Da inconstitucionalidade pertinente a incidência de imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN) nas locações de bens móveis e a dicotomia com os contratos de locação mista
Natalia de Rosalmeida
A Súmula Vinculante 31 do STF não incide sobre os contratos de locação mista (locação de bens móveis acompanhada da prestação de serviços).
RESUMO: Este trabalho busca demonstrar a inconstitucionalidade na cobrança pelo ente público Estadual de ISSQN nas locações de bens móveis, bem como traça um paralelo referente a constitucionalidade na cobrança de tal imposto em contratos de locação mista – locação de bens móveis acompanhada da prestação de serviços – visto que o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a inconstitucionalidade descrita na Súmula Vinculante 31 não diz respeito a tais contratos, cingindo-se tão somente à inconstitucionalidade da cobrança do tributo quando a locação dos bens móveis e/ou quando a locação esteja nitidamente apartada da prestação de serviços, no que diz com o seu objeto. Assim, buscou-se demonstrar a coerência do posicionamento adotado pelo Supremo, de forma a manter seu entendimento coeso, mesmo que haja uma tentativa por parte dos contribuintes de burlar a Súmula Vinculante 31, para evitar-se cobrança de ISSQN, atrelando em suas teses pseudo contrato de locação mista, em que se configura na maioria das vezes a prestação de serviços e não uma simples locação.
Palavras-chave: ISSQN. Locação de bens móveis. Inconstitucionalidade. Contrato de Locação Misto. Súmula Vinculante 31. Conflito aparente.
1. INTRODUÇÃO
A não incidência do ISSQN sobre a locação de bens móveis causou no decorrer dos anos um embate de teses jurídicas acerca de sua constitucionalidade, tendo tal questão sido apreciada e definida pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 116.121/SP, o qual ocorreu no ano 2000.
Em face do decurso do tempo em relação ao julgamento do Recurso Extraordinário em questão, poder-se-ia considerar que a não incidência do ISSQN sobre a locação de bens móveis já está ultrapassado.
Ocorre que após o passar dos anos, muitas empresas vêm tentando burlar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, agora consolidado pela Súmula Vinculante 31, a qual dispõe que “é inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”, onde se criou uma espécie de contrato de locação mista (locação de bens móveis mais a prestação do serviço) no intuito de confundir o sujeito ativo responsável pelo imposto em questão para que este não possa cobrar a exação devida.
Ademais, a questão não pode ser ignorada, porque não há unanimidade no posicionamento jurisprudencial pátrio, principalmente no que se refere às decisões proferidas pelos magistrados de primeiro e segundo graus em processos (principalmente Execuções Fiscais) sob a sua apreciação. Basta acessarmos o banco de dados de jurisprudências constante nos sites de vários tribunais e observarmos os diferentes posicionamentos adotados nos acórdãos que tratam sobre o assunto.
Portanto, faz-se necessária a análise da questão, pelas razões expostas.
2. DA NÃO INCIDÊNCIA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA NA LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS E O CONFLITO APARENTE ENTRE OS CONSTRATOS DE LOCAÇÃO MISTA COM A SÚMULA VINCULANTE 31.
Conforme preceitua a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 156, inciso III, bem como a Lei Complementar nº. 116/2003, infere-se que o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) é de competência municipal, onde a ocorrência de seu fato gerador incide na prestação de serviços, ainda que estes não se constituam como atividade preponderante do prestador.
Ressalta-se que a Lei Complementar nº. 116/03 revogou a antiga legislação que norteava os ditames do ISSQN, qual seja o Decreto-lei nº. 406/68, o qual teve sua lista de serviços aumentada em virtude das mudanças ocorridas no decorrer dos anos pertinentes as formas de prestação de serviços, visto que a referida listagem é taxativa, não comportando analogia, o que dificultava a cobrança e o enquadramento das atividades desempenhadas pelos prestadores, conforme transcrevemos in verbis:
Constituição Federal
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(…)
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar;”
Decreto-lei nº 406/68 (Revogado pela LC 116/03)
“Art. 8º. O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa.”
Lei Complementar nº 116/03
“Art. 1º. O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”
Pelos dispositivos legais aduzidos alhures, denota-se que o sujeito passivo da obrigação tributária é o prestador do serviço, o qual deve encontrar-se previsto na lista contida na LC 116/03. Vale novamente ressaltar que esta lista é taxativa, onde caso o serviço não conste na mesma o tributo em questão não poderá ser cobrado, sob pena de ferir a Carta Magna.
Cabe impingir que pertinente a hipótese de incidência do ISSQN, este não se restringe a serviço, e sim a prestação do serviço, sempre compreendendo a realização de um negócio jurídico referente a uma obrigação de fazer, que configura a efetiva incidência para a cobrança do mencionado imposto. Tal informação é de suma importância, haja vista que a questão a ser analisada no presente estudo se perquire em analisar se a locação de bens móveis configura prestação de serviços.
Pois bem. Em detrimento de tal questão, cabe trazer à baila os esclarecimentos do Professor JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO, o qual dispõe o seguinte:
“Considerando que o direito tributário constitui um direito de superposição, incidindo sobre realidades postas por outros ramos do direito (civil, comercial etc.), torna-se imprescindível buscar o conceito das espécies básicas de obrigações (dar e fazer), para delimitar o âmbito do ISS, confrontado com os âmbitos do IPI e do ICMS.
Essa espécie de obrigação (fazer) não possui definição e características próprias, configurando-se de modo negativo à outra espécie de obrigação (dar), que ‘consiste na entrega de uma coisa móvel ou imóvel, para a constituição de um direito real (venda, doação etc.), a concessão de uso (empréstimo, locação), ou a restituição ao dono. Já as de fazer, conquanto se definam em geral de modo negativo, são todas as prestações que não se compreendem entre as de dar, têm, na verdade, por objeto um ou maia atos, ou fatos do devedor, como trabalhos materiais ou intelectuais.’ ‘A obrigação de fazer é a que se vincula o devedor à prestação de um serviço como ato positivo, material ou imaterial, seu ou de terceiro, em benefício do credor ou de terceira pessoa.’
(…)
Não se pode considerar a incidência tributária restrita à figura do ‘serviço’, como uma atividade realizada; mas, certamente, sobre a ‘prestação do serviço’, porque esta é que tem a virtude de abranger os elementos imprescindíveis à sua configuração, ou seja, o prestador e o tomador, mediante a instauração de relação jurídica de direito privado, que irradia os naturais efeitos tributários.” (Grifamos)
Com isso, constata-se que a diferenciação entre a obrigação de fazer e da obrigação de dar se perfaz de suma importância para distinguir-se qual o imposto será aplicado ao fato, conforme mencionou o renomado autor anteriormente, bem como se observa que a incidência do imposto em liça é sobre a prestação do serviço, considerando-se a prestação de serviço uma obrigação de fazer.
Quanto a questão, JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO aduz:
“Considerando as distinções existentes entre obrigação de ‘dar’ e de ‘fazer’, e os princípios consagrados pela Constituição quanto à tributação, chegou-se a um conceito constitucional de serviço, como sendo ‘prestação de esforço humano a terceiros, com conteúdo econômico, em caráter negocial, sob regime de direito privado, tendente à obtenção de um bem material ou imaterial.’
Portanto, em face do que até agora fora apresentado, conclui-se que o ISSQN é exigido daquele que presta determinado serviço previsto em lei, entendendo-se essa “prestação de serviço” como uma obrigação de “fazer”, com finalidade lucrativa.
Feitos tais esclarecimentos, faz-se necessário a análise se a atividade econômica de locação de bens móveis pode se configurar como prestação de serviço, constituindo-se como fato gerador do ISSQN.
Ainda na vigência do Decreto-lei nº. 406/68, o serviço de locação de bens móveis deveria sofrer a incidência do ISSQN, vez que estava previsto na lista contida na mencionada legislação, conforme segue:
Decreto-lei nº 406/68 (Revogado pela LC 116/03)
“Art. 8º. O imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa.
(…)
79. Locação de bens móveis, inclusive arrendamento mercantil;
Apesar de tal previsão contida na legislação já revogada, a questão foi decidida no Supremo Tribunal Federal, o qual declarou inconstitucional a expressão “locação de bens móveis” constante do referido item 79, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 116.121/SP, cujo relator foi o Ministro Octavio Gallotti, veja-se:
“TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso extraordinário pela letra ‘c’ e, por maioria, em dar-lhe provimento, declarando incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão ‘locação de bens móveis’, constante do item 79 da Lista de Serviços a que se refere o Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, na redação dada pela Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987, pronunciando, ainda, a inconstitucionalidade da mesma expressão ‘locação de bens móveis’, contida no item 78 do § 3º do artigo 50 da Lista de Serviços da Lei nº 3.750, de 20 de dezembro de 1971, do Município de Santos/SP.” (RE 116.121/SP, Rel. Ministro Octavio Gallotti, STF – Tribunal Pleno, j. 11/10/2000, DJ 25/05/2001)
Quanto ao mencionado julgado, cabe trazer à baila a análise proferida pelo mestre HUGO DE BRITO MACHADO, o qual assim comenta:
“Não há dúvida de que esse novo entendimento da Corte Maior é o que melhor aplica a supremacia constitucional como garantia do contribuinte. Na verdade, nada justifica a inclusão da locação de bens móveis no conceito de serviços de qualquer natureza (…).”
Esse entendimento é tão fundamental e pacífico que, quando da publicação da Lei Complementar nº 116/2003, que atualmente dispõe sobre o referido imposto municipal, foi vetado, pelo Presidente da República, o item da lista de serviços que constava a expressão “locação de bens móveis”.
A questão no STF, após persistência da controvérsia atinente aos contratos mistos, que englobam tanto a prestação de serviços quanto a locação de bens, deu ensejo à criação da Súmula Vinculante nº. 31, a qual dispõe: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
Em julgado recente, o Supremo ante a persistência da controvérsia atinente aos contratos mistos, que englobam tanto a prestação de serviços quanto a locação de bens, decidiu que a inconstitucionalidade da incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) nas operações de locação de bens móveis, somente pode ser aplicada em relações contratuais complexas se a locação de bens móveis estiver claramente segmentada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira, in verbis:
DIREITO TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA. INCIDÊNCIA EM CONTRATOS MISTOS. LOCAÇÃO DE MAQUINÁRIO COM OPERADORES. RECLAMAÇÃO. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DA SÚMULA VINCULANTE 31. DESCABIMENTO. “A Súmula Vinculante 31, que assenta a inconstitucionalidade da incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) nas operações de locação de bens móveis, somente pode ser aplicada em relações contratuais complexas se a locação de bens móveis estiver claramente segmentada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto, seja no que concerne ao valor específico da contrapartida financeira. Hipótese em que contratada a locação de maquinário e equipamentos conjuntamente com a disponibilização de mão de obra especializada para operá-los, sem haver, contudo, previsão de remuneração específica da mão de obra disponibilizada à contratante. Baralhadas as atividades de locação de bens e de prestação de serviços, não há como acolher a presente reclamação constitucional.” (Rcl 14.290-AgR, rel. min. Rosa Weber, julgamento em 22-5-2014, Plenário, DJE de 20-6-2014.)
Quanto a questão, podemos concluir que a locação de imóveis, locação de carros, máquinas e outros bens, sem motorista ou operador, não têm a incidência do ISS por não se caracterizar prestação de serviço e não ter previsão de incidência em Lei Complementar.
Contudo, havendo a locação de bem (no caso, máquina) com operador, não paira dúvidas da incidência do referido imposto, por tratar-se de efetiva prestação de serviços, em que o bem objeto da locação é, na verdade, apenas utilizado pelo prestador do serviço como instrumento de seu trabalho.
Vale ressaltar que em muitos casos a designação contratual do objeto do negócio jurídico está restringida a “locação de bens móveis”, mesmo que se tenha na realidade um negócio jurídico complexo, com a locação e, também, uma prestação de serviço, sendo legal, nestes casos, a incidência do Imposto Sobre Serviços – ISS, independentemente da denominação contratual.
Nestes casos, o Fisco municipal poderá se utilizar o disposto no parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, o qual dispõe que:
“Autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Assim, conclui-se que a Súmula Vinculante 31 não diz respeito a contratos de locação mista – locação de bens móveis acompanhada da prestação de serviços, mas tão somente sobre a inconstitucionalidade da cobrança do tributo quanto a locação dos bens móveis e/ou quando a locação esteja nitidamente apartada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto. Nesse sentido, trazemos precedente: 1ª Turma, ARE 666.545 ED, rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05/06/2012.
Portanto, não há qualquer fundamento legal para a exigência do ISSQN sobre a locação de bens móveis, devendo o imposto ser cobrado em caso de contrato cuja locação seja mista, no caso, locação de bens móveis acompanhada da prestação de serviços.
CONCLUSÃO
Pelas razões expostas, principalmente no que respeita ao posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, concluímos que a locação de bens móveis não pode sofrer a incidência do ISSQN, visto que lhe falta o núcleo da incidência, que é a própria prestação de serviço, uma vez que não envolve a prática de atos que consubstanciam um praestare ou um facere.
Quanto à questão dos contratos de locação mista (locação de bens móveis acompanhada da prestação de serviços), constatou-se que a Súmula Vinculante 31 não diz respeito aos mesmos, mas tão somente sobre a inconstitucionalidade da cobrança do tributo quanto a locação dos bens móveis e/ou quando a locação esteja nitidamente apartada da prestação de serviços, seja no que diz com o seu objeto.
Assim, qualquer atuação das fiscalizações municipais no sentido de exigirem o ISSQN sobre a locação de bens móveis deve ser contestada, bem como será devida nos contratos de locações mistas em que a locação não esteja apartada da prestação de serviços.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil(1988).
BRASIL. Decreto-lei nº 406/68.
BRASIL. Lei Complementar nº. 116/2003.
DE MELO, José Eduardo Soares, Aspectos Tributários e Práticos do ISS, São Paulo: Dialética, 2008, p. 29.
DE MELO, José Eduardo Soares. Aspectos Tributários e Práticos do ISS, São Paulo: Dialética, 2008, p. 34-35.
JURISPRUDÊNCIA: RE 116.121/SP, Rel. Ministro Octavio Gallotti, STF – Tribunal Pleno, j. 11/10/2000, DJ 25/05/2001.
JURISPRUDÊNCIA: Rcl 14.290-AgR, rel. min. Rosa Weber, julgamento em 22-5-2014, Plenário, DJE de 20-6-2014.
MACHADO, Hugo de Brito. O ISS e a locação ou cessão de direito de uso. 2004. Disponível em: .
Natalia de Rosalmeida
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada.