Depósito integral no processo tributário: inexigibilidade dos encargos
Marcus Paulo Jadon
Previsto no artigo 151, inciso II do Código Tributário Nacional [1], o depósito do montante integral é hipótese suspensiva da exigibilidade atrelada à faculdade concedida ao contribuinte que pretende purgar a mora de sua condição da inadimplência que, para além disso, é impediente da prática de qualquer ato de cobrança pelo fisco, bem como resguarda a emissão de certidão de regularidade fiscal, veda a inclusão de seu nome em órgãos públicos e privados de restrição ao crédito e o protesto.
Ainda que efetuado nos autos de uma execução fiscal para fins de garantia, à luz do artigo 9º, inciso I da Lei nº 6.830/1980, se efetuado em seu montante integral, o depósito está apto a produzir os mesmos efeitos do referido inciso II do artigo 151 do CTN, qual seja, purgar a mora, ante o que estabelece o § 4º mesmo artigo 9º: o depósito faz cessar a responsabilidade por correção monetária e juros de mora [2].
Justamente porque quando efetivado em seu montante integral em processo tributário, exacional ou antiexacional, tem por objetivo suspender a exigibilidade do crédito tributário, o depósito não se confunde com o pagamento.
A depender do resultado do processo, se a decisão for favorável ao contribuinte, o valor depositado, com a remuneração da conta judicial, será levantado por ele, ante o reconhecimento de que o tributo não era devido; caso a decisão na ação antiexacional seja desfavorável ao contribuinte, será convertido em favor do fisco, hipótese que implicará a extinção do crédito tributário, nos termos do artigo 156, inciso VI do Código Tributário Nacional. [3]
No âmbito do processo tributário, portanto, não havia discussão acerca do efeito que o depósito integral promove sobre a dívida objeto de discussão judicial: faz cessar a responsabilidade do sujeito passivo pelos efeitos da mora (purgando, juros, multa e correção monetária) [4].
Ainda que haja esta definição legal a respeito dos efeitos do depósito para fins de suspensão da exigibilidade, somada à orientação firme do STJ em matéria tributária consolidada em sua Súmula 112 [5], com o julgamento do Recurso Especial nº 1.820.963/SP, em que foi revisado o Tema nº 677 dos recursos repetitivos, a pragmática tem demonstrado uma desestabilização desse entendimento, especialmente na segunda instância judicial.
Expliquemos. Ao julgar esse recurso, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que, na execução, o depósito efetuado em garantia do juízo não afasta a obrigação de o devedor efetuar o pagamento dos consectários da mora, conforme previstos no título executivo [6].
Considerando esse entendimento manifestado no REsp nº 1.820.963/SP, a questão que propomos responder é: no processo tributário, o depósito do montante integral continua a cessar a responsabilidade do sujeito passivo pelos consectários da mora (correção monetária, multa e juros de mora)?
Essa questão assume relevância porque, no caso de tributos de competência dos entes tributantes que não a União, os depósitos judiciais são atualizados, em regra, com base nos índices da caderneta de poupança [7], muito inferiores aos índices de atualização do crédito tributário estadual e municipal ou do Distrito Federal.
Há decisões recentes de Tribunais de Justiça, proferidas em recursos interpostos em ações de execução fiscal, determinando que os executados paguem a diferença entre o saldo da conta judicial e o valor resultante da aplicação do índice de atualização do crédito tributário [8], sob o fundamento de que a posição firmada no REsp nº 1.820.963/SP tem efeito vinculante, à luz do que dispõem os artigos 927 e 1.039 do Código de Processo Civil/2015.
Pois bem
Como é cediço, num sistema de precedentes vinculantes, o ambiente da controvérsia é elemento definidor da aplicabilidade de um entendimento com efeito replicador como o consolidado no julgamento que implicou a revisão do Tema nº 677. Por isso já adiantamos a seguinte tomada de posição: o conteúdo firmado no tema inaplicável ao processo tributário.
Destaque-se que o STJ, ao firmar a tese do Tema Repetitivo nº 677 em sua redação original (recurso especial nº 1.348.640/RS), analisou alegação de violação ao artigo 293 do Código de Processo Civil e ao artigo 395 do Código Civil, sob o argumento de que o depósito judicial do valor devido afastaria a mora em um conflito havido numa relação jurídica de direito privado.
Por sua vez, o recurso especial nº 1.820.963/SP, em que houve a revisão do entendimento firmado no Tema nº 677, foi interposto no âmbito de uma ação de indenização, em fase de cumprimento de sentença, e nele se alegou, conforme consta no relatório de lavra da ministra Nancy Andrighi, “violação dos artigos 397, 406 e 407 do CC/02; 489, § 1º, V e VI, 904, I, 905, 906 e 1.022, II, do CPC/15”. Nenhuma referência a dispositivos do Código Tributário Nacional ou da Lei de Execução Fiscal.
Quando lemos o voto condutor do acórdão, constatamos que o STJ, ao firmar o novo enunciado do tema nº 677, se limitou a analisar a aplicação das normas dos artigos 394, 395 e 401, inciso I do Código Civil e dos artigos 904, inciso I e 966 do Código de Processo Civil, todas atreladas à mora e à satisfação de crédito em ambiente conflituoso de relações de direito privado.
Esse o nó górdio da questão, pois o crédito tributário é regulado por normas construídas a partir da leitura do Código Tributário Nacional e, especificamente, nas ações de execução fiscal, da Lei nº 6.830/1980, leis específicas do processo tributário que se sobrepõem em relação a conteúdos gerais do Código de Processo Civil, aplicado apenas subsidiariamente (isto é, na ausência de regramento nas leis especiais).
O STJ não analisou artigos relacionados a conflito de direito material tributário, ou seja, o alcance normativo do artigo 151, inciso II ou do artigo 156, inciso VI do CTN, que tratam da suspensão exigibilidade do crédito tributário por depósito de seu montante integral e da extinção do crédito tributário como decorrência da ausência de êxito pelo contribuinte em demanda por ele intentada e em que efetuou esse depósito.
Fatores esses que confirmam que, no processo tributário, o entendimento firmado no Recurso Especial nº 1.820.963/SP, que revisitou o Tema 677 dos recursos repetitivos, não é aplicável aos processos tributários, havendo que se reconhecer que, neles, efetuado o depósito do montante integral, suspende-se a exigibilidade do crédito tributário e, isso, faz cessar a responsabilidade do contribuinte sobre qualquer parcela da dívida, inclusive os consectários da mora (correção monetária, multa e juros de mora).
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[1] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
II – o depósito do seu montante integral;
[2] Art. 9º – Em garantia da execução, pelo valor da dívida, juros e multa de mora e encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, o executado poderá:
I – efetuar depósito em dinheiro, à ordem do Juízo em estabelecimento oficial de crédito, que assegure atualização monetária;
4º – Somente o depósito em dinheiro, na forma do artigo 32, faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora.
[3] Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
VI – a conversão de depósito em renda;
[4] Nesse sentido: STJ, REsp 1.847.706/RJ, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 3/3/2020, DJe 12/5/2020; STJ, REsp 774.739/RJ, rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, j.15/4/2008, DJe 14/5/2008.
[5] O depósito somente suspende a exigibilidade do crédito tributário se for integral e em dinheiro. (PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/10/1994, DJ 03/11/1994, p. 29768)
[6] No âmbito do recurso especial nº 1.820.963/SP, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça instaurou procedimento de revisão do Tema nº 677 dos recursos repetitivos, que enunciava que “na fase de execução, o depósito judicial do montante (integral ou parcial) da condenação extingue a obrigação do devedor, nos limites da quantia depositada”. Com o julgamento desse recurso especial, em 19/10/2022, o Tema nº 677 passou a ter o seguinte enunciado: “na execução, o depósito efetuado a título de garantia do juízo ou decorrente de penhora de ativos financeiros não isenta o devedor dos consectários de sua mora, conforme previstos no título executivo, devendo-se, quando da efetiva entrega do dinheiro ao credor, deduzir do montante final devido o saldo da conta judicial.”
[7] O Banco do Brasil, instituição financeira que administra as contas judiciais vinculadas à maioria dos Tribunais de Justiça estaduais, informa em seu sítio que, na forma prevista nos contratos firmados com esses tribunais, a remuneração dos depósitos judiciais é feita pelos índices da caderneta de poupança. (https://www.bb.com.br/site/setor-publico/judiciario/depositos-judiciais/. Acesso em 06/05/2024).
[8] Nesse sentido:
TJSP, Agravo de Instrumento nº 2071433-93.2024.8.26.0000, rel. Rezende Silveira, 14ª Câmara de Direito Público, j. 03/05/2024
TJSP, Agravo de Instrumento nº 2255017-37.20228260000, rel. Botto Muscari, 18ª Câmara de Direito Público, j. 27/06/2023
TJSC, Agravo de Instrumento nº 5056426-98.2023.8.24.0000, rel. Jaime Ramos, Terceira Câmara de Direito Público, j. 19/12/2023
TJSE, Agravo de Instrumento nº 0010065-18.2022.8.25.0000, 1ª Câmara Cível, Relatora Iolanda Santos Guimarães, j. 01/12/2022
Marcus Paulo Jadon
advogado tributarista no Fonseca Moreti Ito Stefano Advogados, especialista em Direito Tributário e em Direito Civil e Processo Civil, aluno do Curso de Extensão de Processo Tributário Analítico do Ibet e pesquisador do Grupo de Estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet-SP.