Cofins não cumulativa, uma interpretação conforme à Constituição
Fábio Martins de Andrade, Mariana Zechin Rosauro e Rebeca Drummond de Andrade
Por Fábio Martins de Andrade, Mariana Zechin Rosauro e Rebeca Drummond de Andrade
O RE 570.122, com repercussão geral reconhecida, levou ao Plenário do Supremo Tribunal Federal interessante discussão. De um lado, pleiteava-se a declaração de inconstitucionalidade da sistemática não cumulativa da Cofins, tal como perpetrada pela Lei 10.833/03, que foi conversão da Medida Provisória 135/03. Na sessão de 20/10/2016, com a maioria de cinco votos contrários e apenas um (ministro Marco Aurélio) favorável, restou claro que a decisão da corte seria pelo reconhecimento da constitucionalidade. De outro lado, porém, constava como pedido subsidiário, que ganhou força a partir de tal sessão, o direito ao crédito ou à opção pelo contribuinte, ou seja, uma vez reconhecida a constitucionalidade da sistemática não cumulativa, que fosse dado ao contribuinte a opção de escolher qual regime adotaria (o regime cumulativo sem a tomada de créditos ou o regime não cumulativo com a tomada de créditos).
Levando em conta que a sistemática não cumulativa objetivou reduzir a carga fiscal relacionada ao PIS e à Cofins para as grandes cadeias produtivas composta de várias etapas, como a indústria pesada, por exemplo, observou-se que, com a sequência de modificações que foram perpetradas na legislação tributária, a situação hoje existente é rigorosamente injusta em relação às pequenas empresas ou daquelas prestadoras de serviço, que se valem da mão de obra como principal insumo.
Para tais casos específicos, de menor monta em relação ao impacto econômico, criou-se a seguinte situação esdrúxula: a empresa viu-se obrigada a recolher mais tributo em razão do aumento de alíquota perpetrado e não teve — como de fato não tem — qualquer direito a crédito, vez que não integra significante cadeira produtiva ou ela é pequena e não permite a tomada de crédito.
Na situação em foco, a sessão de 20/10/2016 foi interrompida com o pedido de vistas dos autos formulado pelo ministro Dias Toffoli, que parecia sensível ao aspecto acima assinalado. Contudo, quando ele, relator do RE 607.642, que cuidava do tema espelhado referente ao PIS, trouxe o seu substancioso voto, apesar de explorar o absurdo verificado com o emaranhado de modificações que se foram acumulando e distorcendo o sistema de tributação pelo PIS e pela Cofins, ao final, limitou-se a simplesmente “advertir o legislador no sentido de que as Leis 10.637/2002 e 10.833/2004, inicialmente constitucionais, estão num processo de inconstitucionalização decorrente, em linhas gerais, da ausência de coerência e critérios racionais e razoáveis das alterações legislativas que se sucederam, no tocante à escolha das atividades e das receitas atinentes ao setor de prestação de serviços, que se submeteriam ao regime cumulativo da Lei 9.718/1998 (em contraposição àquelas que se manteriam na não cumulatividade)” (cf. Informativo 855 do STF, referente ao RE 607.542, julgado na sessão de 22/2/2017, que contou com o pedido de vista dos autos do ministro Marco Aurélio).
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, na assentada de 24/5/2017, o ministro Dias Toffoli prolatou o seu voto no RE 570.122, concluindo o julgamento, tanto pelo reconhecimento da constitucionalidade da sistemática não cumulativa da Cofins como também, aparentemente, pela ausência de qualquer direito de crédito na situação sob enfoque.
Algumas considerações são necessárias, especificamente quanto ao direito de crédito que, uma vez negado aos contribuintes, chancela enorme distorção e inclusive flagrante violação a isonomia.
A intenção do legislador, ao instituir a contribuição ao PIS e à Cofins não cumulativas, foi muito claramente expressa, não no sentido de aumentar a carga tributária, mas sim no sentido de corrigir distorções, mediante a cobrança em regime de valor agregado, de modo a estimular o crescimento econômico, incitando especialmente as empresas de pequeno e médio porte[1].
Diferentemente do que intencionou o legislador, entretanto, na prática e com as sucessivas e subsequentes modificações perpetradas pela legislação tributária, o que se verificou foi a mais completa distorção da própria sistemática não cumulativa, com o agravamento da carga tributária para diversos segmentos de contribuintes, como por exemplo, aqueles cuja mão de obra constitua insumo relevante, como é o caso especialmente das pequenas e médias empresas, bem como das prestadoras de serviços.
Nesses casos específicos, a alteração da alíquota da Cofins de 3% para 7,6% constituiu um aumento de 153% na alíquota nominal, representando um significativo aumento da contribuição efetiva, que não é mitigado, vez que não há a devida dedução dos créditos por falta de previsão legal.
Para tais segmentos de contribuintes, as modificações que instituíram a sistemática não cumulativa do PIS e da Cofins representaram, apenas e tão somente, um mero aumento nas correspondentes alíquotas, tornando-se indubitavelmente mais onerosas. Na realidade, o regime engendrado pela legislação não contemplou tais segmentos de contribuintes, que amargaram exagerado aumento de alíquota e se viram excluídos de qualquer possibilidade de exercer opção quanto ao aproveitamento do crédito, ao arrepio da Lei Maior.
Como forma de instituição da sistemática não cumulativa da Cofins, o artigo 3º da Lei 10.833/03 elencou as situações em que é possível o aproveitamento do crédito relativo às despesas incorridas. Todavia, o parágrafo 2º do referido artigo excluiu os valores pagos a título de mão de obra a pessoa física, sem qualquer respaldo constitucional. Disposições equivalentes há na Lei 10.637/02 (artigo 3º), relativa à contribuição ao PIS, cuja constitucionalidade também foi debatida no RE 607.642.
A propósito, no que tange à discussão referida, o ministro Dias Toffoli bem frisou, quando do julgamento do RE 607.642, iniciado em 22/2/2017, que as sucessivas leis promulgadas ao longo do tempo, deram ensejo à exclusão, com base em critérios casuísticos, da regra geral da não cumulatividade de outras atividades e receitas, retirando, pois, qualquer racionalidade ou neutralidade do modelo antes pensado pelo legislador[2].
Assim, no presente caso, não existe liame lógico-operacional para a imposição de contribuição não cumulativa se não há uma cadeia produtiva composta de várias etapas. Ora, se a hipótese de incidência se materializa como um fato não inserido em um processo de circulação de riquezas (como a prestação de serviços ou a produção de mercadoria com reduzidas etapas de circulação), não faz qualquer sentido a incidência da contribuição não cumulativa. A não cumulatividade pressupõe cumulação, evidentemente.
Os contribuintes não tiveram autorização para se creditar das despesas com mão de obra, de modo que sobre os prestadores de serviços e as empresas cuja utilização de mão de obra seja intensiva, recaiu tributação sobejamente superior (inclusive confiscatória), quebrando-se a própria equidade no custeio da seguridade, eis que estão suportando parcela significativamente maior de contribuição, se comparados a outros contribuintes em situação semelhante (ofendendo também o direito à livre concorrência).
Os embaraços à tomada de crédito mutilam a não cumulatividade, tornando-a ineficaz. Para alguns setores da economia, continua havendo cumulatividade na prática, mas com a majorada alíquota da contribuição não cumulativa, contrariando o propósito perseguido pelo sistema, expresso pelo legislador, e violando qualquer critério isonômico, ao ensejar um instituto alimentado pela maior ou menor pressão que diferentes setores econômicos exercem sobre o Poder Legislativo.
Ao assim proceder, o legislador acaba desvirtuando qualquer racionalidade ou coerência do sistema instituído, gerando impactos de ordem econômica, em razão do desequilíbrio concorrencial causado pela adoção de critério casuístico nas escolhas dos setores que teriam direito ao creditamento, cuja consequência não seria outra senão a das discriminações arbitrárias entre os contribuintes, atingindo, dessa forma, o princípio da isonomia e da capacidade contributiva, dentre outros.
Aliás, nesse sentido, o ministro Dias Toffoli bem expôs, em voto proferido no mencionado RE 607.642, que ofende a isonomia a adoção de tratamento diferenciado sem critério que justifique a discriminação ou mesmo quando esta não alcance o resultado que a fundamentou — exatamente a hipótese aqui discutida.
No RE 570.122, a empresa tem por atividade a produção de medicamentos e demonstrou no curso do processo que utiliza intensivamente mão de obra, integrando uma pequena cadeia produtiva. O RE 607.642, de relatoria do ministro Dias Toffoli, tem como recorrente empresa prestadora de serviços de segurança que, tal como naquele recurso extraordinário, limita-se a integrar pequena cadeia produtiva e que se utiliza precipuamente de mão de obra na consecução de suas atividades. Dada a vedação aos créditos espuriamente imposta pela legislação que instituiu a não cumulatividade das contribuições, lá, como aqui, verifica-se severo aumento da carga tributária, sem que haja qualquer respaldo constitucional para tanto, inclusive com a indevida restrição ao direito ao crédito (ou pelo menos a opção).
Sobre esse ponto, o ministro Dias Toffoli trouxe em seu voto naqueles autos que a impossibilidade creditícia na contratação de mão de obra seria “uma regra que vale para todos aqueles que se encontram abrangidos pelo regime não cumulativo de cobrança do PIS/Cofins”. Contudo, tal afirmação não seria absoluta, hábil a afastar a violação ao princípio da isonomia.
As empresas prestadoras de serviços, por exemplo, possuem, quase que em sua totalidade (100%), a mão de obra como único insumo de suas atividades. Como consequência, a vedação aos créditos gera um aumento ainda maior da base tributável. Já para a empresa de medicamentos em questão, o aumento da tributação ocorreu pela barreira ao crédito em percentual aproximado de 24%, referente à mão de obra que utiliza como insumo de suas atividades.
Em um cenário como esse, onde se percebe que contribuintes submetidos à mesma sistemática (não cumulatividade) e às mesmas vedações (impossibilidade de creditamento) são atingidos de formas diferentes — ao utilizarem menos ou mais mão de obra —, não é possível dizer que o princípio da isonomia esteja sendo respeitado pelo legislador.
Saliente-se que a Lei 10.833/03 (artigo 8º)[3] excepcionou determinadas pessoas jurídicas do regime da não cumulatividade, utilizando como critério distintivo o regime jurídico de tributação do imposto de renda.
Ocorre que diversas pessoas jurídicas simplesmente não podem optar pelo regime de tributação do imposto de renda com base no lucro presumido, consoante dispõem os diversos incisos do artigo 14 da Lei 9.718/98[4], de modo que a possibilidade de continuarem recolhendo as contribuições na forma cumulativa lhes foi tolhida, ficando submetidas à alíquota majorada, ainda que não possam tomar qualquer crédito, como é a situação sob enfoque.
Aliás, os ministros Edson Fachin[5] e Roberto Barroso[6], acompanhados pelos ministros Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux, na assentada de 20/10/2016, ao divergirem do relator, ministro Marco Aurélio, partiram da equivocada premissa de que o novo regime seria mais benéfico aos contribuintes e que supostamente existiria livre opção quanto ao regime do Imposto de Renda, a impactar no regime de apuração das contribuições ora em análise, olvidando-se que, na realidade, para alguns contribuintes não existe qualquer opção quanto ao regime de tributação inclusive do imposto de renda e, consequentemente, muito menos quanto ao PIS/Cofins.
Ao assim se pronunciarem, manifestaram o entendimento subjacente de que somente seria constitucional a Cofins não cumulativa se houvesse a opção de o contribuinte a ela se submeter, ou continuar sujeita à contribuição cumulativa como, aliás, manifestou o relator, ministro Marco Aurélio, em seu voto no RE 570.122[7].
Por isso a incidência não cumulativa da Cofins sob os ditames da Lei 10.833/03 à alíquota majorada de 7,6% somente seria constitucional se interpretada conforme à Constituição, no sentido de se reconhecer como optativa a adoção de tal sistemática relativamente à regra geral impositiva da Lei Complementar 70/91, com as alterações da Lei 9.718/98, que permanece integralmente em vigor.
No caso em foco, a interpretação da Lei 10.833/03 conforme à Constituição conduziria a conclusão inexorável de a empresa contribuinte estar sujeita à regra geral de apuração da Cofins, ou seja, 3% sobre o faturamento (Lei Complementar 70/91 c/c Lei 9.718/98), mas podendo optar pela nova sistemática de apuração da Cofins com incidência não cumulativa, se julgasse conveniente.
Essa interpretação da Lei 10.833/03 conforme à Constituição, com a opção pelo contribuinte quanto ao regime de apuração, em vista da possibilidade de tomada dos créditos no regime não cumulativo e com alíquota maior ou sem a tomada de créditos no regime cumulativo e com alíquota menor, é a que melhor se coaduna com a própria intenção do legislador e afasta qualquer violação aos diversos princípios e regras constitucionais vinculados a situação sob enfoque.
[1] A Exposição de Motivos da MP 135/2003, que originou a Lei 10.833/2003, foi bastante explícita nesse sentido: “O principal objetivo das medidas ora propostas é o de estimular a eficiência econômica, gerando condições para um crescimento mais acelerado da economia brasileira nos próximos anos. Neste sentido, a instituição da Cofins não-cumulativa visa corrigir distorções relevantes decorrentes da cobrança cumulativa do tributo, como por exemplo a indução a uma verticalização artificial das empresas, em detrimento da distribuição da produção por um número maior de empresas mais eficientes — em particular empresas de pequeno e médio porte, que usualmente são mais intensivas em mão de obra” (g.n.).
[2] Leis 10.925/04; 11.051/04; 11.196/05; 11.434/06; e 13.043/14.
[3] Semelhante redação se encontra na Lei 10.637/02, relativa à contribuição ao PIS.
[4] Lei 9.718/98: “Art. 14. Estão obrigadas à apuração do lucro real as pessoas jurídicas: I – cuja receita total no ano-calendário anterior seja superior ao limite de R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais) ou proporcional ao número de meses do período, quando inferior a 12 (doze) meses; II – cujas atividades sejam de bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras de títulos, valores mobiliários e câmbio, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e de capitalização e entidades de previdência privada aberta; III – que tiverem lucros, rendimentos ou ganhos de capital oriundos do exterior; IV – que, autorizadas pela legislação tributária, usufruam de benefícios fiscais relativos à isenção ou redução do imposto; V – que, no decorrer do ano-calendário, tenham efetuado pagamento mensal pelo regime de estimativa, na forma do art. 2° da Lei n° 9.430, de 1996; VI – que explorem as atividades de prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e a receber, compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring); VII – que explorem as atividades de securitização de créditos imobiliários, financeiros e do agronegócio” (g.n.).
[5] “Eventuais diferenças no regime de lucro real ou de lucro presumido, inclusive a respeito do direito de creditamento, não representa ofensa à isonomia ou à capacidade contributiva, pois a sujeição ao regime do lucro presumido é uma escolha realizada pelo contribuinte, sob as luzes de seu planejamento tributário” (transcrição do julgamento do RE 607.642 – g.n.).
[6] “…Em verdade constitucionalizou a opção efetuada pelo legislador ordinário, que já vinha de antes, de criação de um regime de tributação mais favorável. Desse modo, a Lei 10.833 não contém nenhum vício de inconstitucionalidade; mesmo porque, a rigor, o que se chama aqui de não-cumulatividade da COFINS é uma mera autorização de dedução de diversas despesas da base de cálculo do tributo, como forma de reduzir o impacto da carga tributária sobre alguns contribuintes.
No tocante à violação da isonomia, também penso que ela não ocorreu, porque a lei na verdade tratou de maneira diversa contribuintes que estavam em situação diversa no tocante ao tipo de lucro que fundamentaria a tributação. (…) Houve mera criação de um regime específico, que se pretende mais benéfico de recolhimento da COFINS. (…) É preciso lembrar que, juntamente com o aumento da alíquota, foram autorizadas uma série de deduções de créditos acumulados em razão da realização de despesas realizadas” (transcrição do julgamento do RE 607.642- g.n.).
[7] “Houvesse opção por parte do contribuinte, não teria a menor dúvida em placitar o tratamento diferenciado, no que se refere a alíquotas. Acontece que o sistema de cálculo do imposto de renda com base no lucro presumido ou arbitrado depende do atendimento a requisitos impostos pelo Estado” (transcrição do julgamento do RE 570.122 – g.n).
Fábio Martins de Andrade, Mariana Zechin Rosauro e Rebeca Drummond de Andrade
Fábio Martins de Andrade é advogado da banca Andrade Advogados Associados.
Mariana Zechin Rosauro é advogada da banca Andrade Advogados Associados.
Rebeca Drummond de Andrade é advogada da banca Andrade Advogados Associados.