Efeitos dos precedentes vinculantes do STF em julgados do Carf e assimetria do Ricarf
Diego Diniz Ribeiro, Rodrigo Griz
Contextualizando o problema
A coluna desta semana tem por objetivo tratar dos efeitos imediatos dos precedentes vinculantes firmados pelo Supremo Tribunal Federal, no regime de repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade. De forma reflexa, o presente texto também busca, mais uma vez [1], demonstrar a inexistência de um metodologicamente adequado modelo de precedentes no país.
Precisamos, todavia, contextualizar o debate.
De um lado, temos dispositivos constitucionais que vinculam órgãos do Poder Judiciário e, eventualmente, da administração pública direta e indireta a observar imediatamente os precedentes vinculantes do STF. De outra banda, temos disposições de regimentos internos de tribunais administrativos que restringem a aplicação de tais precedentes ao seu trânsito em julgado.
No âmbito do Carf, a disposição é a do artigo 98, parágrafo único do Ricarf, o qual determina ser vedado aos julgadores do Carf afastar aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto antes do trânsito em julgado de decisão proferida pelo STF em sede de controle concentrado ou em controle difuso, com execução suspensa por Resolução do Senado Federal ou proferida na sistemática da repercussão geral.
O artigo 102, § 2º da CF [2], contudo, determina que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF em controle concentrado, possui eficácia erga omnes e efeito vinculante para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Já seu § 2º trata do requisito da repercussão geral para os recursos extraordinários, sem tratar expressamente de efeitos vinculantes ou erga omnes.
Spacca
Vê-se que a Constituição Federal trata de requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário sem, no entanto, tratar da sistemática de julgamento desse recurso, que também possui efeito vinculante. A distinção é importante: o requisito de admissibilidade, i.e., a “existência de repercussão geral”, não trata de julgamento de recursos representativos de controvérsia (sistemática da repercussão geral), previsto no artigo 1.036 e seguintes do CPC [3]. Logo, nem todo recurso extraordinário é julgado sob a sistemática da repercussão geral e, por isso, pode ser admitido para produzir efeitos meramente inter partes.
Da nova realidade a partir do julgamento do Tema 885 do STF
A controvérsia não é recente, porém ganhou novos contornos com a tese fixada pelo STF no Tema no 885 [4] de Repercussão Geral. No seu julgamento de mérito, ocorrido em 8/2/2023, o STF atribuiu à sistemática da repercussão geral os mesmos efeitos de decisões proferidas em sede de controle concentrado e, assim, determinou que tais decisões interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas relações jurídicas de trato sucessivo, respeitadas a irretroatividade e a anterioridade pertinente, ou seja, a depender da natureza do tributo em discussão.
Já no julgamento dos embargos de declaração, ocorrido em 4/4/2024, foram afastadas as multas tributárias cujo fato gerador tenha ocorrido até a data da publicação da ata do julgamento de mérito (no caso, 13/2/2023) impostas aos contribuintes que possuíam decisão favorável transitada em julgado em ações judiciais propostas para questionar a exigibilidade da CSLL, preservados, contudo, a incidência dos juros de mora e da correção monetária e vedada a repetição de valores [5]. O leading case ainda não transitou em julgado, porquanto pende de julgamento de novos embargos de declaração.
No referido julgado, o voto condutor do ministro Roberto Barroso tratou expressamente da mutação do artigo 52, X, da Constituição Federal [6] para assim vincular automaticamente a administração pública às decisões proferidas em recurso extraordinário julgado na sistemática da repercussão geral. Nas palavras do ministro, trata-se de um “passo rumo à consolidação do processo de abstratização do controle difuso, resultando em uma maior integridade à teoria de precedentes, bem como no aprimoramento do controle de constitucionalidade brasileiro.”
Diante desse atual cenário no âmbito do STF, é importante reconhecer que o conflito objeto desta coluna em si é meramente aparente e o Ricarf não pode ser aplicado em detrimento do Tema nº 885/STF.
Primeiro, porque restou definido que a tese firmada em julgamento sujeito à sistemática da repercussão geral possui automático efeito vinculante e erga omnes.
Segundo, porque o artigo 102, §2º, da Constituição Federal trata das “decisões definitivas de mérito” e não de “decisões de mérito transitadas em julgado”, lembrando que decisões “definitivas” são aquelas que não podem ser substituídas, salvo mediante recurso, diferente das decisões “precárias”, que podem ser alteradas, independentemente de recurso, desde que haja alteração do contexto fático-jurídico que lhe dá fundamento e provocação da parte interessada, tal como acontece com as tutelas provisórias. Logo “decisão definitiva” não é, tecnicamente falando, sinônimo de decisão transitada em julgado.
Terceiro, em razão do CPC prescrever, nos seus artigos 1.039 e 1.040, que a tese firmada deve ser aplicada tão logo sejam decididos os recursos afetados, i.e., uma vez publicado o acórdão paradigma, os demais recursos que versem sobre idêntica controvérsia devem ser (1) julgados prejudicados ou (2) julgados com aplicação da tese. O CPC não exige que haja trânsito em julgado.
Contudo, precisamos fazer uma concessão: se há uma questão que merece ser revista no atual sistema de precedentes, talvez seja a interpretação dada aos artigos 1.030, III, 1.035, §5º, e 1.037, II, no sentido de que “caberia” ao relator do recurso extraordinário submetido ao regime de repercussão geral decidir sobre a suspensão do processamento de todos os processos pendentes que versem sobre a questão afetada. A suspensão deveria ser automática, como reflexo da afetação do caso a sistemática da repercussão geral, e, possivelmente, deveria durar até seu trânsito seu julgado.
Do recente problema enfrentando pelo Carf e a ofensa ao modelo de precedentes
À luz do panorama aqui traçado no plano judicial, insta agora analisarmos um precedente recente do Carf. Temos a notícia de que a 1ª Turma da 3ª Câmara da 1ª Seção, em 12/12/2024, por voto de qualidade, manteve multas tributárias em desfavor de contribuinte que não teria recolhido CSLL em razão de decisão transitada em julgado que afastava esse tributo por inconstitucionalidade [7].
Segundo a acusação fiscal, os efeitos da decisão transitada em julgado em favor do contribuinte autuado teriam sido posteriormente limitados pela decisão proferida pelo STF na ADI nº 15, que reconhecera a constitucionalidade da CSLL, exatamente o objeto da tese firmada no Tema nº 885/STF. Daí a autuação, para exigir a CSLL, acrescida de multa e juros.
O argumento adotado pelo Carf, segundo consta das notícias, seria o fato de que a inadimplência do contribuinte justificaria a multa, uma vez que sua dispensa dessa sanção pressuporia o pagamento da CSLL, ignorando o precedente vinculante formado pelo STF quando do julgamento do Tema nº 885/STF, muito provavelmente pela inexistência do seu formal trânsito em julgado.
Certamente precisamos aguardar a publicação do acórdão do Carf para entender melhor a sua ratio decidendi. Não obstante, se o entendimento do STF é no sentido de que teses firmadas na sistemática da repercussão geral devem ser observadas imediatamente e com efeito vinculante também à administração pública direta e indireta, na ausência de decisão que suspenda processos que tratem da mesma matéria, o Tema nº 885/STF precisa ser imediatamente aplicado também pelo Carf.
Para que a multa em questão fosse mantida, seria necessário uma argumentação expressa e robusta [8] acerca de “distinguishing” ou de eventual “overruling” [9] da tese firmada no Tema nº 885/STF, ainda que o leading case não tenha transitado em julgado, sob pena de haver uma burla a tese firmada em tal precedente pretoriano [10], o que nos remete a um questionamento que já fizemos anteriormente em outro texto publicado nessa coluna e permanece atual: quem ganha com um Carf que desconhece o seu papel em um modelo de stare decisis?
ps.: a coluna Direito do Carf entra em curto espaço de férias, voltando a ser publicada em 8/1/2025, com novidades. Em nome de todos os colunistas e colaboradores dessa coluna, desejamos um feliz Natal para todos e um 2025 repleto de alegria e justiça fiscal.
[1] Já fizemos anteriormente nessa coluna algumas críticas ao desrespeito de decisões do Carf a um modelo de precedentes. Nesse sentido: https://www.conjur.com.br/2023-out-25/direto-carf-carf-desconhece-papel-modelo-stare-decisis/ e https://www.conjur.com.br/2020-out-21/direto-carfa-jurisprudencia-carf-inexistencia-modelo-precedentes/.
[2] Art. 102. (…).
§2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
§3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
[3] Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
[4] 1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
[5] RE 949.297 ED, Relator: LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 04-04-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 19-08-2024 PUBLIC 20-08-2024.
[6] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
(…)
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
[7] A decisão foi tomada no âmbito do processo n. 16004.720092/2015-32, cujo acórdão ainda está encontra pendente de publicação.
[8] A distinção ou superação de precedentes, em especial de precedentes vinculantes, pressupõem um pesado ônus argumentativo, exatamente como prevê o art. 489, § 1º, inciso VI do CPC. Tratando do assunto: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedente do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024. p. 184
[9] Partindo do pressuposto questionável de que o CARF poderia superar um precedente vinculante do STF e, ainda, em um espaço tão curto de tempo.
[10] Não há qualquer problema em promover a distinção ou a superação de um precedente, nem mesmo de um precedente vinculante. O que não se admite é que tal precedente seja solenemente ignorado, sob pena de a atividade julgadora tornar-se uma atividade casuística, o que implica afronta direta ao valor “integridade”, prescrito no art. 926 do CPC.
Diego Diniz Ribeiro, Rodrigo Griz
Diego Diniz Ribeiro
é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutor em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do IBET.
Rodrigo Griz
é advogado tributarista e aduanerista, ex-conselheiro do Conselho Municipal de Tributos do Município de São Paulo (CMT-SP), professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro e Processo Tributário, doutor, mestre e especialista em Direito Tributário pela PUC-SP.