Condição específica da ação penal tributária

Napoleão Maia Filho, Mário Goulart Maia

No domínio de sua teoria geral, a maioria dos juristas processualistas afirma que a promoção de qualquer ação judicial se rege pelo devido atendimento das respectivas condições genéricas, consistentes na legitimidade para a causa e no interesse de agir (artigo 17 do Código Fux). A admissibilidade em tese da pretensão deixou de ser apontada como uma das condições da ação, como constava do artigo 267, IV do Códogo Buzaid, embora para alguns permaneça latente.

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Napoleão Maia Filho

Na ação penal, porém, se insere uma terceira, para uns (ou uma quarta, para outros), condição da ação, qual seja a demonstração de sua justa causa. Pensamos que a justa causa é uma quarta condição da ação penal condenatória, que não comparece, porém, no processo civil. E assim é porque a ação penal contra uma pessoa já representa — por si só — uma forma difusa de penalidade, que expõe o acusado ao escárnio público, desmonta as suas resistências emocionais e derrota as bases de sua autoestima, além de destruir o seu conceito perante a sociedade.

O jurista e filósofo italiano e professor Francesco Carnelutti (1879-1965) já frisara, em livro de 1957, que “o acusado sente ter a aversão de muita gente contra si; algumas vezes, nas causas mais graves, lhe parece que todo mundo esteja contra ele. Não raramente, quando o transportam para a audiência, é recebido pela multidão com um coro de imprecações; também não raramente explodem contra ele atos de violência, contra os quais não é fácil protegê-lo” (As Misérias do Processo Penal. Tradução de José Antônio Cardinalli. Campinas: Bookseller, 2005, p. 28).

Por esta e por outras razões relevantíssimas, a denúncia penal — e o seu recebimento pelo juiz do crime — devem se envolver em reflexões densas, porque desencadeiam consequências fortíssimas que comprometem, de imediato, a dignidade da pessoa humana e a arrasta para solos pantanosos. O direito não compactua com essas consequências e, para esconjurá-las, põe à disposição do denunciado um rol de medidas jurídicas aptas a neutralizar as investidas sancionadoras deslastreadas de elementos consistentes e sólidos. A primeira delas é, sem dúvida, o remédio constitucional do Habeas Corpus a ser prontamente concedido quando a promoção penal condenatória faltar justa causa (648, I do CPP).

Aí já se vê que essa exigência — a da justa causa — assume uma posição especialmente estratégica na ação penal condenatória, a merecer a máxima atenção do juiz do crime, no momento em que analisa a denúncia penal, ou seja, é indeclinável dever do juiz do crime perscrutar, com a devida rigidez metodológica, se a iniciativa sancionadora se reveste de todos os requisitos de admissibilidade, dando destaque à presença de sua justa causa.

Provas da materialidade do crime
A argúcia judicial deve — nesse momento de singular importância — atentar para a existência de provas (não de indícios) da materialidade do crime imputado ao denunciado e para a existência de indícios veementes (não de palpite) de ser ele, o imputado, o autor ou partícipe desse mesmo delito.

No que pertine diretamente à questão da justa causa, a professora ministra Maria Thereza de Assis Moura, uma das mais brilhantes julgadoras e juristas do País, assinala que “prova induvidosa da ocorrência de um fato delituoso, na hipótese, e prova ou indícios de autoria, apurados em inquérito policial ou nas peças de informação que acompanham a acusação constituem o binômio que dá consistência à iniciativa sancionadora, sem o qual inexiste justa causa para a instauração do processo criminal” (Justa Causa para a Ação Penal. São Paulo: RT, 2001, p. 241).

Essa lição da ilustre jurista paulistana é completada pelo seu magistério de que “para que alguém seja acusado em juízo, faz-se imprescindível que a ocorrência do fato típico esteja evidenciada; que haja, no mínimo, probabilidade (e não mera possibilidade) de que o sujeito incriminado seja seu autor e um mínimo de culpabilidade. E ela diz, em síntese perfeita, que o juízo do possível conduz à suspeita, e é inaproveitável para uma acusação. Para que uma pessoa seja acusada da prática de infração penal, deve despontar não como possível, mas como provável autor do delito. Daí dizermos que, com relação à autoria, devem existir, no mínimo, indícios bastantes para a imputação” (op. cit., p. 222).

CGJ/MAMário Goulart Maia, ex-conselheiro do CNJ
Mário Goulart Maia

O jurista professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho assinala que a questão da justa causa é uma questão delicada, que se refere a um dos mais complexos temas do direito sancionador, por isso deve ser tratada a partir de um nível de conhecimento desenvolvido. Para ele, o conceito (de justa causa) “diz o que intérprete diz que ele diz. Isso, em definitivo, enterra a neutralidade, por sinal algo alheio ao humano, clivado por natureza; e exacerba, em uma estrutura de sistema processual de núcleo inquisitório, o primado das hipóteses sobre os fatos, onde se produz, mesmo que não se queira, uma lógica deformada. (…). A grande luta, enfim, é não ceder às imagens e à tentação que provocam, mormente aquela de negar o sistema e, máxime, o de garantias” (Justa Causa Penal Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 11).

Justa causa se revela por meio de fatos
Portanto, a justa causa para a ação penal condenatória se revela ao juiz do crime por meio de fatos (não boatos) sobre a materialidade do ilícito e de indícios veementes (ou suficientes) da autoria, porquanto, sem esses elementos devidamente evidenciados, a denúncia se considerará vazia e, consequentemente, manifestamente inapta para movimentar o terrível aparato estatal punitivo.

Os conteúdos da denúncia sempre foram objeto de estudos dos mais eminentes doutrinadores nacionais do processo penal, como o professor Hélio Tornaghi, a professora Ada Pellegrini Grinover e o professor Fernando da Costa Tourinho Filho, além do sempre lembrado professor José Frederico Marques, para citar somente esses grandes luminares das letras jurídicas penais e processuais penais do País.

Sobre esse tema ensina o professor Hélio Tornaghi, com sua reconhecida atenção aos aspectos de garantia dos acionados que sempre ocuparam as suas cogitações jurídicas que “refere-se o Código à exposição minuciosa, não somente do fato infringente da lei, como também de todos os acontecimentos que o cercaram; não apenas de seus acidentes, mas ainda das causas, efeitos, condições, ocasião, antecedentes e consequentes. A narrativa circunstanciada ministra ao Juiz elementos que o habilitam a formar um juízo de valor. Para que o ato humano seja considerado bom, força é que o seja tanto no essencial quanto no acidental” (Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1989, vol. 1, p. 43)

O professor Fernando da Costa Tourinho Filho também concentra a sua atenção no direito de defesa do acusado, aduzindo que tal exposição circunstanciada torna-se necessária, não só para facilitar a tarefa do magistrado, como também para que o acusado possa ficar habilitado a defender-se, conhecendo o fato que se lhe imputa (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1993, p. 344).

O professor José Frederico Marques, que foi magistrado, tido merecidamente como um dos mais acatados escritores do processo penal no Brasil, afirma que o que identifica, precipuamente, a ação penal, é a imputação, a atribuição do fato delituoso ao acusado, que deve estar contida na denúncia. Para ele, “uma vez que no fato delituoso tem o processo penal o seu objeto ou causa material, imperioso se torna que os atos, que o constituem, venham devidamente especificados, com a indicação bem clara do que se atribui ao acusado. A denúncia tem que trazer, de maneira certa e determinada, a indicação da conduta delituosa, para que em torno dessa imputação possa o Juiz fazer a aplicação da lei penal, por meio do exercício de seus poderes jurisdicionais” (Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, Bookseller, São Paulo, 1997, pp. 147/153).

Ação penal condenatória tributária
No que se refere à ação penal condenatória tributária, especificamente sobre o requisito da materialidade — conexo ao da justa causa — cumpre observar que o colendo STF já assentou, pela sua Súmula Vinculante 24 que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.

Já faz muito tempo que a jurisprudência do egrégio STJ assimilou por completo essa diretriz, oriunda, aliás, de superior orientação do colendo STF. Veja-se:

A perfectibilização típica do crime previsto no art. 1.º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990 ocorre somente com o lançamento definitivo do tributo, antes do qual não há falar em justa causa para o exercício da ação penal.

A constituição do crédito tributário após o recebimento da denúncia não tem o condão de convalidar atos realizados em ação penal que, em completo descompasso com as normas jurídicas vigentes – inclusive com a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal – desde o seu nascedouro não alcança o plano da validade jurídica. Precedentes.

Ordem de habeas corpus não conhecida. Writ concedido de ofício para o fim de determinar o trancamento da ação penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia com base no lançamento definitivo do crédito tributário. (HC 238.417/SP, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe 26/03/2014).

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A Súmula Vinculante 24 estabelece que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

Instaurada a persecução penal em momento anterior ao lançamento definitivo do débito tributário, não há como deixar de reconhecer a falta de justa causa para a ação penal.

Circunstância que a jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal tem como vício processual que não é passível de convalidação (HC 100.333, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma). Precedentes: HC 97.118, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma; HC 105.197, Rel. Min. Ayres Britto.

Ordem concedida, ratificada a liminar deferida, para anular o processo-crime instaurado contra o paciente. (HC 97.854, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, pbl. 01.04.2014).

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Antes da constituição definitiva do crédito tributário, não há justa causa para início da ação penal relativa aos crimes contra a ordem tributária (art. 1º da Lei 8.137/1990). Precedente do Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC 81.611, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13.05.2005). A substituição, por novos lançamentos, dos autos de infração anulados por vício formal não convalida a ação penal ajuizada antes do lançamento definitivo, porquanto a constituição do crédito tributário projeta um novo quadro fático e jurídico para o oferecimento da denúncia. Durante a pendência do julgamento de recurso administrativo no âmbito tributário, não há o início do curso do prazo prescricional (art. 111, , do Código Penal). Ordem de habeas-corpus concedida, para trancamento da ação penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia, com base em crédito tributário definitivamente constituído. (HC 84.345, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA. DJ 24.03.2006).

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Este Superior Tribunal, na mesma linha da conclusão firmada na Súmula Vinculante 24/STF, possui entendimento consolidado no sentido de que a constituição definitiva do crédito tributário e o consequente reconhecimento de sua exigibilidade é condição objetiva de punibilidade, vale dizer, indispensável à persecução criminal, uma vez que sua existência condiciona a punibilidade do crime (RHC 24.049/SP, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJe 7/2/2011).

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A Súmula Vinculante 24 do STF foi editada há mais de dez anos, como resultado da compreensão de que os crimes contra a ordem tributária, notadamente os previstos no art. 1º da Lei n. 8.137/1990, são materiais, cuja consumação se dá com a constituição definitiva do crédito tributário, que somente ocorre com o término do procedimento administrativo fiscal (RHC 143.516/RJ, Rel. Min. SCHIETTI CRUZ, DJe de 28/6/2021).

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Nos crimes contra a ordem tributária, a constituição definitiva do crédito tributário configura condição necessária ao oferecimento da denúncia. Constatado que o lançamento definitivo se consolidou apenas em momento posterior ao recebimento da denúncia, a qual atribui ao paciente a prática de sonegação fiscal, de rigor a decretação da nulidade do processo criminal desde o seu início.

Não há como cogitar no exercício da pretensão punitiva estatal, em se tratando de crimes contra a ordem tributária, se a exigibilidade do crédito estava, à época, sendo debatida no âmbito administrativo, daí se falar na impossibilidade de determinação dos contornos da própria materialidade delitiva. Ordem concedida. (HC 70.075/SP, Rel. Min. OG FERNANDES. DJe 19/03/2013).

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Nos crimes insertos no art. 1º da Lei 8.137/90, o lançamento definitivo do crédito tributário é condição objetiva de procedibilidade da ação penal, ou seja, somente poderá ser iniciada referida ação após esse marco, quando então estará configurado o tipo penal.

Mesmo que já tenha ocorrido o encerramento da via administrativa durante o curso do processo judicial, tal fato não possibilita o prosseguimento da mesma ação penal, nos termos da jurisprudência do STJ, ressalvado ao Parquet, caso entenda necessário, o oferecimento de nova denúncia, ou a ratificação da denúncia já existente. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1.133.915/ES, Rel. Min. CAMPOS MARQUES. DJe 09/04/2013).

O egrégio STJ, sob a segura diretriz judicante do ministro Sebastião Reis Júnior, tem orientado que, quando o crime tributário é permeado de delito não tributário, cuja persecução independe de lançamento, não se admite a sua persecução autônoma, tendo em vista a relação de delito-meio/delito-fim entre eles. Veja-se:

Trata-se de tentativa de contornar o óbice da Súmula Vinculante 24/STF, visto que, a se permitir a persecução penal pelo delito-meio, corre-se o risco de permitir dupla imputação pelo mesmo fato, já que, na manifestação ministerial, há menção a posterior oferecimento da denúncia pelos crimes tributários ou persecução penal pelos crimes materiais da Lei 8.137/1990, sem que o resultado ainda tenha sido produzido.

Recurso em habeas corpus improvido. Ordem concedida de ofício, para trancar a ação penal, determinando que o Juízo de piso reanálise a denúncia em relação aos corréus (RHC 151.007/PR. Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR. DJe 21/10/2022).

Entretanto, apesar dessas superiores diretrizes, não é raro o oferecimento de denúncias de crimes tributários formuladas antes do lançamento definitivo do tributo, como também não é incomum a prolação de decisões judiciais as acatando. Cabe relembrar que a súmula vinculante é um instrumento jurídico de nível constitucional máximo, dotado de eficácia plena e imediata, cujo objetivo é o de uniformizar a jurisprudência do STF e garantir a segurança jurídica (artigo 103-A da Constituição) e o seu conteúdo se aplica à Administração Pública e a todos os órgãos do Poder Judiciário, em todas as suas jurisdições e em todos os seus níveis.

E assim é porque a constituição do crédito tributário, pelo lançamento, é privativa da autoridade fiscal (artigo 142 do CTN), ou seja, nenhuma outra autoridade, seja qual for a sua função ou a sua hierarquia, poderá constituir o crédito tributário. Isso quer dizer que a materialidade da infração punível somente poderá ser provada com o lançamento do tributo.

Materialidade é elemento essencial para infração tributária
Nenhuma outra forma ou meio probatório se admitem para demonstrar a materialidade da infração tributária. E a materialidade — como se sabe — é elemento axial do ilícito punível e indutor da justa causa da ação sancionador. Entretanto, pode emergir um aparente complicador: o que pode a Autoridade Fiscal fazer, quando o contribuinte ou o responsável pelo tributo se esquivam de fornecer-lhe elementos para o lançamento? Essa conduta terá o efeito de impedir a constituição do crédito tributário e, assim, a denúncia criminal?

A resposta é solenemente negativa. E é assim porque o artigo 148 do CTN dá a alternativa segura para conjurar essa ocorrência, prevendo que a autoridade lançadora poderá — e deverá — se valer da alternativa do arbitramento do valor do tributo devido, assim arrematando o procedimento do seu lançamento e habilitando o MP a promover a ação penal respectiva, se for o caso.

O arbitramento fiscal se fundamenta na razão da necessidade prática de se estabelecer um ponto de partida para a positivação da regra tributária. Ou seja, mediante fatos conhecidos, presumem-se fatos desconhecidos, com base nos quais se arbitra a base de cálculo e o valor do tributo devido. O arbitramento é o meio posto à disposição da Fazenda Pública para estimar a dimensão material do fato imponível (expressão do professor Geraldo Ataliba).

Em conclusão e resumo, pode-se afirmar que o lançamento do tributo devido é condição específica da ação penal condenatória tributária. Vale dizer, sem o lançamento administrativo do tributo devido, a denúncia é improcedível, podendo o seu (eventual) recebimento ser obstado por meio do remedido constitucional do Habeas Corpus que, em hipótese assim, há de ser prontamente concedido.

Napoleão Maia Filho, Mário Goulart Maia

Napoleão Maia Filho
é ex-ministro do STJ.

Mário Goulart Maia
é advogado e ex-conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

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