ICMS-Combustíveis: conflitos jurídicos sobre seletividade, essencialidade e legalidade

Josiane Falco

Com o objetivo de simplificar e uniformizar o modelo tributário, a Emenda Constitucional nº 33/2001 introduziu a possibilidade de incidência única do ICMS sobre combustíveis, através da inclusão do artigo 155, § 2º, XII, “h”, da Constituição, concentrando a incidência do imposto em uma única etapa da cadeia produtiva.

Passados mais de 20 anos, a regulamentação dessa sistemática se deu por meio da Lei Complementar nº 192/2022, que delegou ao Conselho Nacional de Política Fazendária – Confaz a competência para definir as alíquotas de ICMS sobre combustíveis e disciplinar o novo regime, observando a necessidade de que as alíquotas sejam fixadas de forma uniforme para todo o território nacional e determinadas em valores específicos por unidade de medida (ad rem).

O regime foi disciplinado pelo Confaz através dos Convênios ICMS 199/2022 [1] e 15/2023 [2] e entrou em vigor em maio/2023 e junho/2023, consolidando a aplicação prática dessa nova sistemática tributária para o diesel e biodiesel e para a gasolina e etanol anidro combustível, respectivamente.

Apesar de sua recente implementação, o regime monofásico já levanta questionamentos sobre sua compatibilidade com princípios constitucionais que norteiam a tributação do ICMS, como a essencialidade e a seletividade, fundamentais para garantir a justiça fiscal e a proporcionalidade tributária, especialmente em bens indispensáveis como os combustíveis, bem como com o princípio da legalidade.

Compreender a estrutura jurídica e a vigência e eficácia das Leis Complementares nº 192/2022 e nº 194/2022 é essencial para explorar como o regime monofásico foi implementado e os desafios que ele apresenta em termos de conformidade com os princípios constitucionais.

Incidência única do ICMS: uniformidade tributária sobre os combustíveis
Conforme mencionado, a sistemática de incidência única do ICMS sobre os combustíveis, criada pela Emenda Constitucional nº 33/2001, foi regulamentada pela Lei Complementar nº 192/2022, que introduziu regras específicas para a tributação desses bens essenciais.

Além de estabelecer os combustíveis sob os quais incidirá uma única vez o ICMS, a lei complementar estabeleceu como contribuintes responsáveis pelo recolhimento do imposto os produtores e importadores, nos termos de seu artigo 4º:

“Art. 4º – São contribuintes do ICMS incidente nos termos desta Lei Complementar o produtor e aqueles que lhe sejam equiparados e o importador dos combustíveis.
Parágrafo único – O disposto no caput deste artigo alcança inclusive as pessoas que produzem combustíveis de forma residual, os formuladores de combustíveis por meio de mistura mecânica, as centrais petroquímicas e as bases das refinarias de petróleo.”

A Lei Complementar também delegou ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) a competência para deliberar e fixar as alíquotas aplicáveis em todo o território nacional, nos termos do artigo 3º da LC nº 192/2022, que dispõe:

“Art. 3º – (…)
V – as alíquotas do imposto serão definidas mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, nos termos da alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, observado o seguinte:
a) serão uniformes em todo o território nacional e poderão ser diferenciadas por produto;
b) serão específicas (ad rem), por unidade de medida adotada, nos termos do § 4º do artigo 155 da Constituição Federal; e
c) poderão ser reduzidas e restabelecidas no mesmo exercício financeiro, observado o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição.”

A despeito de se tratar de um imposto estadual, esses dispositivos deixam claro que o Confaz passou a deter a competência para estabelecer as alíquotas de ICMS aplicáveis aos combustíveis, sendo essas de observância obrigatória pelos estados.

Reprodução
Embora a regulamentação da incidência única tenha trazido avanços no sentido de uniformizar a tributação de combustíveis, sua execução prática apresenta desafios que merecem análise, especialmente no que diz respeito às competências do Confaz e ao respeito aos princípios constitucionais.

Disciplina do regime e fixação das alíquotas pelo Confaz
Após a promulgação da Lei Complementar nº 192/2022, diversos convênios foram editados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) para disciplinar a aplicação prática do novo modelo tributário.

Em especial, o Convênio ICMS nº 199/2022, publicado em 23 de dezembro de 2022, regulamentou o regime de tributação monofásica do ICMS para as operações com diesel e biodiesel. Esse convênio estabeleceu procedimentos para controle, apuração, repasse e dedução do imposto, com vigência inicial prevista para 1º de abril de 2023. Posteriormente, o Convênio ICMS nº 12/2023 prorrogou o início da vigência para 1º de maio de 2023.

Para as operações com gasolina e etanol anidro combustível, o Convênio ICMS nº 15/2023 disciplinou o regime monofásico, trazendo disposições similares às aplicáveis ao diesel e biodiesel. Esse convênio fixou os procedimentos de controle e apuração do imposto nas operações com gasolina e etanol anidro. O início de sua vigência foi fixado para 1º de junho de 2023.

Dentre as várias questões abordadas nesses convênios, destacam-se a definição do local de cobrança do imposto, as regras de incidência e repartição de receitas entre os estados e as alíquotas específicas fixadas nos termos do artigo 3º, V, da Lei Complementar nº 192/2022.

As alíquotas estabelecidas pelo Confaz, detalhadas nos convênios ICMS nº 199/2022 e nº 15/2023, são as seguintes:

Tipo de combustível

Alíquota específica de 01.05.2024 a 31.01.2025 fixadas por Fundamento legal
Diesel e Biodiesel R$ 1,06 litro Convênio 199/2022 , cláusula sétima, I
Gasolina e Etanol R$ 1,37 litro Convênio 15/2023 , cláusula sétima

A despeito de estabelecidas na forma do artigo 3º da Lei Complementar nº 192/2022, que delega ao Confaz a competência para uniformizar a tributação de combustíveis em todo o território nacional, a definição de valores específicos para cada tipo de combustível deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais da essencialidade e seletividade, os quais estabelecem limites claros para evitar onerações desproporcionais sobre bens essenciais.

Ao comparar o impacto do regime monofásico (ad rem) com o regime tradicional (ad valorem), com base nas alíquotas vigentes em 2024, observa-se um aumento significativo na carga tributária.

A título exemplificativo, a análise abaixo ilustra essa diferença, considerando a tributação sobre a gasolina com base em um preço médio de R$ 6,12 por litro [3]:

ICMS Monofásico ICMS Ad Valorem (18%) Diferença
ICMS por Litro R$ 1,37 Preço Médio R$ 6,12 –
Quantidade 1.000 Quantidade 1.000 –
Base de Cálculo R$ 1.000,00 Base de Cálculo R$ 6.120,00 –
Valor do ICMS R$ 1.372,10 Valor do ICMS R$ 1.101,60 R$ 270,50
% sobre preço 22,42% % sobre preço 18,00% 4,42%

Nesse cenário, o regime monofásico (ad rem) eleva a alíquota efetiva da gasolina para 22,39%, em comparação com os 18% (alíquota geral do estado de São Paulo) aplicados sob o modelo tradicional (ad valorem).

Na legislação paulista, por exemplo, a alíquota para bebidas alcoólicas (NCM 2203), prevista no artigo 54-A do RICMS/SP, é de 20%. Nas operações destinadas ao consumidor final, essa carga tributária atinge 22%, considerando os 2% destinados ao Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza.

Esse cenário evidencia uma distorção tributária significativa: a gasolina, um bem essencial para a economia e para o cotidiano dos consumidores, está sendo tributada em um patamar mais elevado do que as bebidas alcoólicas, classificadas como bens supérfluos e nocivos à saúde.

Essa discrepância contraria diretamente os princípios constitucionais da seletividade e essencialidade, que determinam que bens essenciais devem ter carga tributária inferior à aplicada sobre bens supérfluos. Tal situação reforça a importância de avaliar a compatibilidade do regime monofásico com os princípios constitucionais da essencialidade, seletividade e, principalmente, da legalidade, considerando o aumento significativo da carga tributária de bens indispensáveis como os combustíveis.

4. A essencialidade e a seletividade como princípios norteadores
A Constituição Federal, em seu artigo 155, § 2º, III, prevê a seletividade do ICMS em função da essencialidade dos bens e serviços. Esse princípio estabelece que produtos indispensáveis ao bem-estar social e ao funcionamento da economia devem ser tributados de forma proporcional à sua relevância, aplicando-se alíquotas menores em relação a bens supérfluos ou de menor importância.

O princípio constitucional da seletividade com base na essencialidade do produto impõe um dever ao legislador da entidade política competente, orientando-o a aplicar alíquotas diferenciadas de acordo com a importância do bem ou serviço.

No âmbito do ICMS Monofásico dos Combustíveis, essa orientação deve ser observada pelo Confaz, à medida em que, nos termos do artigo 3º, V, da LC nº 192/2022, as alíquotas do imposto são definidas pelo órgão, nos termos do artigo 155, §2º, XII, ‘g’, da CF.

O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 714.139/SC, com repercussão geral reconhecida, consolidou importante entendimento sobre o princípio da seletividade no ICMS. No Tema nº 745 da repercussão geral, fixou-se a tese de que:

“Tema nº 745/STF: Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.”

A despeito de tratar, na hipótese, das operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação, esse julgamento reforçou que a tributação do ICMS sob bens essenciais deve observar alíquotas proporcionais à sua relevância, sendo incompatível a adoção de patamares superiores aos das operações em geral.

A decisão visou garantir a justiça tributária e proteger o consumidor final, especialmente em relação a bens indispensáveis, tal qual são os combustíveis.

No caso dos combustíveis, após a regulamentação do novo regime monofásico de tributação de combustíveis pela Lei Complementar nº 192/2022, foi promulgada a Lei Complementar nº 194/2022, que reforçou a essencialidade de bens como combustíveis, energia elétrica, gás natural, comunicações e transporte coletivo.

Essa legislação incluiu disposição expressa de observância da seletividade e essencialidade para os combustíveis no Código Tributário Nacional (CTN) e na Lei Kandir (LC nº 87/1996), conforme as redações abaixo:

“Art. 18-A. Para fins da incidência do imposto de que trata o inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, os combustíveis, o gás natural, a energia elétrica, as comunicações e o transporte coletivo são considerados bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos.

Parágrafo único. Para efeito do disposto neste artigo:
I – é vedada a fixação de alíquotas sobre as operações referidas no caput deste artigo em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços;

Art. 32-A. As operações relativas aos combustíveis, ao gás natural, à energia elétrica, às comunicações e ao transporte coletivo, para fins de incidência de imposto de que trata esta Lei Complementar, são consideradas operações de bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos.

§ 1º Para efeito do disposto neste artigo:
I – é vedada a fixação de alíquotas sobre as operações referidas no caput deste artigo em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços;
(…)

§ 2º No que se refere aos combustíveis, a alíquota definida conforme o disposto no § 1º deste artigo servirá como limite máximo para a definição das alíquotas específicas (ad rem) a que se refere a alínea b do inciso V do caput do art. 3º da Lei Complementar nº 192, de 11 de março de 2022.”

Esses dispositivos reforçam expressamente a essencialidade dos combustíveis e outros bens indispensáveis, determinando que a tributação não ultrapasse as alíquotas aplicáveis às operações em geral. Além disso, reafirmam que o tratamento tributário deve estar alinhado aos princípios constitucionais de seletividade e proporcionalidade, assegurando uma carga tributária equilibrada.

O reconhecimento da essencialidade dos combustíveis pelas normas gerais e decisões do STF reforça a necessidade de observar esses princípios na fixação de alíquotas. Entretanto, o impacto das mudanças tributárias tem gerado disputas judiciais significativas, especialmente entre estados e União.

5. Estados versus União: judicialização e eficácia da essencialidade
As alterações promovidas pela Lei Complementar nº 192/2022 e 194/2022 no regime do ICMS geraram intensas disputas entre os estados e a União, resultando na judicialização de diversos pontos dessa nova sistemática. Atualmente, tramitam no Supremo Tribunal Federal ações como a ADI 7191, a ADPF 984 e a ADI 7.195, que discutem aspectos variados das mudanças introduzidas pela referida lei.

Além da essencialidade dos bens e serviços, as ações mencionadas também abordam outros aspectos, como o impacto das mudanças nas finanças estaduais, em razão da limitação de alíquotas, a compatibilidade das disposições da LC 194/2022 com a autonomia financeira dos estados e a exclusão das tarifas de transmissão e distribuição de energia elétrica e encargos setoriais vinculados da base de cálculo do ICMS.

Ponto importante para análise da essencialidade, é o acordo firmado entre União e estados em 14 de dezembro de 2022, nos autos da ADI 7.191 e da ADPF 984, ambas sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. No acordo, estados e União, estabeleceram parâmetros provisórios para mitigar os efeitos das mudanças, sem, no entanto, reconhecer a inconstitucionalidade das normas discutidas.

Pelo contrário, o acordo expressamente ressalvou que as questões envolvendo a essencialidade dos combustíveis, em especial da gasolina, continuam sendo objeto da lide pendente de análise pelo STF no bojo da ADI .7195.

Nessa ação, ADI 7.195, uma das mais relevantes no debate sobre a essencialidade, os estados buscaram a concessão de medida liminar que suspendesse os efeitos de diversos dispositivos da LC 194/2022, incluindo os artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 7º, 8º, 9º e 10.

Em sede liminar, no entanto, o ministro Luiz Fux deferiu parcialmente o pedido, deferindo, tão só, a suspensão dos efeitos do artigo 2º da LC 194/2022, na parte em que modificou o inciso X do artigo 3º da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), que excluiu da incidência do ICMS o valor correspondente aos serviços de transmissão e distribuição, bem como os encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica. Essa decisão foi posteriormente referendada pelo Plenário do STF, mantendo a suspensão limitada a este ponto específico.

Importante destacar que as disposições do artigo 1º da LC nº 194/2022, que introduziu o artigo 18-A no CTN, e do artigo 2º da LC nº 194/2022, que inseriu o artigo 32-A na Lei Kandir, não foram objeto de suspensão pelo STF.

Dessa forma, tais dispositivos permanecem plenamente vigentes e eficazes desde sua promulgação, assegurando a previsão legal para a aplicação dos princípios da seletividade e essencialidade aos combustíveis, que são parâmetros constitucionais fundamentais para a tributação do ICMS.

Por consequência, em atendimento ao princípio da legalidade, a fixação das alíquotas pelo Confaz deve, necessariamente, observar essas diretrizes, estando vedada a fixação de alíquotas em patamar superior ao das operações em geral, bem como nos mesmos patamares de bens supérfluos ou nocivos, sob pena de restar configurada violação à essencialidade prevista nas normas gerais que regulamentam o ICMS e garantida pela Constituição.

Conclusão
As alterações promovidas pela Lei Complementar nº 194/2022 trouxeram mudanças significativas ao regime de ICMS, especialmente com a adoção do princípio da essencialidade para os combustíveis, energia elétrica e comunicações. A judicialização dessas alterações, como observado nas ADI 7191, ADPF 984 e ADI 7.195, reflete a complexidade do tema e os desafios de harmonizar os interesses federativos com os limites constitucionais estabelecidos.

O acordo firmado entre União e estados, embora relevante para atenuar os efeitos imediatos das mudanças, não resolve a questão de fundo: a conformidade das novas regras às normas constitucionais, especialmente no que tange à tributação proporcional e à seletividade do ICMS.

Destaca-se que, enquanto o STF analisa a essencialidade dos combustíveis no bojo da ADI 7195, os dispositivos introduzidos na legislação tributária pela LC 194/2022 continuam plenamente vigentes e eficazes, especialmente o artigo 18-A do CTN e o artigo 32-A da Lei Kandir, que reforçam os limites para fixação de alíquotas no regime unificado.

Para os contribuintes, a busca por adequação judicial das alíquotas do ICMS é essencial, especialmente diante da aplicação de alíquotas específicas que excedem os limites expressamente permitidos pela legislação. Além disso, o acordo firmado entre União e estados prevê a cooperação mútua no debate sobre a aplicação da essencialidade aos combustíveis, reforçando a necessidade de participação ativa dos contribuintes na esfera judicial.

Além disso, o impacto das mudanças no regime de ICMS não se limita ao setor empresarial. Para os consumidores, a tributação de bens essenciais como combustíveis influencia diretamente o custo de vida, gerando efeitos em cadeia em setores como transporte e logística. Uma tributação desproporcional sobre esses bens acaba por onerar indevidamente a população de forma geral, afetando diretamente o custo de vida e o poder de compra da população.

[1] Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2022/CV199_22

[2] Disponível em: https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/convenios/2023/CV015_23

[3] Valores divulgados pela Petrobrás para o período de 01/12/2024 a 07/12/2024. Disponível em https://precos.petrobras.com.br/sele%C3%A7%C3%A3o-de-estados-gasolina

Josiane Falco

é advogada especialista em Direito Tributário.

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