Depreciação acelerada na cultura canavieira: o que a CSRF decidiu?
Lucas Issa Halah, Thais de Laurentiis
O agronegócio é historicamente um setor de destaque na economia nacional, tendo sido responsável por 24,8% do PIB brasileiro no ano de 2022 [1]. Criando uma complexa interface com sua importância econômica, o setor é também marcado pela suscetibilidade a ciclos biológicos que afeta diretamente a atividade rural e espraia seus efeitos para os demais agentes de cada cadeia agroindustrial, fenômeno chamado pela doutrina de agrariedade [2].
Observando essa interface e as preocupações determinantes para a própria definição do termo agronegócio, cunhado por John H. Davis e Ray A. Goldberg para definir o conjunto de operações anteriores, internas e posteriores à porteira (sem as quais não é possível garantir o suprimento de alimentos em uma economia global marcada pela especialização funcional e produção em larga escala) [3], a legislação tributária instituiu diversos mecanismos de adequação da tributação da renda ao setor, sempre orientada pelo vetor de neutralização dos efeitos da agrariedade por meio de instrumentos fiscais estabelecido, na Constituição [4] e na Lei nº 8.171/91 [5].
Dentre esses mecanismos encontra-se a depreciação acelerada incentivada prevista no artigo 6º da MP nº 2.159/70/2001, que permite ao produtor rural pessoa jurídica optante pelo Lucro Real a dedução integral de determinados investimentos no próprio ano de sua aquisição [6].
É sabido que as culturas vegetais demandam diversos gastos para sua formação, como a adubação, semeadura, irrigação e aragem do solo. Nas culturas permanentes, esses gastos, a priori, não devem ser registrados como despesas do período em que incorridas, incorporam-se ao valor da própria cultura como ativos da empresa, sujeitos à perda de valor dedutível do resultado tributável da pessoa jurídica em quotas proporcionais reconhecidas ao longo dos períodos pelos quais estima-se que o ativo contribuirá para as receitas da entidade.
Contrariando essa lógica e assim conferindo inegável efeito benéfico ao setor, o artigo 6º da MP nº 2.159/70/2001 permite que tais ativos sejam depreciados integralmente no período em que os gastos foram incorridos. Assim, os gastos corresponderão a despesas imediatamente dedutíveis do resultado tributável, ainda que contribuam para a geração de receitas em períodos futuros.
O tratamento, se isoladamente concedido, poderia colocar o contribuinte em verdadeira armadilha caso ao produtor rural fosse aplicável a chamada trava dos 30% da qual trata os artigos 15 e 16 da Lei nº 9.065/1995. Felizmente, consolidou-se a visão de que essa limitação é inaplicável ao produtor rural tanto tratando-se do IRPJ quanto da CSLL [7], como decorrência da ausência de restrição no artigo 14 da Lei nº 8.023/90.
Há, contudo, divergência sobre a aplicabilidade do instituto da depreciação acelerada incentivada aos gastos para a formação de canaviais, e a jurisprudência da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) é rica fonte de análise das nuances envolvidas em cada uma das principais vertentes jurisprudenciais.
As divergências sobre o tema são antigas no Carf [8].
Mas, recentemente, o Acórdão nº 9101-006.643 de 2023 deu nova vida ao assunto ao decidir, por 6 votos a 2, pela aplicabilidade do tratamento incentivado à lavoura canavieira, sendo de grande utilidade ao intérprete o estudo desse caso, no qual foram consignadas as três principais vertentes sobre o tema: depreciação acelerada incentivada na cana-de-açúcar produzida para comercialização a terceiros [9].
A primeira vertente consignada no acórdão, encampada pelo voto da conselheira relatora Lívia de Carli Germano, parte da distinção entre as três formas de registro da perda de valor dos bens, elencadas no §2º, artigo 183, da Lei nº 6.404/76 (depreciação, amortização e exaustão).
No voto vencedor, a relatora reiterou as razões já por ela encampadas no Acórdão 9101-004.305, posição vencida naquela ocasião por voto de qualidade. Para a relatora, a depreciação acelerada incentivada alcança os gastos com a formação da lavoura canavieira, pois tal cultura perde valor em virtude do desgaste sofrido pela planta ao longo do tempo e como decorrência das sucessivas colheitas que agridem a planta sem extingui-la. A vertente foi embasada em parecer técnico da Embrapa, bem como em diversos pareceres técnicos de renomadas entidades, como a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), já analisados em casos anteriores.
A relatora também refutou a tese defendida pela PGFN, no sentido de que as culturas sujeitas à depreciação seriam apenas aquelas das quais se extrai frutos no sentido botânico do termo, asseverando que o conceito de fruto ao qual a legislação faz referência [10] deve ser o conceito jurídico da Doutrina Civilista, que avalia a presença de três características: “(i) periodicidade: são produzidos periodicamente pela coisa principal; (ii) inalterabilidade da substância da coisa principal: não diminuem a substância da coisa principal; e (iii) separabilidade da coisa principal” [11].
Para esta vertente, contudo, o tratamento particular previsto pelo art. 6º da MP nº 2.159-70 não se aplicaria a bens cuja perda de valor deve ser reconhecida pela forma da exaustão.
A posição foi acompanhada na íntegra por mais três votos, sendo que o conselheiro Luis Henrique Marotti Toselli acompanhou o voto da Relatora pelas conclusões, e o conselheiro Luiz Tadeu Matosinho Machado acompanhou a relatora por conclusões distintas, apresentando declaração de voto, na qual reiterou posicionamento já exposto no Acórdão nº 9101-005.919, de 2021.
Na declaração de voto do conselheiro Luiz Tadeu Matosinho Machado, encontramos os fatores de delimitação da segunda vertente consignada no acórdão sob análise.
Esta segunda vertente faz leitura mais ampla da expressão “poderão ser depreciados” contida no artigo 6º da MP nº 2.159-70, vislumbrando na redação do artigo a adoção do termo “depreciados” com o sentido de “deduzidos” lato sensu, independentemente da forma contábil de reconhecimento da perda de valor.
Fazendo remissão ao voto proferido pelo então conselheiro Marcelo Cuba Neto no Acórdão nº 1201-001.243, de 10/12/2015, a declaração de voto esclarece que o artigo 6º da MP nº 2.159-70 nada mais é do que a reintrodução no ordenamento jurídico do artigo 12, §2º, da Lei nº 8.023/90, revogado em 1995 pela Lei nº 9.249, que visava conferir à Pessoa Jurídica o mesmo tratamento dado à Pessoa Física pelo artigo 6º da Lei nº 8.023/90.
A interpretação finalística se escora inclusive na exposição de motivos da Medida Provisória nº 167/90 [12], convertida na Lei nº 8.023/90 e posteriormente reintroduzida pela MP nº 2.159-70 sem significativa alteração redacional. Tal fundamento já foi inclusive encampado pelo Carf por unanimidade de votos, seguindo o voto condutor da relatora Sandra Maria Faroni, no Acórdão nº 101-94.597, de 2004.
A declaração de voto representativa da segunda vertente também afastou a tese de que o artigo111 do CTN deveria levar ao provimento do recurso, seja porque a depreciação acelerada incentivada não se enquadra dentre os benefícios listados no dispositivo, seja porque a interpretação literal por ele preconizada, ainda que limite a leitura ampliativa do dispositivo, tampouco deve levar a restrição maior do que a pretendida pela lei.
Já a terceira vertente exposta no voto divergente da conselheira Edeli Pereira Bessa, acompanhada pelo conselheiro Fernando Brasil de Oliveira Pinto, representa a corrente historicamente preponderante na jurisprudência da CSRF [13].
Esse voto divergente também reprisou o entendimento firmado pela Conselheira no Acórdão 9101-004.305 que, por sua vez, adotou o entendimento emanado pela conselheira Viviane Vidal Wagner no Acórdão nº 1202-000.794, de 2013.
Analisando as normas contábeis então vigentes sobre as formas de registro da perda de valor de bens do ativo não circulante, consignou que as culturas sujeitas à depreciação seriam apenas aquelas cuja exploração se dá mediante a colheita dos frutos no sentido botânico do termo, enquanto as culturas cuja exploração depende do corte da própria planta estariam sujeitas à exaustão. O fator distintivo vislumbrado pela vertente divergente foi também extraído da interpretação do artigo 307, II e do artigo 334, §1º do RIR/99 (Decreto-Lei nº 1.483, de 1976, artigo 6º, parágrafo único e artigo 42, §12), que atrelam a exaustão aos recursos florestais destinados a corte e a depreciação aos projetos florestais destinados à exploração dos respectivos frutos.
O voto divergente reconhece que a cana-de-açúcar não é cultura florestal, mas interpretou o termo de maneira “abrangente”, encampando o racional do Parecer Normativo CST nº 18/79 e os exemplos de culturas sujeitas à exaustão contidos na consagrada obra do professor José Carlos Marion [14] que remonta ao conceito botânico de “frutos”.
Por fim, o voto divergente menciona que após a revogação do artigo 12 da Lei nº 8.023/90, o legislador renovou sucessivamente o tratamento fiscal diferenciado por meio da Medida Provisória nº 1.459/96 até Medida Provisória nº 2.158-70/2001, sem nunca ter expressamente expandido a abrangência da norma – via alteração do termo “depreciados” por outro mais amplo –, a despeito de já haver, à época, divergência interpretativa sobre o alcance do tratamento diferenciado da culturas sujeitas à exaustão.
Mas que conclusões o Acórdão nº 9101-006.643 nos permite firmar sobre a posição atualmente predominante na CSRF?
O grande mérito do acórdão, a par do sólido embasamento técnico de todas as vertentes nele expostas, parece ser justamente a união, em um mesmo documento, dos votos paradigmáticos representativos das principais correntes jurisprudenciais sobre o tema. Contudo, algumas ressalvas devem ser feitas sobre a representatividade de tal julgado como elemento preditivo do atual posicionamento da CSRF.
A jurisprudência administrativa recente encontrava-se dividida e o tema costumava ser decidido favoravelmente ao Fisco por aplicação do voto de qualidade, conforme verificou-se no Acórdão 9101-004.305. Com a introdução do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2001 (não mais vigente), esperava-se que o tema passasse a ser decidido de maneira favorável aos contribuintes, ainda que por empate. Em 2021, sob nova composição, ao tratar da aplicação do tratamento para culturas florestais a CSRF entendeu, por 5 votos a 3, que a despeito de sujeita à perda de valor por exaustão, a depreciação acelerada seria aplicável às culturas florestais. Nessa ocasião, recobrou atenção a segunda vertente jurisprudencial sobre a qual tratamos, contudo, essa vertente foi encampada apenas pelo conselheiro Luiz Tadeu Matosinho Machado, e o voto do relator Alexandre Evaristo Pinto sofreu também ressalva, por razões distintas, do conselheiro Caio Cesar Nader Quintella.
Finalmente, no acórdão sob debate, de nº 9101-006.643, a maioria do colegiado se formou por 6 votos a 2, sendo que os seis votos favoráveis se dividem entre três vertentes, uma das quais não foi consignada em declaração de voto, pouco tempo antes de nova alteração na composição do colegiado.
Assim, verificamos que a depreciação acelerada dos gastos para a formação da cultura canavieira é tema distante de ser pacificado. Ademais, muito embora haja uma tendência de prevalência do resultado favorável aos contribuintes sob o enfoque do mais recente julgamento sobre o tema, não é possível afirmar categoricamente a perenidade dessa solução no tempo.
[1] Dados produzidos pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) em conjunto com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) disponíveis em: https://www.cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/PIB-DO-AGRONEGOCIO-2022.17MAR2023(1).pdf
[2] SCAFF, Fernando Campos. Aspectos fundamentais da empresa agrária. São Paulo: Malheiros, 1997. pp. 22 a 25.
[3] DAVIS, J.H. Goldberg, R.A. A concept of agribusiness. Boston: Harvard University, 1957. p. 2
[4] Constituição Federal de 1988, art. 187.
[5] Lei nº 8.181/91, art. 2º, III: “como atividade econômica, a agricultura deve proporcionar, aos que a ela se dediquem, rentabilidade compatível com a de outros setores da economia”.
[6] “Art. 6o Os bens do ativo permanente imobilizado, exceto a terra nua, adquiridos por pessoa jurídica que explore a atividade rural, para uso nessa atividade, poderão ser depreciados integralmente no próprio ano da aquisição.”
[7] Vide a Medida Provisória no 1991-15/00 e Súmula Carf nº 53.
[8] Fazendo, inclusive, menções ao texto “Reconhecimento dos gastos com a formação de culturas para fins de tributação do IRPJ” (HALAH, Lucas Issa; MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. Reconhecimento dos gastos com a formação de culturas para fins de tributação do IRPJ. In: XII Congresso Nacional de Estudos Tributários, 2015, São Paulo. São Paulo, Editora Noeses, 2015. pp. 557-580). O artigo é referenciado nos Acórdãos nºs 9101-006.643 de 2023, 9101-005.919 de 2021, 9101-004.302 de 2019, 9101-004.305 de 2019, e no caso 1401-001.791 de 2017.
[9] A depreciação acelerada de gastos para a formação de culturas próprias de Agroindústrias é tema com matizes próprios que não serão tratadas no presente texto. Para mais sobre este tema, vide
HALAH, Lucas Issa.; MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. Depreciação acelerada incentivada na tributação das agroindústrias. In: XI ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI CHILE – SANTIAGO, 2022, SANTIAGO – CHILE. XI ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI CHILE – SANTIAGO. Florinópolis-SC: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2022. v. 1. p. 24-45. Disponível em: http://site.conpedi.org.br/publicacoes/129by0v5/0e4gxq08/J293GVKaPe17KcBe.pdf
[10] Decreto-Lei nº 1.483, de 6 de outubro de 1976, art. 6º, parágrafo único.
[11] CSRF, Acórdão nº 9101-006.643.
[12] BRASIL. Diário do Congresso Nacional – 20/3/1990, p. 409, disponível em . Acesso em: 18/04/2023.
[13] Vide Acórdãos 9101-002.798, 9101-002.801, 9101-002.982, 9101-002.983, 9101-003.017, 9101-003.976, 9101-003.977, 9101-003.978, 9101-004.018.
[14] Contabilidade rural – contabilidade agrícola, contabilidade da agropecuária, IRPJ, 4ª edição, São Paulo, Atlas, 1996, págs. 39, 41, 64, 65 e 71.
Lucas Issa Halah, Thais de Laurentiis
Lucas Issa Halah é conselheiro do Carf, mestre e graduado em Direito pela USP e pesquisador líder em tributação do agronegócio na FDRP-USP.
Thais de Laurentiis é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris), especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.