a tarifa correspondente não sofre a incidência do ICMS” (2ª Turma, AgRg no REsp. 1.426.608/PE, relator ministro Humberto Martins, DJe 24.09.2015).
É certo que essas premissas foram excepcionadas pelo STJ ao referendar a liminar deferida na ADI 7.395/DF, relativa à incidência de ICMS sobre a Tust e a Tusd (Pleno, relator ministro Luiz Fux, DJe 22.03.2023). Trata-se, entretanto, de análise provisória e necessariamente superficial, a ser aprofundada quando do exame do mérito, o que nos permite considerar que permanece em vigor e esperar que seja reafirmada a visão tradicional da corte sobre a matéria — juridicamente muito superior. Nesse sentido militam as advertências do ministro Gilmar Mendes (“O relator também trouxe importantes considerações à guisa da aparente configuração da inconstitucionalidade material do dispositivo questionado. Dada a complexidade do assunto, considero que o momento mais oportuno para a referida discussão é o julgamento de mérito da presente ação”) e sobretudo do ministro André Mendonça (“esse fundamento pressupõe, a um só tempo, que tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto este Supremo Tribunal Federal tenham aquilatado, até o presente momento, a controvérsia jurídica de forma equivocada”).
Até aqui tratamos da primeira das distorções acima denunciadas: a exigência de ICMS sobre partes da tarifa que não correspondem ao efetivo fornecimento de energia elétrica. A segunda delas (cobrança de ICMS sobre mercadorias destinadas a ou apropriadas por pessoas diversas do consumidor), embora igualmente grave, ainda não mereceu a mesma atenção da doutrina e da jurisprudência. Isso o que ocorre quanto à energia objeto das perdas não técnicas (“gatos”). Estudo técnico da Aneel demonstra que as perdas não técnicas totais verificadas em 2021 geraram um custo sem tributos de R$ 8,25 bilhões. Desse total, R$ 5,87 bilhões líquidos tiveram o seu repasse autorizado às tarifas (as chamadas perdas não técnicas regulatórias). Na média nacional, têm-se 2,8% das tarifas custeando as fraudes e os frutos, índice que varia de uma distribuidora para outra.
Aplica-se aqui a mesma ratio decidendi: embora a política tarifária justifique o repasse ao consumidor de todos os custos havidos pela distribuidora (dentre os quais os das perdas não técnicas), não cabe exigir ICMS sobre as parcelas da tarifa que não correspondem ao valor da energia elétrica efetivamente consumida por aquele. Além dos comandos constitucionais e legais já referidos, tal incidência ofenderia ainda o artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição (fato gerador do ICMS limitado às operações com energia, não abrangendo outras grandezas não correspondentes à remuneração pelos seus efetivos fornecimento e consumo).
Isso sem mencionar a posição firme do STJ contra a tributação do furto ou do roubo, seja específica para a energia elétrica (2ª Turma, REsp. 1.306.356/PA, relator ministro Castro Meira, DJe 04.09.2012 — com a diferença que a cobrança ali discutida tinha por base a diferença entre as quantidades de energia recebidas e faturadas pela distribuidora, enquanto aqui leva em conta os valores por esta incluídos na tarifa relativamente à energia furtada), seja atinente a hipóteses distintas, como o roubo de cigarros após a saída do estabelecimento fabricante (1ª Seção, EREsp. 734.403/RS, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21.11.2018).
Nem se invoque, em prol da pretensão fiscal aqui analisada, o julgado do STJ que autorizou a incidência do ICMS sobre o adicional de bandeiras tarifárias (2ª Turma, REsp. 1.809.719/DF, relator ministro Mauro Campbell Marques, DJe 25.06.2020), pois ali se trata de refletir o custo de produção — majorado por questões climáticas (falta de chuvas que exija a ligação de usinas termelétricas) – da energia efetivamente entregue ao consumidor final (“em síntese, o adicional reflete o aumento do preço de produção da energia em virtude de uma produção mais onerosa”). Já a parcela da tarifa relativa às perdas não técnicas não constitui preço nem custo da energia elétrica entregue ao consumidor regular, aquele que paga as suas contas e ainda arca com o ônus das fraudes perpetradas por terceiros, distinção que desautoriza a extensão ao presente caso da conclusão ali alcançada.
Este texto é uma singela homenagem ao professor Hugo de Brito Machado.
[1] https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/distribuicao/perdas-de-energia, válido para todas as citações posteriores neste item.
Igor Mauler Santiago
sócio-fundador do escritório Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).