Controle de planejamento tributário depende da aplicação do direito privado

Heleno Taveira Torres

Como será demonstrado, não há fundamento legal em nosso sistema jurídico que permita a adoção da teoria da ausência do propósito negocial segundo uma feição econômica da interpretação das normas e condutas tributárias dos contribuintes [1]. Defendemos, sim, há anos, a necessidade de identificação da causa do negócio jurídico, como único critério jurídico rigoroso para aferir a validade dos atos dos particulares [2] e seus efeitos tributários.

A interpretação das normas tributárias que tenham como hipótese de incidência fatos qualificados como atos ou negócios jurídicos, para o surgimento de obrigações tributárias, exige, inexoravelmente, uma interpretação das normas de direito privado e dos atos ou negócios jurídicos.

A validade ou a eficácia dos atos e negócios de direito privado pressupõe a análise da causa jurídica, o que não se confunde com o “propósito negocial”. Por conseguinte, a tarefa da Administração Tributária, deveras, nas hipóteses de fiscalização sobre atos e negócios jurídicos do particular, não pode ser a de querer “construir” uma interpretação para desqualificar as opções do contribuinte, mas de aferir a correta aplicação do direito privado, mediante um teste de causa jurídica e controle dos efeitos das normas e dos tipos e formas empregados.
Em face das características do sistema tributário brasileiro, que ratifica o princípio da estrita legalidade, formal e material, e veda expressamente o uso de analogia para a exigência de tributos, não cabe qualquer propósito retórico no sentido de se postular o uso da teoria da “interpretação econômica” para aplicação ao direito tributário, atribuindo à Administração liberdade qualificadora, para que esta possa identificar os negócios jurídicos segundo seus propósitos.

Bem o demonstrou Sampaio Dória, ao descortinar a inadequação dos fatores ético e econômico para justificar a pretensão de exigir tributo sem a correspondente hipótese prevista em norma jurídica, sob pena de se instalar o arbítrio resultante da apreciação subjetiva de dados pré-jurídicos [3].

As normas de direito tributário não admitem a desconsideração dos negócios de direito privado pela ausência de propósito negocial. Nenhuma lei tributária o autoriza. Ao contrário, prevalece a autonomia privada e a liberdade dos contribuintes, exceto se comprovado ilícito, fraude ou simulação. Portanto, o que se exige é o controle da correta hermenêutica do direito privado, entre regras típicas das leis (normas gerais e abstratas) e os respectivos contratos ou atos jurídicos praticados (normas individuais e concretas).

Ainda que desejável por alguns, o propósito negocial não é critério legal para aferir a eficácia ou a validade dos negócios de direito privado. De mesmo sentir, como bem apontou Paulo Ayres Barreto:

“O proposito negocial, por si só, mostra-se, como dissemos, insuficiente para oferecer o devido embasamento jurídico de desconsideração dos negócios jurídicos realizados no exercício da liberdade e da livre iniciativa dos contribuintes. O princípio da solidariedade social, a respeito de ser um vetor interpretativo relevante ao legislador e ao intérprete, também não basta para criar obrigações ao contribuinte e não é fundamento suficiente para a promoção de autuação fiscal, pois autorizaria, evidentemente, a ratificação de arbitrariedades por parte da autoridade fiscalizadora.” [4]

A redução do ônus fiscal por meios lícitos é dever do bom administrador, responsável pela gestão do patrimônio de uma pessoa jurídica com finalidade lucrativa, nos termos do artigo 1011 do Código Civil [5].

De igual modo, Ives Gandra Martins tece severas críticas à teoria do propósito negocial, a saber:

“Não há, pois, no Direito Tributário brasileiro, regido pelo princípio da estrita legalidade, tipicidade fechada e reserva absoluta da lei tributária, a figura desconsiderativa, nem o princípio de que, à falta de propósito negocial, o planejamento fiscal, que apenas objetive reduzir a carga tributária, utilizando-se do instrumento legal existente, seja ilegal. Tal interpretação fere direitos fundamentais do contribuinte. Viola o inciso I do artigo 150 da CF. Desfigura moral impositiva e produz desconfiança de que, para gerar ‘superávits primários’ — cada vez mais difíceis, em face da esclerosada máquina burocrática, que consome 37% de tributos em relação ao PIB —, hoje é mais importante arrecadar do que cumprir a lei.” [6]

O teste da causa jurídica, portanto, é o único critério adequado para apurar a coerência da estrutura jurídica adotada. Ausente a causa, não pode subsistir a operação societária organizada com o único propósito de obter economia fiscal.

A causa jurídica, retome-se, é a função econômico-social típica do ato de direito privado, o núcleo da relação jurídica subjacente àquela forma específica do direito privado. Por exemplo, num contrato de compra e venda a causa jurídica é a transferência da titularidade mediante o pagamento do preço, do artigo 481 do Código Civil; numa fusão a causa jurídica é a integração entre duas empresas, como prevê o artigo 228 da Lei 6464/76 — “Lei das SAs”; numa cisão a causa jurídica é a separação de determinados ativos, nos termos do artigo 229 da Lei das SAs.

O controle fiscal da atuação preventiva dos contribuintes ou sobre as consequências fiscais das operações que as empresas praticam no mercado reclama uma necessária separação entre os atos inválidos, efetuados com fraude ou simulação, e aqueles que são lícitos e decorrentes da legítima economia de opção, como exercício dos poderes de autonomia privada, decorrente de todo o processo de dinamização das relações e investimentos inerentes aos atos de comercialização, indústria e prestação de serviços globalizados, na aplicação dos fatores produtivos e fluxos internacionais de capitais, inclusive entre ofertas competitivas entre regimes tributários de atração de investimentos dos Fiscos dos mais diversos países.

Atos ou negócios jurídicos com efeitos tributários podem ser planejados preventivamente, no âmbito interno ou internacional, como um agir lícito e plenamente permitido pelo ordenamento, ou seja, como decorrência do pleno exercício do princípio da autonomia da vontade e das liberdades contratuais.

Assim, com a expressão “planejamento tributário” deve-se designar unicamente as possíveis atitudes lícitas que possam vir a ser adotadas pelos contribuintes, na estruturação ou reorganização de seus negócios nas suas relações, estipuladas conforme o direito em vigor e que possam resultar em efeitos neutros, em redução da carga tributária ou em eventual diferimento do impacto fiscal para outros momentos.

Diante disso, a finalidade de redução de tributos pode ser atingida por atos legítimos ou por atitudes ilícitas (evasão ou elusão) do contribuinte. Por esse motivo, somente quando constituídos os atos jurídicos pretendidos pelo sujeito, ou verificada a sua omissão na constituição dos fatos, por meio da linguagem competente, é que o Fisco poderá determinar a sua licitude (planejamento tributário válido) ou ilicitude na forma de evasão ou de elusão de tributos.

O Estado não controla o planejamento; controla, sim, a concretização dos atos condicionados pelas informações veiculadas pelo planejamento, como atos ou negócios jurídicos desprovidos de causa jurídica (elusão) ou orientados para o descumprimento frontal da lei (evasão).

De fato, o planejamento tributário não é mais que uma técnica de “teste” preventivo que o operador faz do ordenamento, apreciando os fatos futuros à luz do ordenamento vigente, numa projeção das consequências das previsões do ordenamento sobre os fatos posteriores. É uma técnica de subsunção antecipada, antevendo as consequências jurídico-tributárias, elaborada para agir conforme o ordenamento, usando as operações menos onerosas disponíveis como legítimas.

Por esse motivo, somente quando constituídos os atos jurídicos pretendidos pelo sujeito, o Fisco poderá controlar a operação para determinar sua liceidade (legítima economia de tributos) ou ilicitude e precisar se ocorreu 1) evasão, 2) elusão de tributos ou 3) simulação. Sempre com a necessária cautela de apuração dos efeitos dos atos de direito privado que tenham sido praticados.

Como dito acima, o planejamento tributário não será intrinsecamente lícito ou ilícito. Anota Glória Maria Marin Benítez (2013) que “[l]a licitud o ilicitud de una determinada planificación fiscal será la conclusión a que se llegue tras la aplicación del Derecho a los negocios y actos jurídicos realizados por el contribuyente” (pp. 41-42) [7].

E, no mesmo sentido, Rachel Anne Tooma (2008), verbis [8]:

“[T]ax avoidance differs from tax evasion. Evasion of tax is the unlawful escaping of tax liabilities. Tax evasion involves taxpayers deliberately misrepresenting or concealing the true state of their affairs to tax authorities to tax authorities to reduce their tax liability. That is, evasion requires deceit on the part of the taxpayer.” (p. 14).

Confirma-se, assim, a premissa segundo a qual a licitude ou ilicitude só pode ser aferida quando conhecidas as circunstâncias concretas do negócio jurídico. “Eludir”, do latim eludere, significa evitar ou esquivar-se com destreza; furtar-se com astúcia, ao poder ou influência de alguém. Elusivo, o que tende a escapulir, a furtar-se (em geral por meio de argúcia) [9]. E isso ocorre quando não se verifica o atendimento da causa jurídica.

O chamado de planejamento tributário agressivo, portanto, será aquele lícito, mas que poderia equivaler à hipótese de elusão fiscal, quando se busca combinações de atos negociais que elidem a causa jurídica (resultado) permitida na escolha individual e concreta [10]. Em 2008, a OCDE sumarizou algumas hipóteses que poderiam ser alocadas ao conceito de “planejamento tributário agressivo”, assim compreendido:

“Planning involving a tax position that is tenable but has unintended and unexpected tax revenue consequences. Revenue bodies’ concerns relate to the risk that tax legislation can be misused to achieve results which were not foreseen by the legislators. This is exacerbated by the often lengthy period between the time schemes are created and sold and the time revenue bodies discover them and remedial legislation is enacted.
Taking a tax position that is favorable to the taxpayer without openly disclosing that there is uncertainty whether significant matters in the tax return accord with the law. Revenue bodies’ concerns relate to the risk that taxpayers will not disclose their view on the uncertainty or risk taken in relation to grey areas of law (sometimes, revenue bodies would not even agree that the law is in doubt)” [11] (p. 10-11).

O conceito de “elusão” para os fins do direito tributário equivale aos atos de autonomia privada carentes de causa ou quando o negócio aparente (simulado ou fraudulento) demonstre insuficiência da causa ou sua dolosa programação para evitar lei cogente. Não cabendo tal enquadramento, o que se tem na espécie é exercício legítimo de autonomia privada, com criação de negócio atípico, indireto, fiduciário ou com forma própria plenamente admissível, porquanto oriundo das três liberdades negociais: de escolha da melhor “causa” (fim negocial), da melhor “forma” e do melhor “tipo” contratual ou societário, quando estes não sejam definidos por lei.

Logo, não encontramos qualquer possibilidade para o emprego da teoria da ausência do propósito negocial ou da analogia no direito tributário brasileiro, o que vale também para as tentativas de interpretações extensivas e finalísticas, com o objetivo de cobrança de tributos, pela chamada “interpretação econômica” do direito tributário.

No Brasil [12], a Lei Complementar n°104, de 10 de janeiro de 2001, acrescentou o parágrafo único ao artigo 116 do CTN. Cuida-se de norma geral em matéria de legislação tributária, destinada ao controle de condutas elusivas, na formação das obrigações tributárias. Esta, porém, até o momento, não foi editada para empregar a teoria da ausência do propósito negocial.

Ao analisar-se a jurisprudência administrativa do Carf sobre os planejamentos tributários, portanto, apurados pela suposta ausência do propósito negocial, verifica-se que este critério não se encontra justificado pelo sistema jurídico para controle dos atos praticados pelo contribuinte, tampouco sua requalificação. O teste da causa jurídica, portanto, é o critério apropriado para a verificação da coerência da estrutura jurídica adotada. Nenhum outro critério poderá determinar os efeitos ou o objetivo das operações, em respeito ao princípio da verdade material.

[1] “Como mencionado, não há base legal no ordenamento jurídico brasileiro para a utilização da doutrina do propósito negocial”. GUTIERREZ. Miguel Delgado. O planejamento tributário e a teoria do proposito negocial. In: SCHOUERI, Luis Eduardo; BIANCO, João Francisco (coord.). Estudos de direito tributário em homenagem ao Professor Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p 770.

[2] TORRES, Heleno Taveira. Teoria da simulação de atos e negócios jurídicos. Revista dos Tribunais, vol. 849, p. 11 – 56, jul / 2006 e Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos, vol. 2, p. 547 – 610, Jun / 2011; TORRES, Heleno Taveira. Simulação de atos e negócios jurídicos – pacto simulatório e causado negócio jurídico. In.: AZEVEDO, Antonio Junqueira de; TORRES, Heleno Taveira; CARBONE, Paolo (Coord.). Princípios do novo Código Civil brasileiro e outros temas: homenagem à Tullio Ascarelli. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p. 283-354

[3] Dória, Antônio R. Sampaio. Elisão e Evasão Fiscal. SP: Bushatsky, 1977, p. 49.

[4] BARRETO, Paulo Ayres. Algumas reflexões sobre o propósito negocial no direito tributário brasileiro. In.: CARVALHO, Cristiano. Direito tributário atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. p. 199, grifos nossos e do autor.

[5] “Artigo 1.011. O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.

Nesse sentido: “Há casos em que o planejamento tributário se converte num dever; de fato, em certas circunstâncias, a eficiência é uma exigência formulada pela ordem jurídica. Exemplo claro é o do administrador eleito para dirigir uma empresa que deve adotar todas as medidas que, de acordo com a lei e o direito, sejam menos desvantajosas possíveis para a empresa voltada para o crescimento e o cumprimento da melhor maneira possível, da função social que lhe é imposta pela ordem jurídica. O direito positivo não deve condenar, para utilizar uma expressão em voga no direito francês, a ‘destreza fiscal’, e ninguém pode ser compelido a escolher entre alternativas válidas e lícitas, aquela que leve à maior carga tributária”. (ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Planejamento tributário. São Paulo: Saraiva, 200., p. 78.

[6] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Planejamento tributário e legalidade. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes Questões atuais do direito tributário. Vol. 18. São Paulo: Dialética, 2014. p. 226 (grifos do autor). Cf. SANTOS, Ramon Tomazela. O desvirtuamento da teoria do propósito negocial: da origem no caso Gregory vs. Helvering até a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo: Dialética, n. 243, p. 135, 2015. (grifos nossos e do autor). GOTLIB, Gabriel. El examen del proposito negocial (“business purposes test”). In.: CASAS, Jose Osvaldo; TARSITANO, Alberto (Coord.). Interpretación económica de las normas tributarias. Buenos Aires: Editorial Abaco, 2004. p. 611–634. UTUMI, Ana Claudia Akie. Planejamento tributário: qual é o futuro? In: CARVALHO, Cristiano (coord.). Direito Tributário Atual. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. p. 195.

[7] Benítez, G. M. M. (2013). ¿Es lícita la planificación fiscal?: Sobre los defectos de neutralidad y consistencia del ordenamiento tributario. Lex Nova, pp. 41-42.

[8] Tooma, R. A. (2008). Legislating against tax avoidance. IBFD, p. 14.

[9] “La elusión, desde un punto de vista lingüístico, es la acción y efecto de eludir. Una dificultad o un problema se elude cuando se esquiva o evita con astucia o maña”. Rosembuj, T. (1999). El fraude de ley, la simulación y el abuso de las formas en el derecho tributario. Marcial Pons, 1999, p. 94.

[10] Juárez, L. G. O. & Hamzaoui, R. (2015). Common strategies against tax avoidance: A global overview. In: M. Cotrut (Ed.). International tax structures in the BEPS era: An analysis of anti-abuse measures. IBFD, pp. 6-7.

[11] Organisation de Coopération et de Développement Économiques. (2018). Study into the role of tax intermediaries, p. 10-11. https://www.oecd.org/tax/administration/39882938.pdf. A Comissão Europeia (2012), por sua vez, definiu o conceito de forma mais ampla: “La planificación fiscal agresiva consiste en aprovechar los aspectos técnicos de un sistema fiscal o las discordancias entre dos o más sistemas fiscales con el fin de reducir la deuda tributaria, y puede adoptar diversas formas. Entre sus consecuencias, cabe señalar las deducciones dobles (por ejemplo, se deduce la misma pérdida tanto en el Estado de origen como en el de residencia) y la doble no imposición (por ejemplo, la renta que no se grava en el Estado de origen está exenta en el Estado de residencia)”. EU Comission. (2012). Commission recommendation of 6 Dec. 2012 on aggressive tax planning, COM 8806. http://data.europa.eu/eli/reco/2012/772/oj.

[12] Xavier, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. SP: Dialética, 2001, 175 p.

Heleno Taveira Torres

professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

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