Contabilização do IBS e CBS à luz dos precedentes do Carf
Alexandre Evaristo Pinto
Nesta semana, trataremos de um tema palpitante relacionado à reforma tributária do consumo advinda da aprovação da Emenda Constitucional nº 132/23: a contabilização do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição de Bens e Serviços (CBS). Para tanto, nos aproveitaremos da experiência doutrinária e dos precedentes do Carf que permeiam a contabilização de tributos calculados “por fora”.
Ante às limitações de espaço, deixaremos a análise da contabilização dos créditos de IBS e CBS para outro artigo.
Evolução histórica do tema
Ao instituir a Demonstração do Resultado do Exercício (DRE), o artigo 187, I, da Lei nº 6.404/76 previu que estaria discriminada na DRE a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos.
Como decorrência de tal dispositivo legal, consta no Manual de Contabilidade Societária da Fipecafi que a contabilização das vendas deverá ser feita por seu valor bruto, inclusive impostos, sendo que tais impostos e as devoluções e abatimentos deverão ser registrados em contas devedoras específicas, as quais serão classificadas como contas redutoras das vendas [1].
Diante de tal previsão legal, a Receita Federal manifestou o seu entendimento à época por meio do item 2 da Instrução Normativa SRF nº 51/78 no sentido de que na receita bruta não se incluem os impostos não-cumulativos cobrados do comprador ou contratante (Imposto sobre Produtos Industrializados e Imposto Único sobre Minerais do País) e do qual o vendedor dos bens ou prestador dos serviços seja mero depositário.
Desde então, no âmbito da legislação tributária, vários são os dispositivos que reafirmam que não integram a receita bruta os impostos não cumulativos, cobrados destacadamente do comprador e do qual o vendedor dos bens ou prestador dos serviços seja mero depositário, dentre os quais podemos destacar os artigos 12, §4º, do Decreto-lei nº 1.598/77 (com redação da Lei nº 12.973/14), 14, §4º, da Lei nº 8.541/92 e 31, parágrafo único, da Lei nº 8.981/95.
Vale destacar que o IPI é um imposto cobrado por fora, isto é, a alíquota incide sobre o preço do produto, e é somada ao valor do produto [2].
Nessa linha, Alceu Romeu, Celso Mendes, Paulo Carneiro e Roberto Piscitelli já assinalavam na década de 80 que embora o IPI faça parte do faturamento, a empresa deverá acrescê-lo ao preço dos produtos, sendo que o preço será cobrado do comprador, o contribuinte abaterá as quantias pagas por ele nas operações anteriores e repassará o saldo remanescente a recolher ao Tesouro Nacional [3].
Assim, tais autores mencionam que o contribuinte de direito atua como mero intermediário entre contribuinte de fato e a Fazenda Nacional, sem auferir qualquer resultado, razão pela qual não deve computar, como receita bruta, o montante do IPI [4].
De igual modo, mas sob uma perspectiva de Contabilidade de Custos, Eliseu Martins aponta que o contribuinte (de direito) de IPI age como simples intermediário entre o pagador final do imposto e o governo federal, não possuindo ele nenhuma receita quando cobra IPI de seu cliente, assim como também não incorre em nenhuma despesa ou custo quando paga o encargo a seu fornecedor [5],
Retomando-se a comparação entre o conceito de receita bruta presente na lei das sociedades anônimas e na legislação tributária, Gelbcke, Santos, Iudicibus e Martins asseveram que de acordo com a legislação fiscal, o ICMS integra a receita bruta, ao passo que o IPI não integra, no entanto, conforme a Lei nº 6.404/76, ambos deveriam integrá-la [6]. Marcelo Pohlmann pondera que tal diferenciação trazida pela legislação fiscal é contrária à Lei nº 6.404/76, sendo que não haveria motivos para distinguir o tratamento contábil do IPI em relação aos demais tributos[7].
Com vistas a conciliar tal problema, tem sido adotada a prática de registro contábil do valor total cobrado do cliente em conta denominada “Faturamento bruto” (em contrapartida à conta de Clientes) [8], ao passo que o IPI é debitado em conta de resultado, sob o título de “IPI Faturado” (em contrapartida à conta de IPI a Recolher), de forma que a receita bruta é decorrente do “faturamento bruto” menos o “IPI Faturado” [9].
Paulo Pegas destaca que ainda que o efeito final no resultado seja o mesmo, ele entende como mais adequado o reconhecimento do IPI apenas como parcela a recolher, deixando a receita registrada pelo valor efetivamente ganho, sem considerar o IPI na venda do produto [10].
A receita bruta enquanto base de cálculo de tributos
Com relação aos tributos incidentes sobre a receita bruta (ainda que não haja uma identidade entre o conceito contábil e o conceito tributário de receita bruta), atualmente são deduzidos da receita bruta para se chegar à receita líquida: ICMS, ISS, PIS, Cofins e, quando aplicável, contribuição previdenciária sobre receita bruta (CPRB).
Ademais, no âmbito da apuração do IRPJ e da CSLL nos regimes do Lucro Presumido e do Lucro Arbitrado, o conceito de receita bruta é central, uma vez que são aplicados coeficientes de presunção previstos em lei sobre a receita bruta.
O tema da receita bruta para fins tributários ganhou importantes contornos com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 574.706, no qual fixada a tese com repercussão geral “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”. Assim, para fins de apuração das referidas contribuições, o ICMS deveria ser deduzido da receita bruta.
Como decorrência de tal julgamento, surgem as chamadas teses “filhotes”, nas quais se busca aplicar o mesmo racional para outros tributos incidentes sobre receita bruta.
Em virtude das limitações de tamanho deste artigo, não entraremos em maiores detalhes com relação a estas teses, no entanto, cumpre destacar que as normas que regulam a tributação do PIS e da Cofins se referem expressamente ao conceito de receita bruta do artigo 12 do Decreto-lei nº 1.598/77, sendo que este dispositivo legal traz em seu §4º a menção de que não integram a receita bruta os impostos não cumulativos, cobrados destacadamente do comprador e do qual o vendedor dos bens ou prestador dos serviços seja mero depositário, o que implica que não restam dúvidas que o IPI Faturado não faz parte da base de cálculo de tais contribuições.
Com relação ao ICMS, o artigo 13, §2º, da Lei Complementar nº 87/96 dispõe que não integra a base de cálculo do ICMS o montante do IPI, quando a operação, realizada entre contribuintes e relativa a produto destinado à industrialização ou à comercialização, configurar fato gerador de ambos os impostos.
No que tange ao Lucro Presumido, o artigo 14, §4º, da Lei nº 8.541/92 contém o mesmo texto normativo do já destacado artigo 12, §4º, do Decreto-lei nº 1.598/77, de forma que não há que se falar em inclusão do IPI Faturado na base de cálculo neste regime de apuração.
A convergência ao padrão IFRS
Com a edição da Lei nº 11.638/07 e aprovação dos Pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) pelos órgãos reguladores, se iniciou o processo de convergência das normas contábeis brasileiras às normas internacionais.
O já revogado Pronunciamento Contábil nº 30 do CPC continha menção expressa de que as quantias cobradas por conta de terceiros – dentre as quais tributos sobre vendas, tributos sobre bens e serviços e tributos sobre valor adicionado – não são benefícios econômicos que fluem para a entidade, não resultando em aumento do patrimônio líquido.
Em que pese na divulgação das receitas na DRE se dê a partir da conta de receita líquida, o CPC 30 estabelecia que a entidade deveria fazer uso de outras contas de controle interno, como “Receita Bruta Tributável”, para fins fiscais, assim como a conciliação entre receita líquida e os valores registrados para fins fiscais seria evidenciada em nota explicativa às demonstrações contábeis.
O Pronunciamento Contábil nº 47 do CPC (atual norma que regula o reconhecimento de receita de contrato com cliente) reafirma as disposições do CPC 30, repetindo-as em seu item 112A.
Gelbcke, Santos, Iudicibus e Martins afirmam que tais disposições nas normas contábeis brasileiras decorrem da existência no Brasil de muitos tributos incidentes sobre receitas e de que são necessárias formas de contabilização que facilitem a fiscalização tributária.
Por fim, ainda que não haja uma norma contábil internacional equivalente, o Pronunciamento Contábil nº 9 do CPC regula a Demonstração do Valor Adicionado, demonstração financeira obrigatória para as companhias abertas, e determina que serão evidenciadas informações sobre a receita de contrato com cliente, que incluirá os valores dos tributos incidentes sobre essas receitas (por exemplo, ICMS, IPI, PIS e Cofins), isto é, corresponde ao ingresso bruto ou faturamento bruto, ainda que na DRE tais tributos estejam fora do cômputo dessas receitas.
A instituição do IBS e da CBS
Como consequência da reforma tributária sobre o consumo decorrente da promulgação da Emenda Constitucional nº 132/23, foram instituídos o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, ambos com características de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA).
Nos termos dos artigos 156-A, §1º, IX, e 195, §17, da Constituição Federal, o IBS e a CBS não integram as suas próprias bases de cálculo, sendo calculados “por fora”.
Em uma das primeiras manifestações acerca da contabilização dos referidos tributos, Amaury Rezende e Paulo Pegas lecionam que o IBS e a CBS não serão tratados como “despesa” na DRE das empresas, uma vez que tais tributos pertenceriam, efetivamente, ao adquirente e não deveriam transitar pelo resultado do vendedor [11].
Em complemento aos referidos autores, entendo que embora na DRE a informação do desempenho da entidade se inicie a partir da receita líquida, permanece a necessidade de evidenciação dos tributos sobre receita nos termos do item 112A do CPC 47, quer seja para tributos cobrados “por fora” ou “por dentro”, sobretudo, diante da parca informação sobre tal gênero de tributos nas demonstrações financeiras (com exceção da DVA, que se aplica a um número bastante pequeno de entidades).
Ao serem cobrados “por fora”, a contabilização do IBS e da CBS deveria seguir a contabilização do IPI, por meio do registro do valor cobrado dos clientes como Faturamento Bruto e o registro do IBS/CBS Faturado como dedução de tal montante para se chegar na Receita Bruta.
O texto legal dos artigos 12, §4º, do Decreto-lei nº 1.598/77 (com redação da Lei nº 12.973/14) e 14, §4º, da Lei nº 8.541/92 já me parece suficiente para que não haja aumento da base de cálculo do Lucro Presumido ou Arbitrado, visto que IBS e CBS se enquadram como tributos não-cumulativos, cobrados destacadamente do comprador e do qual o vendedor dos bens ou prestador dos serviços seja mero depositário. Todavia, é indubitável que uma alteração legal incluindo expressamente IBS e CBS em tais dispositivos tornaria tal ponto ainda menos incontroverso.
Precedentes do Carf
Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos a análise de algumas controvérsias julgadas no âmbito do Carf.
No Acórdão nº 101-78.094 (26/10/1988), a turma decidiu, por maioria de votos, por negar provimento ao recurso voluntário, entendendo pela indedutibilidade do IPI faturado registrado contabilmente no resultado do exercício para fins de IRPJ.
O contribuinte alega que o IPI não integra a receita bruta nos termos da Instrução Normativa SRF n. 51/78, de modo que não sendo assim custo ou despesa, ele sequer se inclui no universo dos tributos em que se discute a dedutibilidade para fins de IRPJ.
Tendo em vista que o caso concreto envolvia o reconhecimento de IPI faturado extemporâneo, o relator entendeu que seria usual e normal a pessoa jurídica ser depositária do IPI faturado, o que não aconteceria na situação de IPI faturado extemporâneo, visto que esta assunção de ônus do IPI não conferiria ao dispêndio o caráter de despesa necessária, visto que se trata de tributo que não integra a receita bruta da empresa.
Houve declaração de voto em sentido oposto ao da maioria do conselheiro Ary Toribio, conselheiro indicado pela Fazenda e professor de Contabilidade da FEA/USP, no sentido das lições do Manual de Contabilidade Societária de que o IPI não reúne características que o submeteriam às normas de dedutibilidade de tributos como custo ou despesa operacional, representando sim redução do valor de faturamento para fins de apuração da receita liquida que irá compor a determinação do lucro real, conforme preceitua a Instrução Normativa SRF nº 51/78.
Conclui o referido conselheiro e professor que a dedução do IPI na apuração do lucro líquido além de constituir procedimento técnico adequado, também se encontra amparada pela legislação vigente, mesmo considerando sua ocorrência no exercício posterior ao do registro da receita bruta das vendas sobre a qual incidiu o imposto.
No Acórdão nº 1202-001.007 (10/7/2013), a turma negou provimento ao recurso de ofício, de forma unânime, entendendo que o IPI cobrado/destacado na nota fiscal, cuja incidência se encontra em discussão judicial, somente deixará de ter a natureza de imposto, e se tornará definitivamente receita, quando houver sentença judicial com trânsito em julgado que decida pela sua não incidência.
As autoridades fiscais entendiam que a contabilização do IPI como dedução do faturamento bruto seria uma impropriedade neste caso específico, visto que houve destaque do IPI em nota fiscal e cobrança de tais valores dos clientes, sendo que o Poder Judiciário havia exonerado o contribuinte de tal recolhimento.
O conselheiro relator se ampara nas razões de decidir do Acórdão da DRJ, no sentido de que o registro contábil do IPI faturado como dedução do faturamento bruto está adequado no momento da competência e que o eventual êxito na discussão judicial sobre o não recolhimento do referido IPI somente fará com que no futuro haja o registro de uma receita em decorrência do estorno da obrigação relacionada ao IPI.
Conclusões
Diante do exposto, a experiência quase cinquentenária de contabilização do IPI, enquanto imposto cobrado “por fora”, não pode ser descartada e deve servir como base para a contabilização do IBS e da CBS. Os precedentes do Carf indicam controvérsias no montante do lucro tributável pelo IRPJ tão somente nas hipóteses de IPI extemporâneo ou em discussão judicial, não havendo maiores controvérsias tanto na “dedutibilidade” do IPI Faturado “corrente” quanto no fato de que ele não compõe a receita bruta para fins de apuração do Lucro Presumido.
[1] GELBCKE, Ernesto; SANTOS, Ariovaldo dos; IUDICIBUS, Sergio de; MARTINS, Eliseu. Manual de Contabilidade Societária. São Paulo: Atlas, 2018.
[2] REZENDE, Amaury; ALENCAR, Roberta; PEREIRA, Carlos Alberto. Contabilidade Tributária. São Paulo: Atlas, 2010. p. 85.
[3] ROMEU, Alceu; MENDES, Celso; CARNEIRO, Paulo; PISCITELLI, Roberto. Contabilidade Tributária. São Paulo: Atlas, 1985. p.66.
[4] ROMEU, Alceu; MENDES, Celso; CARNEIRO, Paulo; PISCITELLI, Roberto. Contabilidade Tributária. São Paulo: Atlas, 1985. p.66.
[5] MARTINS, Eliseu. Contabilidade de Custos. 12ª ed. Barueri: Atlas, 2025. p. 134.
[6] GELBCKE et al. Op. Cit.
[7] POHLMANN, Marcelo Coletto. Contabilidade Tributária. Barueri: Atlas, 2024. p. 22.
[8] GELBCKE et al. Op. Cit.
[9] REIS, Luciano Gomes dos; GALLO, Mauro Fernando; PEREIRA, Carlos Alberto. Manual de Contabilização de Tributos e Contribuições Sociais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 102.
[10] PEGAS, Paulo. Contabilidade Tributária. São Paulo: Atlas, 2017. Item 11.14.
[11] REZENDE, Amaury; PEGAS, Paulo. O registro contábil do novo IVA-dual (CBS + IBS) brasileiro. Revista de Direito Contábil e Fiscal n. 12.
ela USP e ex-presidente da Aconcarf.
Alexandre Evaristo Pinto
é professor concursado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV), conselheiro do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), diretor financeiro da Fundação de Apoio aos Comitês de Pronunciamentos Contábeis e de Sustentabilidade (FACPCS), vice-presidente executivo da Apet, ex-conselheiro do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial p