Estado transformou direitos e garantias do contribuinte em lendas urbanas

Raul Haidar

Qualquer contribuinte pode ser colocado na situação de suspeito quando o Fisco desenvolve seu trabalho de fiscalização das obrigações fiscais. Em resumo: imaginam os agentes da administração tributária que todos somos culpados.

O país passa por uma séria crise, onde a cada dia surgem novos suspeitos acusados das maiores patifarias, que participaram dos atos mais escabrosos, a merecer as mais rigorosas penas.

Em tudo isso de alguma forma estão presentes os crimes contra a ordem tributária, também conhecidos como crimes de sonegação fiscal.

A Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990 define tais crimes nos seus dois primeiros artigos. No artigo 3º cuida dos crimes praticados por funcionários públicos, enquanto o artigo 4º trata dos chamados “crimes contra a economia e as relações de consumo”.

Com mais de 25 anos de vigência, parece-nos que a lei precisa ser revista, sendo afastadas suas impropriedades e incoerências. Uma das impropriedades encontra-se no parágrafo único do artigo primeiro, quando deixa ao arbítrio do fiscal reduzir “em horas” um prazo que a lei fixou em dez dias para fornecimento de nota fiscal.

Já houve caso em que uma empresa viu-se intimada a apresentar enorme quantidade de notas em duas horas, o que implicava na obtenção de suas cópias, ou seja, mais de 500 cópias. Já faz algum tempo que tais documentos são emitidos eletronicamente, o que torna a exigência sem sentido.

Deve-se levar em conta ainda que os tipos de infração penal descritos na lei envolvem ação ou omissão que só resultam da participação de determinadas pessoas. Tem se tornado cada vez mais comuns autos de infração fundamentados na desconsideração ou “glosa” de créditos tributários relativos ao ICMS na aquisição de mercadorias.

Agentes fiscais efetuam supostas diligências nos estabelecimentos dos emitentes das notas e “descobrem” que a empresa não está mais no local ou mudou-se para outro Estado sem recolher o imposto.

Sem qualquer outra investigação e sem nem mesmo intimar o contribuinte que teria adquirido as mercadorias, lavra-se um auto de infração, exigindo-se o imposto acrescido de multas, juros e correção monetária. No corpo da autuação vem sempre a informação de que a hipótese caracteriza crime contra a ordem tributária.

O que mais espanta nesses casos é que as diligências são feitas geralmente muito tempo depois que o adquirente das mercadorias as recebeu e fez os pagamentos e não raras vezes adotou as cautelas possíveis para prevenir-se diante de eventuais fraudes.

Já publicamos nesta coluna informação que pode ser útil a todos os contribuintes (Comerciante tem de se cercar de cuidados ao importar mercadorias). Lamentavelmente há inúmeras situações em que o contribuinte já recebe a visita do fiscal com o auto de infração pronto, apenas para ser assinado.

Essa forma de agir é de evidente descumprimento da Lei Complementar (estadual) 939 de 2 de abril de 2003 que a Assembléia Legislativa deste Estado aprovou e o governador Geraldo Alckmin (PSDB) sancionou.

Essa tal LC 939 diz que “institui o código de direitos, garantias e obrigações do contribuinte no Estado de São Paulo”. Na verdade jamais foi observada pelas autoridades fazendárias no que se trata dos direitos e garantias do contribuinte.

Diz o artigo 2º dessa LC quem um de seus objetivos é “proteger o contribuinte contra o exercício abusivo do poder de fiscalizar, de lançar e de cobrar tributo instituído em lei”. O abuso evidencia-se quando um auto de infração é lavrado antes de qualquer notificação enviada ao contribuinte.

Nos casos das aquisições de mercadorias, que o fisco tenha motivo para acreditar foram compradas com documentos inidôneos, poderia ser dada ao contribuinte a oportunidade de apresentar os documentos de aquisição, comprovantes de pagamentos, pesquisas eventualmente feitas no Sintegra etc.

No entanto, mesmo quando um contribuinte exibiu todos os documentos, inclusive cópias de boleto do pagamento feito pelo Banco do Brasil, ficha resumo da Jucesp e também cópia do registro do Sintegra, o fiscal fez questão de entregar o auto de infração e dizer que nada podia fazer.

Defesas administrativas neste estado são de pouca ou nenhuma valia. Não vamos cansar nossos leitores com matéria já por todos conhecida: julgamentos na primeira instância quase sempre validam qualquer autuação e os julgamentos do TIT (Tribunal de Impostos e Taxas) ao que parece de há muito se tornaram parciais, somente reformando decisões anteriores em casos excepcionais.

No caso de aquisição de mercadorias com documentos que o fisco alega serem “inidôneos”, o contribuinte tem duas tarefas muito difíceis: a) anular judicialmente o lançamento para livrar-se da ação de execução fiscal; e b) evitar que responsável pela empresa seja condenado criminalmente.

No aspecto criminal nem sempre a denúncia é apresentada a quem de fato é o responsável pela empresa, ou seja, o administrador, sócio ou gerente. Numa limitada pode ocorrer que na via policial todos os sócios sejam indiciados.

Ora, em matéria penal só pode responder pelo ato ilícito quem o pratique com dolo ou culpa. Nesse sentido é a jurisprudência dominante. Vejam-se os seguintes precedentes:

“Na sistemática penal inexiste responsabilidade sem culpa, já que a responsabilidade objetiva está proscrita do ordenamento jurídico vigente.” (RTJE, 44/218)

“O princípio da responsabilidade subjetiva, base do Direito Penal moderno, determina que só deva responder pela prática da infração quem tenha agido com dolo ou culpa. Não basta que alguém seja sócio ou diretor de uma empresa para responder criminalmente pelos atos penalmente típicos praticados no exercício das atividades, ainda que indiretamente, com dolo ou culpa.” (TACRIM-SP, JTACrim-SP, 89/79)

O Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma, Agravo Regimental 173.817-RJ) decidiu que o crédito do ICMS não depende de prova de que o fornecedor tenha pago o tributo, mas apenas de que estava regularmente inscrito na repartição e de que o negócio tenha sido realizado.

Tantas foram as decisões nesse sentido que o STJ baixou a Súmula 509: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.”

Portanto, o contribuinte autuado por ter adquirido mercadorias de outras empresas, cuja “inidoneidade” só foi declarada posteriormente, não está obrigado ao pagamento do auto de infração, nem pode ser condenado criminalmente.

Se nenhuma lei retroage, também não pode surtir efeito pretérito o ato administrativo, no caso uma “apuração” de “declaração” de inidoneidade, ato esse que não foi publicado e que resultou de diligência que o contribuinte não acompanhou.

O assunto é muito antigo. Na década de 1980, por exemplo, a Secretaria da Fazenda publicava no Diário Oficial as “declarações de inidoneidade” de contribuintes, cumprindo o artigo 37 da Constituição Federal. Com isso, os que houvessem realizado operações com essas empresas poderiam pagar o tributo de forma espontânea, livrando-se da multa e processo criminal.

Na verdade, as autoridades fazendárias deste Estado descumprem a LC 939. Um dos artigos que mais se esmeram em ignorar é o seguinte: “Artigo 8º – A Administração Tributária atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público, eficiência e motivação dos atos administrativos.”

Ainda há muito trabalho a fazer nessa trincheira da Justiça Tributária.

Raul Haidar

Jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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