Do conceito legal de fraude e da compensação tributária – impossibilidade de aplicação da multa qualificada de 150%

Fábio Bernardo

A Receita Federal frequentemente vem penalizando os contribuintes com a aplicação de multa isolada de 150% sobre o valor de débitos compensados quando do indeferimento da compensação tributária, utilizando como respaldo legal os seguintes artigos:

 

Lei nº 10.833/2003

 

Art. 18. O lançamento de ofício de que trata o art. 90 da Medida Provisória no 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, limitar-se-á à imposição de multa isolada em razão de nãohomologação da compensação quando se comprove falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.

[…]

§ 4o Será também exigida multa isolada sobre o valor total do débito indevidamente compensado quando a compensação for considerada não declarada nas hipóteses do inciso II do § 12 do art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, aplicando-se o percentual previsto no inciso I do caput do art. 44 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, duplicado na forma de seu § 1o, quando for o caso.

(grifamos)

 

Lei nº9.430/1996

 

Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas: (Redação dada pela Lei nº 11.488, de 2007)

 

I – de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata; (Redação dada pela Lei nº 11.488, de 2007)

 

§ 1o O percentual de multa de que trata o inciso I do caput deste artigo será duplicado nos casos previstos nos arts. 71, 72 e 73 da Lei no 4.502, de 30 de novembro de 1964, independentemente de outras penalidades administrativas ou criminais cabíveis. (Redação dada pela Lei nº 11.488, de 2007)

(grifamos)

 

                            Da conjugação dos dois artigos de lei acima transcritos verifica-se que aplica-se multa isolada de 150% sobre os débitos indevidamente compensados quando constatada “fraude”, “sonegação”, ou “conluio” na realização da compensação, sendo que nos casos práticos o que se tem visto é a aplicação da penalidade sob o argumento da existência de “fraude”.

 

                            Nesse contexto, o que se pretende demonstrar com o presente artigo é que o conceito legal de fraude é, por natureza, incompatível com o procedimento de compensação tributária, o que, por conseguinte, impossibilita a aplicação da multa isolada de 150% sobre os valores objeto de compensação não homologada.

 

                            Com efeito, a palavra fraude, no contexto jurídico tributário pode assumir basicamente dois significados distintos. O primeiro deles refere-se àquela conduta dolosa, praticada com ardil, para agredir uma previsão contida em norma jurídica.

 

                            Por outro lado, há muitos séculos a doutrina e a jurisprudência empregam o termo fraude em outra acepção, denominando-a de “fraude civil” ou “fraude à lei”. Trata-se da hipótese em que alguém busca no ordenamento jurídico alguma norma na qual enquadre o seu comportamento com o escopo de impedir a incidência de uma outra norma imperativa. Ou seja, busca-se uma norma para inibir a incidência de outra. Neste caso há uma violação indireta à lei.

 

                            Corroborando este entendimento, trazemos à colação a doutrina do eminente jurista Marco Aurélio Greco:

 

Por vezes, o termo “fraude” é utilizado no sentido de conduta dolosa e ardilosa que corresponda a uma agressão à previsão contida na norma jurídica. Neste sentido, o termo é, por exemplo, utilizado no artigo 171 do Código Penal que, ao definir o crime de estelionato, refere-se a obter vantagem ilícita mediante meio fraudulento.

Neste contexto, o termo fraude assume o sentido de previsão que supõe uma conduta que configure infração direta à legislação, no caso, penal.

[…]

Não é apenas neste sentido que a palavra “fraude” é utilizada no âmbito do Direito.

Há muitos séculos, doutrina e jurisprudência (e mesmo algumas legislações) conhecem a figura que se convencionou denominar de “fraude civil” ou “fraude à lei”, que corresponde à hipótese em que alguém busca, no próprio ordenamento, uma norma na qual enquadre seu comportamento, para o fim de, assim fazendo, contornar a aplicabilidade de uma norma imperativa. Ou seja, busca-se uma norma de cobertura para, com isto, contornar a norma que prevê certa conseqüência indesejada pelo agente.

(GRECO, Marco Aurélio, Revista Dialética de Direito Tributário nº 76, 2002, p. 149)

 

                                   Trazendo estes conceitos especificamente para o direito tributário, continua o autor:

 

Por isso, podem ser identificadas duas situações distintas às quais a palavra “fraude” pode se referir: 1) a fraude à lei, em que há atos lícitos e violação indireta ao espírito da lei ou ao ordenamento jurídico como um todo; e 2) a fraude contra o Fisco em que a conduta agride diretamente uma norma que assegura um direito ou crédito do Fisco – existente ou em curso de formação – de modo a escondê-lo ou impedir seu surgimento.

 

                            Feitas estas distinções de conceitos, passamos ao estudo do alcance semântico do termo “fraude” empregado pelo artigo 44, § único, da Lei 9.430/96, que por sua vez remete ao artigo 72 da Lei 4.502/64.

 

                            Com efeito, o artigo 72 da Lei 4.502/64 define fraude da seguinte maneira:

 

Art. 72 – Fraude é tôda ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.

 

                            Mera leitura do artigo colacionado torna evidente que o legislador procurou utilizar o conceito de fraude contra o fisco.

 

                            Isto porque a prática pelo contribuinte de “ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador”, visa a transgredir uma norma jurídica que assegura o direito ao crédito do Fisco.

 

                            Sendo assim, para haver fraude nos termos do artigo 72, o contribuinte deve praticar condutas dolosas que impeçam ou retardem o nascimento do liame obrigacional entre ele o Fisco ou, que modifiquem ou excluam suas características. Em outras palavras, deve praticar condutas ardilosas com o intuito de infringir normas tributárias impedindo ou retardando a ocorrência dos fatos imponíveis, modificando ou excluindo as suas características.

 

                            Verifica-se que a fraude necessariamente deve ser praticada em momento anterior ao da constituição do crédito tributário, mediante a conduta de “impedir ou retardar” a ocorrência do fato gerador.

 

                            E é certo que atualmente a esmagadora maioria dos tributos estão sujeitos ao lançamento por homologação, nos termos do artigo 150 do Código Tributário Nacional, onde cabe ao contribuinte constituir o crédito tributário, por meio da entrega da declaração.

 

                            Assim, no âmbito da Receita Federal temos que num primeiro momento o contribuinte constitui o crédito tributário por meio da entrega da DCTF, e, num segundo momento, extingue aquele crédito por meio da compensação, por meio da transmissão do PER/DCOMP, extinção essa que é condicionada a ulterior homologação do Fisco.

 

                            Evidente, portanto, que a compensação ocorre em momento posterior ao da constituição do crédito. E não poderia ser diferente,    pois se a compensação é forma de extinção do crédito tributário (ex. vi do artigo 156, II do CTN), não há que se falar em compensação sem que o crédito esteja constituído por uma das formas de lançamento.

 

                            Por conseguinte, o conceito legal de fraude, de “impedir ou retardar a ocorrência do fato gerador”, é incompatível com o procedimento de compensação, pois quando da sua realização o fato gerador já ocorreu e foi vertido em linguagem competente pelo contribuinte, com a entrega da declaração e a constituição do crédito tributário.

 

                            Desta feita, uma vez constituída a obrigação tributária, com todas as suas características essenciais, havendo discordância tão somente em relação aos créditos utilizados para extingui-la, não há que se falar em fraude.

 

                            Esse entendimento, inclusive, já foi externado pela Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, por ocasião do julgamento do Recurso Especial do Procurador da Fazenda no processo administrativo nº 10620.000324/2005-17, cuja ementa do acórdão proferido segue transcrita:

 

Processo nº 10620.000324/2005-17

Recurso nº 103-148.131 Especial do Procurador

Acórdão nº 9101-000.758 – 1ª Turma

Sessão de 13 de dezembro de 2010

Matéria MULTA DE OFÍCIO ISOLADA

Recorrente FAZENDA NACIONAL

Interessado COMERCIAL GALA LTDA.

 

MULTA ISOLADA NA FORMA QUALIFICADA. DESCABIMENTO. Não se subsume à hipótese de fraude, como descrita na Lei nº 4.502/64, a compensação não homologada pela inexistência de fato do crédito, porque o contribuinte, ainda que de forma indevida, declara o crédito tributário objeto de compensação. De difícil aplicação o percentual exacerbado de penalidade, mormente antes da previsão de hipótese de falsidade na declaração.

Vistos, relatados e discutidos os presentes autos.

 

ACORDAM os membros da 1ª turma da câmara superior de recursos fiscais, por maioria de votos, negar provimento ao recurso. Vencido o Conselheiro Francisco de Sales Ribeiro de Queiroz.

 

                            Importante trazer também, trecho do voto vencedor, da Ilústre Relatora Conselheira Karem Jureidini Dias:

 

Voltando ao presente caso, verifica-se que se trata de hipótese de aplicação da multa qualificada decorrente da não homologação da compensação. Quanto aos pressupostos para a imposição de multa isolada qualificada, me parece, no mínimo, difícil configurar sonegação ou fraude nos procedimentos relativos à compensação. A sonegação e a fraude referem-se, em última instância, à ocultação do fato gerador, ao passo que a compensação, quando efetuada pelo contribuinte, ainda que de forma indevida, pressupõe a informação do crédito tributário objeto de compensação. Ora, se o processo de compensação pressupõe a prestação de informações ao fisco a respeito de fatos geradores ocorridos, como poderia ser comprovada a sonegação ou a fraude?

(grifamos)

 

                            Pelas mesmas razões, a “sonegação”, prevista no artigo 71 da Lei 4.502/64, também prevista como hipótese de incidência da multa qualificada não pode ser aplicada à compensação, pois está intimamente ligada às ações que visem impedir o conhecimento da autoridade fazendária da ocorrência do fato gerador ou das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária;

 

                            Conclui-se, portanto, que a multa qualificada de 150% não se aplica ao procedimento de compensação, pois este é totalmente incompatível com os conceitos legais de fraude e de sonegação, que, a evidência, só podem ocorrer em momento anterior à constituição do crédito tributário, ao passo que a compensação é praticada posteriormente.

Fábio Bernardo

Advogado Especialista em Direito Tributário do Escritório Marcos Martins Advogados

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