Documentação Fiscal Declarada Inidônea E O Direito Ao Crédito De Icms – Um Problema De Linguagem
Marjory Fornazari Pace
Elaborado em Outubro de 2010.
Partindo-se da premissa de que a realidade somente pode ser construída pela linguagem e de que os fatos sociais nada mais são do que uma redução textual a partir de uma infinidade de eventos ocorridos no mundo físico, é fácil concluir que os fatos jurídicos, espécies de fatos sociais, também são reduções lingüísticas e, portanto, o ordenamento jurídico é texto.
Assim, um texto é uma construção lingüística que representa uma dada situação sob uma determinada perspectiva a partir de uma série de eventos ocorridos no passado e jamais atingidos. No ordenamento jurídico, leis ordinárias, complementares, decretos, medidas provisórias, portarias, atas, despachos judiciais, sentenças, acórdãos, contratos, petições e certidões são exemplos de texto.
Com essas assertivas quer se dizer que os textos jurídicos, assim como qualquer outro texto, constroem uma realidade até então desconhecida, fato esse que nos faz verificar que textos sempre constituem uma realidade que passará a surtir efeitos da sua constituição em diante. Dessa forma, um texto jamais poderia simplesmente declarar que algo sempre foi real e o será para todo o sempre.
A realidade que conhecemos está em constante mudança e um texto sempre será capaz de construir, desconstruir e reconstruir realidades.
Nesse contexto, queremos ressaltar o problema do direito ao crédito de ICMS quando as notas fiscais são consideradas inidôneas em decorrência da Declaração de Inidoneidade da empresa.
Uma Empresa X quando realiza uma operação de compra de insumos com a Fornecedora Y possui o direito de se creditar do ICMS já pago pela Empresa Y, afinal, este esteve embutido no preço pago pela Empresa X, por força do princípio constitucional da não-cumulatividade previsto no art. 155, § 2º, I da Constituição Federal.
Na prática, na maior parte das vezes, a Empresa adquire insumos de uma Fornecedora, se credita do ICMS já pago e, algum tempo depois, é surpreendida com uma autuação por ter se creditado indevidamente de ICMS em decorrência da Declaração de Inidoneidade dos documentos fiscais da empresa fornecedora.
Normalmente, as operações de compra e venda ocorrem dois ou três anos antes da declaração de inidoneidade da empresa e o Fisco propõe que essa inidoneidade retroaja para macular negócios jurídicos ocorridos antes da referida declaração.
Essa retroatividade, comumente praticada pelo Fisco quando declara a inidoneidade de uma empresa, é completamente ilógica, posto que, com base nas premissas adotadas, trata-se de uma tentativa do Fisco em “transportar para o passado” uma realidade que acabou de ser constituída e o que é pior, viciando todas as operações praticadas com empresas de boa-fé.
Provavelmente a intenção do Fisco ao proceder dessa forma é atingir o evento que gerou a inidoneidade no combate aos crimes de sonegação fiscal. Todavia, atingir o evento é inconcebível dentro da lógica lingüística: os acontecimentos do mundo físico que se sucedem são tão constantes que não é possível registrar em linguagem tudo o que acontece e mais, o que é registrado não é possível reduzir sob todas as perspectivas possíveis.
As declarações de inidoneidade das empresas, portanto, não podem ter efeito ex tunc, afinal, não é possível mensurar o momento em que a empresa passa a ser inidônea; ou seja, não é possível saber com quais empresas ela negociou de boa-fé e com quais ela negociou de má-fé, exceto se houver algum outro corpo de linguagem que possa dirimir essa dúvida.
Não é a toa que o professor PAULO DE BARROS CARVALHO consagra a afirmação de que “direito é texto”. O ordenamento positivo, como um texto lógico que realmente o é, possui estruturas e mecanismos que impedem um determinado enunciado lingüístico que acabou de ser constituído de se transportar natural e arbitrariamente para o passado, tais como a garantia ao ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido, pois isso violaria o princípio constitucional da irretroatividade das leis e, por conseqüente, o supra princípio da segurança jurídica.
Assim, declarar a inidoneidade de determinada empresa e retroagir essa declaração para dois ou três anos anteriores, maculando todos os negócios jurídicos que a empresa – hoje inidônea – praticou com outras empresas no passado, provavelmente com muitas ou todas de boa-fé, impedindo-as de se creditar do ICMS incluso no preço dos insumos adquiridos, infringe a garantia constitucional do ato jurídico perfeito, o princípio constitucional da irretroatividade das leis, a segurança jurídica e o que hoje se chama de “princípio da proteção da confiança legítima”.
O princípio da proteção da confiança legítima consiste na confiança que se instala entre o cidadão e o Estado. Aliás, a professora Patrícia Baptista explica que referido princípio poderá ser limitador dos efeitos de uma nova norma jurídica, justamente em respeito à segurança jurídica.
Se determinada empresa X, de boa-fé, verificando a documentação necessária da empresa Y (que lhe é pública, diga-se de passagem) e com ela realiza uma operação de compra de insumos, em nome de todos os princípios acima descritos consagrados no ordenamento jurídico, inclusive o da não-cumulatividade que impede a cobrança em cascata do ICMS, tem o direito subjetivo constitucional de se creditar do ICMS e nenhum corpo de linguagem que for elaborado posteriormente a isso tem o condão de transgredir esse direito, nem mesmo uma declaração de inidoneidade, cujos efeitos não podem simplesmente retroagir turbando todos os direitos e garantias decorrentes de atos jurídicos perfeitos, coisa julgada e direito adquirido.
Aliás, é nesse sentido que já decidiu em recurso repetitivo o Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.
1. O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal
(emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada
inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo
princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da
compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da
inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação
(Precedentes das Turmas de Direito Público: EDcl nos EDcl no REsp
623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em
11.03.2008, DJe 10.04.2008; REsp 737.135/MG, Rel. Ministra Eliana
Calmon, Segunda Turma, julgado em 14.08.2007, DJ 23.08.2007; REsp
623.335/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em
07.08.2007, DJ 10.09.2007; REsp 246.134/MG, Rel. Ministro João
Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 06.12.2005, DJ
13.03.2006; REsp 556.850/MG, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda
Turma, julgado em 19.04.2005, DJ 23.05.2005; REsp 176.270/MG, Rel.
Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 27.03.2001, DJ
04.06.2001; REsp 112.313/SP, Rel. Ministro Francisco Peçanha
Martins, Segunda Turma, julgado em 16.11.1999, DJ 17.12.1999; REsp
196.581/MG, Rel. Ministro Garcia Vieira, Primeira Turma, julgado em
04.03.1999, DJ 03.05.1999; e REsp 89.706/SP, Rel. Ministro Ari
Pargendler, Segunda Turma, julgado em 24.03.1998, DJ 06.04.1998).
2. A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência,
no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação
pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação
de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à
espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual "salvo disposição de
lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação
tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da
efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato" (norma
aplicável, in casu, ao alienante).
3. In casu, o Tribunal de origem consignou que:
"(…)os demais atos de declaração de inidoneidade foram publicados
após a realização das operações (f. 272/282), sendo que as notas
fiscais declaradas inidôneas têm aparência de regularidade, havendo
o destaque do ICMS devido, tendo sido escrituradas no livro de
registro de entradas (f. 35/162). No que toca à prova do pagamento,
há, nos autos, comprovantes de pagamento às empresas cujas notas
fiscais foram declaradas inidôneas (f. 163, 182, 183, 191, 204),
sendo a matéria incontroversa, como admite o fisco e entende o
Conselho de Contribuintes."
4. A boa-fé do adquirente em relação às notas fiscais declaradas
inidôneas após a celebração do negócio jurídico (o qual fora
efetivamente realizado), uma vez caracterizada, legitima o
aproveitamento dos créditos de ICMS.
5. O óbice da Súmula 7/STJ não incide à espécie, uma vez que a
insurgência especial fazendária reside na tese de que o
reconhecimento, na seara administrativa, da inidoneidade das notas
fiscais opera efeitos ex tunc, o que afastaria a boa-fé do terceiro
adquirente, máxime tendo em vista o teor do artigo 136, do CTN.
6. Recurso especial desprovido. Acórdão submetido ao regime do
artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008”. (REsp 1148444 / MG; 2009/0014382-6; Relator(a) Ministro LUIZ FUX; Órgão Julgador S1 – PRIMEIRA SEÇÃO; Data do Julgamento 14/04/2010; Data da Publicação/Fonte DJe 27/04/2010) (grifos nossos)
Portanto, não somente em nome de princípios do ordenamento jurídico constitucional, mas, também, em observância à lógica lingüística é que o direito ao crédito de ICMS por empresa que negociou insumos com outra empresa que posteriormente foi considerada inidônea é perfeitamente legítimo.
Marjory Fornazari Pace
Advogada especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP e mestra em Direito Tributário pela PUC/SP.
NBR 6023: 2002 ABNT. Pace, Marjory Fornazari.Documentação Fiscal Declarada Inidônea e o Direito ao Crédito de ICMS.