Entrada do Brasil na OCDE exige respeito aos tratados contra a dupla tributação
Roberto Duque Estrada
“Pacta sunt servanda.”
A imprensa tem noticiado o interesse do Brasil em se tornar parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com efeito, já em março deste ano, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, declarava em evento na Alemanha:
“Eu defendo a entrada do Brasil na OCDE. Acho que é positivo não só porque a organização defende posições alinhadas com as que estamos adotando, mas também por causa da questão de melhora do rating brasileiro, pois mostra que é economia sólida”[1].
A OCDE tem sede em Paris e foi fundada em 1961 por 18 países europeus, os Estados Unidos e o Canadá com o objetivo de promover a prosperidade e lutar contra a pobreza por meio do desenvolvimento econômico e da estabilidade financeira. Através de seus diversos comitês, a OCDE busca formular políticas públicas que sirvam de modelo a ser adotado por seus membros. Atualmente, são 35 países-membros[2] e quatro países em tratativas para entrada na organização[3]. O Brasil faz parte de um grupo designado por Key Partners, composto de Índia, Indonésia, China e África do Sul, que participam ativamente de certos comitês da organização. Por razões ligadas à questão da Ucrânia, a entrada da Rússia na organização foi adiada por decisão do Conselho da OCDE[4].
O estreitamento dos vínculos do Brasil com a OCDE pode ser vislumbrado em iniciativas tomadas nos últimos dez anos, como o compromisso de engajamento ampliado que o país assumiu em maio de 2007, a criação de grupo de trabalho específico para avaliar a possibilidade de ingresso na OCDE (Portaria do Ministério da Fazenda 214, de 28/8/2007), a assinatura de acordo de cooperação em 2015, e o lançamento do Programa de Trabalho Brasil-OCDE 2016-2017. O Brasil é um dos Key Partners mais ativos, tendo contribuído de forma relevante para uma série de iniciativas, com destaque para as medidas do plano Beps[5]. A importância das reformas em tramitação no Congresso como meio de promover a recuperação de nossa economia encontra eco na OCDE, como revela o destaque, na página inicial do site, para um breve estudo sobre os desafios e a importância da reforma previdenciária[6].
O engajamento do Brasil junto ao Comitê de Assuntos Fiscais da OCDE tem se revelado extremamente importante para que a nossa legislação se harmonize com os standards internacionais e possibilite uma maior inserção do país na economia globalizada.
A aproximação do Brasil com a OCDE exige a reversão de algumas posições históricas do Fisco brasileiro de desrespeito aos limites impostos pelos tratados contra a dupla tributação, que afugentam investimentos e desgastam as relações internacionais com países parceiros signatários desses tratados.
Referimo-nos, mais especificamente, à discussão a respeito da tributação pelo Imposto de Renda na fonte sobre pagamentos de serviços para residentes no exterior, iniciada em razão da posição equivocada firmada pela administração fiscal no Ato Declaratório (Normativo) 1/2000[7], que sustentava a não aplicabilidade do artigo 7º (lucro de empresas), que reconhece o direito de tributação exclusiva do estado de residência, para defender a aplicação da disposição convencional residual de “outros rendimentos” ou “rendimentos não expressamente considerados” que permite, nas convenções firmadas pelo Brasil, a tributação cumulativa por ambos os Estados em presença. O equívoco só acabou sendo revisto depois de longos anos de discussão no Judiciário[8] e de muita pressão internacional, com destaque para a reclamação da Finlândia, textualmente referida na Nota Cosit 23, de 2013.
Sucede que, mesmo assim, o “novo” entendimento do Fisco, veiculado no Ato Declaratório 5/2014 e na Instrução Normativa SRF 1.455/14, persiste afirmando a existência de um direito de tributação exclusiva para “serviços técnicos”, através de uma interpretação ampliada de referido conceito e do âmbito de aplicação da reserva brasileira à tributação de pagamentos de royalties e de serviços de assistência técnica a eles conexos. Mais uma discussão para ser solucionada pelo Judiciário, muito provavelmente ao longo de outros tantos anos.
O mesmo se diga da longeva discussão a respeito da aplicação das regras da lei interna de tributação automática de lucros de controladas e coligadas no exterior (artigo 25 da Lei 9.249/95 e artigo 74 da MP 2.158-35/01), que já completa mais de 20 anos, persistindo o Fisco na recusa de reconhecer que falece competência ao Brasil para tributar, pelo regime da adição, o lucro apurado no exterior por controladas domiciliadas em países que celebraram tratados contra a dupla tributação. Exemplo mais frisante dessa posição da administração fiscal é o caso das controladas da Petrobras na Holanda[9], cujos lucros foram taxados no Brasil, contrariando a orientação fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no leading case da Vale S/A (REsp 1.325.709)[10].
Essa legislação heterodoxa, que ainda se discute no âmbito do Carf em processos que vão em breve chegar ao Poder Judiciário para mais uma longa temporada, já foi substituída pela Lei 12.973, de 2014, que, sem qualquer cientificidade e racionalidade jurídica, aos sabores de lobbies que hoje se revelam nas páginas político-policiais dos jornais, fixaram paliativos setoriais, para amenizar os efeitos de uma tributação extraterritorial incompatível com as normas de distribuição de competências dos tratados internacionais, que servem justamente para evitar a dupla tributação e incentivar o investimento estrangeiro no Brasil e do Brasil no exterior[11].
Dupla tributação que tem sido sentida na pele pelos expatriados brasileiros que, por razões contratuais, passam a receber remunerações no país para onde foram expatriados, mas seguem recebendo no Brasil parcelas da sua remuneração pagas pela empresa empregadora originária brasileira.
As decisões em consulta da Receita Federal que versaram sobre a matéria, nomeadamente a Solução de Consulta 121/2009 – SRRF 06/DISIT (Argentina) e a Solução de Consulta 56/2010 – SRRF 10/DISIT (China), concluíram pela sujeição à tributação pelo IRF no Brasil, sem distinguir consoante o emprego será exercido também no Brasil ou exclusivamente no Estado de residência (Argentina ou China), bastando-se na ideia de que, havendo fonte de pagamento no Brasil, há o dever de retenção.
Ocorre que o simples pagamento por fonte brasileira não é, porém, suficiente para determinar a competência para tributar do Brasil, pois os tratados que seguem a Convenção Modelo OCDE, como os brasileiros, são categóricos em reconhecer, no artigo 15, a regra da competência exclusiva ao Estado de residência fiscal do empregado. Apenas quando o emprego é também exercido no país da fonte — quando o expatriado trabalha nos dois Estados — é que o tratado autoriza a cumulação de competências. Por outras palavras, o tratado exige como condição para a cumulação de competências tributárias (exceção) que estejam no país a fonte de produção (a atividade, bem ou direito que dá origem à renda, no caso o exercício do emprego) e a fonte de pagamento (a pessoa que efetua o pagamento, que deve ser residente no país), não sendo a presença do segundo elemento por si só suficiente para permitir a exigência do imposto.
Esses são apenas alguns exemplos de discussões que estão em curso nos tribunais administrativos e judiciais brasileiros e que provocam uma enorme insegurança para os empreendedores. Afinal, as regras dos tratados firmados para o Brasil serão ou não obedecidas? E, se forem, em que extensão? Apenas quando úteis para o Brasil arrecadar? Vale ou não vale o que está escrito? Não seria mais importante para o desenvolvimento econômico gerador de riquezas a obediência às regras acordadas? Se o Brasil pretende ter um papel destacado na OCDE, como membro ou mesmo na condição atual de key associate, é transcendental que amadureça, que cumpra seus compromissos e que respeite os tratados que assinou. Não custa sempre lembrar o velho e sempre atual brocardo pacta sunt servanda.
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É precisamente neste momento, em que o Brasil busca reforçar seus laços com a OCDE[12] e, quem sabe, formalizar sua pretensão de fazer parte do conjunto de países membros, que será realizado no Rio de Janeiro o mais importante congresso internacional de Direito Tributário internacional. A 71ª edição do Congresso Anual da International Fiscal Association (IFA) ocorrerá entre os dias 27 de agosto e 1º de setembro, no Windsor Convention & Expo Center, na orla da Barra da Tijuca[13], e já está confirmada a realização do tradicional painel OCDE/IFA, destinado à discussão da evolução dos trabalhos do Comitê de Assuntos Fiscais da OCDE e das perspectivas de medidas futuras. A importância histórica de se realizar o congresso da IFA no Brasil, a relevância de seu conteúdo científico e o altíssimo nível dos palestrantes foram temas abordados com maestria pela coluna de Gustavo Brigagão do último dia 12 de abril[14], Trata-se de uma oportunidade única que não deve ser perdida.
[1] Cfr. http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2017/03/18/internas_economia,855384/meirelles-sou-favoravel-a-adesao-do-brasil-a-ocde.shtml
[2] Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça, Turquia, Reino Unido, Alemanha, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Japão, Finlândia, Austrália, Nova Zelândia, México, República Tcheca, Hungria, Polônia, Coreia do Sul, Eslováquia, Chile, Estônia, Israel e Eslovênia.
[3] Colômbia, Costa Rica, Letônia e Lituânia.
[4] http://www.oecd.org/about/membersandpartners/
[5] Base Erosion Profit Shiting. http://www.oecd.org/latin-america/countries/brazil/#d.en.352161
[6] http://www.oecd.org/brazil/reforming-brazil-pension-system-april-2017-oecd-policy-memo.pdf
[7] “I – As remessas decorrentes de contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia sujeitam-se à tributação de acordo com o art. 685, inciso II, alínea “a”, do Decreto nº 3.000, de 1999; II – Nas Convenções para Eliminar a Dupla Tributação da Renda das quais o Brasil é signatário, esses rendimentos classificam-se no artigo Rendimentos não Expressamente Mencionados, e, consequentemente, são tributados na forma do item I, o que se dará também na hipótese de a convenção não contemplar esse artigo; III – Para fins do disposto no item I deste ato consideram-se contratos de prestação de assistência técnica e de serviços técnicos sem transferência de tecnologia aqueles não sujeitos à averbação ou registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI e Banco Central do Brasil” (grifos nossos).
[8] O acórdão do Recurso Especial 1.161.467/RS (caso Copesul) foi o leading case que firmou a orientação do STJ na matéria.
[9] http://www1.valor.com.br/legislacao/4927210/carf-mantem-autuacao-de-r-15-bi-contra-petrobras
[10] http://www.conjur.com.br/2014-abr-25/stj-afasta-bitributacao-lucro-coligadas-vale-tres-paises
[11] Cfr., por exemplo, o crédito do parágrafo 10 do artigo 87.
[12] http://www.pcn.fazenda.gov.br/assuntos/ocde/o-brasil-e-a-ocde
[13] http://www.ifa2017rio.com.br/
[14] http://www.conjur.com.br/2017-abr-12/consultor-tributario-projeto-beps-preco-transferencia-serao-intensamente-debatidos
Roberto Duque Estrada
Advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.