Direito penal tributário: entre infrações fiscais e delitos (parte 2)
Fernando Facury Scaff
Tributário
Em coluna anterior , iniciei uma espécie de série de streaming em três episódios, na qual abordo diferentes etapas para análise da distinção entre infrações fiscais e delitos, sob a ótica do direito brasileiro, tal como apresentei para um público latino-americano em um evento recente.
Já tratei das decisões de política governamental e do direito material brasileiro sobre o tema. Nesta, analiso a jurisprudência do STF.
Ainda falta o terceiro episódio, que circulará em mais 15 dias — aguardem.
III – Principais decisões da Corte Constitucional brasileira
Considerado o conjunto legislativo mencionado, destacam-se algumas decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a matéria.
Inicia-se pela Súmula Vinculante 24, aprovada em dezembro de 2009, em razão de sua importância, assim grafada: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Essa decisão tornou imprescindível o esgotamento da fase fiscal para que se identifique qualquer dos crimes estabelecidos pela Lei 8.137/90. Entendo que essa fase fiscal se encerra apenas com o término do processo judicial que eventualmente venha a debater aquela cobrança, mas há quem admita que isso ocorre antes, ao final do processo administrativo de acertamento do lançamento. De todo modo, é plenamente afastada a hipótese de iniciar a ação penal antes do término do regular lançamento tributário.
Spacca
Resta igualmente pacificado, por diversas normas e julgamentos em múltiplas instâncias, que o parcelamento da dívida fiscal suspende o processo criminal até sua efetiva quitação, o que extingue a punibilidade. Existem uma divergência quanto a esse entendimento, admitindo esses efeitos desde que ocorra “antes da denúncia criminal”, pois esta delimitaria o instante em que o pagamento ou o parcelamento extinguiria a punibilidade. Após a denúncia, este efeito extintivo não estaria presente. Isso demonstra de forma cabal o uso do Direito Penal para fins arrecadatórios, uma vez que o pagamento, até mesmo parcelado, extingue a punibilidade.
Outra decisão que se destaca, prolatada em dezembro de 2019, é o RHC (Recurso Ordinário em Habeas Corpus) 163.334-SC, e diz respeito ao crime de apropriação indébita fiscal, previsto no artigo 2º, II da Lei 8137/90. O debate circunscrevia-se a saber se haveria esse tipo de crime na incidência da tributação sobre o consumo pelo método de substituição tributária do ICMS. A decisão do STF estabeleceu que:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de repassar à Fazenda Pública, no prazo legal, o valor de ICMS cobrado de terceiro, incide no tipo penal do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90.”
Entendo ter havido um indevido alargamento jurisprudencial da norma sob análise, pois esse método de apuração do tributo (substituição tributária do ICMS) não acarreta “desconto ou cobrança” que gere apropriação indébita. Porém, em face da decisão do STF, os empresários que retem esse tributo e não o pagam de forma contumaz e com dolo de apropriação incorrem no crime de apropriação indébita fiscal, conforme capitulado no artigo 2º, II da Lei 8137/90. [1]
A definição de devedor contumaz ainda não foi normatizada, mas tramita um projeto de lei (PLP 164/2022) para regular a matéria. Adiante serão analisados estes dois aspectos, o de devedor contumaz e o dolo específico, estabelecidos nessa decisão.
Uma terceira decisão do STF que se destaca foi proferida em abril de 2022, e diz respeito à possibilidade de o agente fiscal desconsiderar atos ou negócios jurídicos.
O debate se referiu a uma alteração normativa ocorrida em 2001 no Código Tributário Nacional inserindo o parágrafo único ao artigo 116, que contém uma norma geral anti elisiva:
“A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
Por meio da ADI 2.446, o STF decidiu pela constitucionalidade dessa norma, afastando as alegações de ofensa aos princípios da legalidade, da legalidade estrita em direito tributário e da separação dos poderes. Com isso, passou a ser permitido que os agentes fiscais diretamente e sem qualquer ingerência previa do Poder Judiciário, desconsiderem atos ou negócios jurídicos praticados pelos agentes privados, caso identifiquem a finalidade de “dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Em razão dessa decisão, foi afastada a reserva de jurisdição para a desconsideração de atos ou negócios jurídicos, colocando esse poder nas mãos das autoridades fazendárias.
A lei ordinária referida até hoje não foi aprovada, mas a norma “em branco” é aplicada regularmente e, muitas vezes, gerando implicações criminais.
É interessante observar as modificações na jurisprudência do STF acerca da matéria. Em 2009 a composição da Corte decidiu de forma garantista (Súmula Vinculante 24) ao fazer prevalecer a necessidade de pagamento do tributo para o início do processo criminal. Dez anos após, em 2019 (RHC 163.334-SC), a posição punitivista se destaca, ampliando conceitos normativos para alcançar fatos que neles não estavam rigorosamente previstos. Em 2020, ao validar a norma fiscal anti elisiva (ADI 2.446), foi ampliado o perfil punitivista, permitindo que as autoridades fazendárias desconsiderem qualquer ato ou contrato privado que entendam irregular, sem reserva de jurisdição, alcançando aspectos penais.
Essa modificação de postura do STF merece análise mais atenta, que considere as diferentes composições da Corte quando foram proferidos os votos, o que extrapola o objeto do presente estudo.
Independente dessa análise pormenorizada, apresenta-se uma questão: por qual razão houve uma virada nesse entendimento jurisprudencial? O que ocasionou tal fato?
Uma hipótese de trabalho aponta para que há, em concreto, uma lacuna normativa que os Tribunais brasileiros, com ênfase no STF, buscam colmatar, protegendo a arrecadação.
IV — Uma hipótese acerca da causa dessa mudança jurisprudencial: lacuna normativa e uso do direito penal para fins arrecadatórios
Constata-se que as normas penais tributárias brasileiras não alcançam algumas situações identificadas na prática empresarial que são deletérias em termos arrecadatórios. Existem casos em que (1) empresas “de fachada” são utilizadas para emissão de notas fiscais sem lastro negocial, apenas para criar créditos fictícios contra o fisco; (2) existem também empresas “reais”, cujos verdadeiros proprietários se ocultam sob interpostas pessoas, conhecidas no Brasil como “laranjas”, isto é, indivíduos sem patrimônio, cuja única função é proteger o patrimônio dos verdadeiros proprietários em face das obrigações tributárias; e (3) uma terceira situação ocorre com as empresas que declaram suas obrigações tributárias e não as paga, gerando a situação descrita na decisão do STF no RHC 163.334-SC, acerca do devedor contumaz que age com dolo específico.
Na primeira situação, a das empresas de fachada, que emitem notas fiscais sem lastro, a norma penal brasileira acima descrita as alcança, pois “suprimir ou reduzir tributo” encontra-se no tipo penal descrito no caput do artigo 1º, permitindo a identificação dos verdadeiros responsáveis por essas empresas.
Para a segunda situação, dos sócios laranjas, não há definição na lei penal brasileira, ocasionando uma verdadeira elasticidade conceitual por meio da jurisprudência visando alcançar as situações lesivas aos cofres públicos. Nem mesmo o uso do mecanismo jurídico da desconsideração da pessoa jurídica é eficaz, pois os sócios laranja não possuem patrimônio pessoal para suportar o ônus patrimonial da cobrança dos tributos.
O terceiro caso, do devedor contumaz, é o que ocasionou a decisão do STF no RHC 163.334-SC que alargou a letra da lei, criminalizando essa conduta por meio da jurisprudência, igualmente elástica, acrescendo o requisito do dolo específico.
Estas situações são lesivas aos cofres públicos e geram queda de arrecadação por meio de estratagemas empresariais, que se constituem em infrações fiscais, mas que não estão ao alcance da lei penal brasileira, embora os tribunais busquem, por meio da jurisprudência, criminalizar as condutas identificadas.
Caso esteja correta a premissa, constata-se que a lacuna normativa apontada no sistema das leis penais tributárias brasileiras vem sendo colmatada pela jurisprudência, em busca de proteção mais eficaz aos cofres públicos, o que acarreta diversos problemas, dentre eles: (1) o uso do direito penal para amparar a arrecadação, o que é inadequado, pois a receita pública é um problema fiscal, e não penal; (2) o indevido alargamento jurisprudencial das normas penais, por meio de uma interpretação extensiva e inadequada; (3) ampliação da insegurança jurídica na sociedade, inclusive e em especial nas atividades empresariais, pois, o que deveria ser um primado da lei (Reserva Legal Penal) se torna fluido, por meio de uma flácida interpretação jurisprudencial que acaba por criminalizar condutas infracionais, que não se constituem como delitos.
Tudo isso se reflete (4) no âmbito da segurança jurídica dos investimentos privados, pois o capital sempre busca um porto seguro para aportar, mesmo que não seja o mais rentável. Na ordem jurídica do capitalismo, a segurança jurídica é um dos fatores mais importantes, e a instabilidade entre o texto normativo penal e sua interpretação jurisprudencial acarreta fuga de capitais.
É necessário corrigir essa distorção, a fim de que caiba ao Direito Penal a proteção dos bens jurídicos mais importantes da sociedade, conforme estabelecido em leis que sejam claras e delimitem os comportamentos que devam ser enquadrados como delitos e adequadamente apenados. E que ao Direito Tributário caiba coibir, como singelas infrações fiscais, comportamentos que. embora lesivos ao patrimônio público, não se constituem como crimes, pois a tipificação penal só deve ser utilizada como última ratio do sistema, e não como um instrumento arrecadatório.
Sobre a questão do dolo específico, requisito estabelecido pelo STF no RHC 163.334-SC, constata-se que a grande diferença entre infrações fiscais e delitos reside na identificação da culpabilidade do agente, respeitados os limites constitucionais e legais dos tipos penais estabelecidos.
Klaus Tipke, em conhecida obra intitulada Moral tributária do Estado e dos contribuintes adentra na análise das normas penais tributárias, mencionando que, até a 1ª Grande Guerra, seria possível considerar que o bem protegido pela sanção penal decorrente da omissão no pagamento seria o “interesse público na arrecadação completa e pontual de cada tributo”. [2]
Porém, segue Tipke, o Direito Penal atual cumpre uma dupla função protetiva do Estado de Direito, pois (1) deve contribuir para que o ente público obtenha de todos os contribuintes os tributos com respeito à lei e à Constituição, e (2) deve contribuir para que nada separe a comunidade solidária de contribuintes, de tal modo que seja conservada a igualdade na repartição da carga tributária e ninguém receba serviços públicos à custa de outros cidadãos. E arremata, apontando para a importância do respeito aos direitos fundamentais: “No Estado de Direito não está justificado qualquer tributo, apenas os impostos justos que respeitam os direitos fundamentais, e, em especial, a igualdade”, o que pressupõem, com antecedência, a reserva legal.
A motivação é um dos elementos mais importantes para análise no direito penal tributário, o que pode ter reflexo no grau de culpabilidade. Tipke relaciona, com uma pitada de ironia, sete atitudes dos contribuintes em face da obrigação de pagar tributos, as quais podem se mesclar em cada situação concreta:
(1) o homem econômico, que pondera as vantagens e os riscos de fraudar o Fisco, incluindo o valor das penalidades fiscais;
(2) o que barganha, que busca não pagar os tributos devidos em razão das deficiências da prestação de serviços públicos;
(3) o mal-humorado, que discorda da política governamental e considera legítimo reduzir o pagamento dos tributos devidos para não conceder aos governos mais recursos para os dissipar;
(4) o liberal, que considera os tributos como um ataque à sua liberdade, motivo pelo qual evita seu pagamento;
(5) o legalista, disposto a extrair ao máximo as lacunas e defeitos do sistema tributário para reduzir sua carga tributária sem incorrer em sanções;
(6) o inexperiente, que é incapaz de interpretar as leis fiscais sem o auxílio de um assessor tributário, e
(7) o sensível diante da justiça, que, escandalizado diante das numerosas desigualdades e privilégios do sistema tributário, refoge ao pagamento em razão de sua injustiça [3].
Correlacionando essas sete atitudes dos contribuintes com as normas penais tributárias, Tipke considera que todos os argumentos não lograriam êxito defronte das leis penais, excetuada a atitude legalista, pois “está claro que não se pode castigar quem aproveita as lacunas e os defeitos da lei. O legislador é responsável pela qualidade da lei.” Logo, nos limites da lei, a atitude legalista encontra-se adequada, não cabendo a utilização do direito penal tributário nessa hipótese.
Aqui se identifica que a conduta dolosa específica do agente é extremamente importante para fins de aplicação do direito penal tributário. Para a Reserva Legal Tributária, a conduta do agente é irrelevante, cabendo o pagamento do tributo caso a situação descrita em lei se configure plenamente.
Já para a Reserva Legal Penal a conduta do agente é de extrema importância, sendo um elemento essencial para a qualificação criminal e consequente aplicação das normas penais. Esse aspecto diferencia as duas espécies de Reserva Legal, fazendo com que a busca pela identificação do dolo específico do agente seja extremamente relevante para fins de aplicação da Reserva Legal Penal.
No terceiro e último episódio dessa minissérie, abordarei a implicação da adoção do split payment e suas possíveis implicações para fins penais tributários. Circulará em 15 dias, neste mesmo espaço.
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[1] Sobre o tema, ver: BECHARA, Ana Elisa e SCAFF, Fernando Facury. Los delitos fiscales y causas de exclusión de la punibilidad y la culpabilidad. ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.
[2] TIPKE, Klaus. Moral tributaria del estado y de los contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 130-135.
[3] TIPKE, Klaus. Moral tributaria del estado y de los contribuyentes. Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 112-121.
Fernando Facury Scaff
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.