Cobertor curto: tentativas ruins do Executivo para resolver crise fiscal

Por Elidie Palma Bifano

17/09/2025 12:00 am

A expressão popular “cobertor curto” é bastante adequada para retratar a situação fiscal do Brasil nos dias de hoje. Quando o cobertor é curto uma parte do corpo restará descoberta, ou os pés ou a cabeça, visto que as dimensões do cobertor, ou o corpo do seu usuário, não permitem coisa diversa. Nos últimos tempos o “cobertor curto” tornou-se uma doença que acomete o país, vinculada a uma única origem, o déficit público da União. O governo federal está adoentado e busca soluções, mas de forma atabalhoada, logo sem pesar consequências. Nesse tema há dois especiais aspectos que merecem nossas considerações: (i) os ataques aos incentivos fiscais voltados ao Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica — IRPJ e (ii) a redução da alíquota de presunção no cálculo do lucro presumido.

No mês de agosto passado tivemos a oportunidade de participar do excepcional 8º Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro, da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro). O tema de fundo foi “Justiça Fiscal e a Tributação dos Super Ricos”, cabendo-nos, nesse contexto, o subtema voltado às alíquotas efetivas do IRPJ e a tributação das grandes empresas.

Nossa apresentação partiu do conceito de alíquota para fins desse tributo, ou seja, o quantum de uma certa base é extraído a título de imposto sobre a renda.

Do ponto de vista prático é possível apontar três tipos de alíquotas, visto que a base de sua aplicação pode variar, ou seja, alíquota nominal, alíquota efetiva e alíquota “caixa”, sempre sob a forma de percentuais, já que à tributação da renda não se aplicam alíquotas “ad rem”, que incidem sobre bens, quantidades e qualidades.

A alíquota nominal é aquela prevista em lei, a qual deve ser aplicada sobre o lucro líquido apurado em balanço, sem qualquer ajuste. Portanto, é um conceito legal, assim como o é o lucro líquido, obtido a partir do lucro bruto (receita menos custos) deduzido de despesas financeiras líquidas de receitas e despesas administrativas, gerais e operacionais.

Quando o lucro líquido a ser tributado recebe ajustes determinados/permitidos em lei, ele é designado por lucro real. Esses ajustes correspondem a despesas que não podem ser deduzidas na apuração do tributo ou a receitas que não devem ser tributadas. Hoje a alíquota do IRPJ é de 15%, acrescida de mais 10% sobre o lucro real que exceda R$ 20 mil por mês, cifra não atualizada desde a Lei nº 9.430/96, o que nos permite considerar que a alíquota nominal é de 25%.

A alíquota efetiva, de sua vez, é um conceito econômico — contábil, pois resulta do valor do IRPJ dividido pelo lucro líquido de balanço. Como o Imposto sobre a Renda é apurado, na maior parte das vezes, com base no lucro real, lucro líquido ajustado ela, fatalmente, é inferior a 25%.

A alíquota efetiva é um dado relevante de avaliação da performance tributária das empresas, pois permite verificar se a administração se vale de todos os benefícios legais possíveis para sua atividade. Além disso permite comparações entre pares, dando aos investidores condições de aferir a eficiência tributária desses contribuintes.

Para muitos críticos desavisados a alíquota efetiva sugere uma menor contribuição, por parte da empresa, para com a sociedade, o que confrontaria muitos dos conceitos hoje prevalentes na área de sustentabilidade, política ditada pela administração da empresa que objetiva usar dos bens e das entidades sem comprometer o futuro.

A alíquota efetiva também indicaria um gerenciamento do ônus tributário em busca de oportunidades de economia, contudo, um exame detido da alíquota efetiva permite verificar que ela é afetada, diretamente, apenas por adições/exclusões definitivas, não devendo ser computadas, para tanto, verbas que apenas, temporariamente, afetam o lucro real.

Dentre essas verbas que integram o cálculo do lucro real em caráter definitivo, assim ajustando a alíquota nominal para se obter a alíquota efetiva, devem ser referidos os diversos incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público.

Por fim, a alíquota “caixa” é o quanto a entidade desembolsa, de fato, para pagar o IRPJ, a saída de caixa. É um conceito financeiro e leva em conta, na sua determinação, eventuais créditos de que a sociedade disponha e que lhe permitem liquidar esse tributo, sem desembolso. A alíquota “caixa” tem importância para fins da DFC (Demonstração do Fluxo de Caixa), visto que com as novas práticas contábeis o fluxo de caixa é mais relevante do que a própria distribuição de lucros, pois indica que a entidade pode pagar suas contas.

Diversas medidas, entretanto, foram tomadas pelo governo brasileiro com o objetivo de reduzir o efeito das benesses que o Poder Público já concedeu às pessoas jurídicas como é o caso da tributação mínima global (Regras GloBe) originada da OCDE, que exige uma tributação mínima de 15% sobre os lucros das corporações multinacionais e que no Brasil foi concretizada com Lei nº 15.079/24 e Instrução Normativa RFB nº 2.228/24, introduzindo-se, para tanto, o Adicional de Contribuição Social sobre o Lucro, da ordem de 10%.

O fato é que, de acordo com as regras do Pillar 2 do Beps, Regras Globais Anti Erosão da Base Tributária, é obrigatória a adesão local a tais mecanismos, ainda que sejam estranhos ao nosso sistema legislativo. E na realidade o são como já se manifestaram muitos estudiosos por ocasião de sua introdução. Com isso, entretanto, afastam-se muitas das benesses fiscais.

Além disso, o PL nº 1.087/25 ao introduzir uma tributação mínima aplicável à pessoa física sobre a totalidade da renda auferida, à razão de 15%, “desfaz” a alíquota efetiva decorrente da aplicação de benefícios fiscais. A metodologia adotada para isso é duvidosa e mescla elementos contábeis e tributários. E a imposição é peremptória, como se lê do artigo 16-B do PL:

…o imposto mínimo será devido pela pessoa física se a pessoa jurídica não tiver pago 34% (25% de IRPJ mais 9% de CSL) sobre a base tributável. Não ocorrendo isso, a diferença será complementada na pessoa física, com o Imposto de Renda Mínimo da Pessoa Física – IRPFM de 10%.

Com isso se conclui que a lei elimina, na pessoa física, os ajustes ao lucro que ensejaram reduções na base de cálculo do IRPJ, que não tributou esses lucros à razão de, pelo menos 34%, 25% combinado com a CSL de 9%.

Não bastasse a Lei nº 15.079/24 e o PL nº 1.087/25, na oportunidade em que o Congresso da ABDF se encerrava (dia 29/8), o deputado José Guimarães apresentou ao Congresso, o Projeto de Lei Complementar nº 182/25 que dispõe, entre outros temas, sobre a redução de incentivos e benefícios de natureza tributária concedidos no âmbito da União, inclusive no que se refere ao Imposto sobre a Renda.

De acordo com a Exposição de Motivos a finalidade dessa norma é aplicar uma alíquota mínima ou reduzir o valor de cada benefício citado em 10%, conforme o caso.

O curioso é que dentre esses benefícios e incentivos está incluído o regime do Lucro Presumido, previsto nos artigos 25 e 26 da Lei nº 9.430/96, como se comentará. A corroborar tudo isso, o artigo 3°, do PLP nº 182/25 dispõe que a redução dos incentivos e benefícios a que se refere o artigo 2º será implementada cumulativamente e no caso de regimes de tributação em que a base de cálculo seja presumida, os percentuais de presunção ficam acrescidos em 10%. Esse acréscimo, porém, somente se aplica aos percentuais de presunção incidentes sobre a parcela da receita bruta total que exceda o valor de R$ 1,2 milhão, no ano-calendário, observadas as disposições legais.

Todo esse movimento é justificado, pelo PLP nº 182/25, como uma necessidade de atender o disposto no § 1º de seu artigo 2°, o qual esclarece que a redução em pauta abrange os incentivos e benefícios tributários federais discriminados em publicação do demonstrativo de gastos tributários a que se refere o § 6º do artigo 165 da Constituição, nos termos do inciso III do § 4º do artigo 4º da Emenda Constitucional nº 109/21.

A finalidade, supostamente, é acompanhar e melhorar a política fiscal, restaurando o equilíbrio das contas públicas, assim aumentando a eficiência econômica e promovendo a justiça tributária. De acordo com o texto que acompanha a proposta, os subsídios tributários federais atingiram R$ 564 bilhões em 2024, o que corresponde a 4,8% do PIB, bem acima do teto de 2% estabelecido pela Emenda Constitucional nº 109 de 2021. O tema parece ser mais amplo, a nosso ver.

Nos últimos tempos a intenção de eliminar os critérios de tributação de IRPJ, com bases diferenciadas, não só no regramento do lucro presumido, mas também no Simples, é manifestada de forma velada pelo Poder Público, e tem sido objeto de artigos de economistas que vislumbram nesses regimes benesses tributárias descabidas e que tem servido de fundamento à edição de normas pelo Poder Executivo [1]. Ou seja, casou-se a intenção anteriormente manifestada, com o PLP 182/25 escolhido, propositadamente, para abrigar tal inovação.

É de se destacar que há anos houve uma tentativa de alterar a base de cálculo do IRPJ, para as prestadoras de serviços tributadas com base no lucro presumido, com a edição da Medida Provisória nº 232, objeto de rejeição pela sociedade, razão pela qual foi afastada. Os especialistas em contas públicas entenderam, à época, que o aumento dos impostos para as empresas provocaria elevação nos preços. Contudo, antes de ser afastada, a MP 232 foi examinada pelo Poder Judiciário, mostrando-se o movimento popular muito bem sucedido.

Não é outro o cenário nos dias de hoje, pois os danos que essa nova tributação poderá acarretar são muitos. Associado o projeto às manifestações de alguns economistas, observa-se que de há muito criou-se um ranço em relação ao regime do lucro presumido (e do Simples) ao qual se atribui grande parte dos males de nossas contas. Esse entendimento é equivocado.

O primeiro aspecto interessante e já apontado é tratar como benesse fiscal um regime tributário previsto no artigo 44 do Código Tributário Nacional, e definido como base de cálculo do Imposto sobre a Renda, dentre outros (montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis). Os danos que esse equívoco pode causar são muitos.

A Lei Complementar nº 101/2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas à responsabilidade fiscal, trata em seu artigo 14 da concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita, que deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, renúncia essa que deve enquadrar-se como anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

Ora, o critério de apuração do lucro presumido não se enquadra nas hipóteses descritas na Lei Complementar nº 101/2000, artigo 14, até porque é um regime de tributação previsto no Código Tributário Nacional como já se disse, cuja adoção depende do cumprimento de condições legais. Logo, o regime do Lucro Presumido não pode aparecer nos relatórios de gastos tributários da Receita Federal como uma benesse que afeta as contas públicas. Esse entendimento pode gerar um desastre entre esses contribuintes.

De fato, estatísticas mais recentes indicam que para o ano de 2024, os contribuintes que adotaram o lucro presumido para cálculo do IRPJ devido ascendem a mais de dois milhões, com faturamento anual entre R$ 4,8 milhões e R$ 78 milhões. Essas empresas são entidades que operam no comércio, na indústria e na prestação de serviços, não dispondo de grandes capitais e respondendo por alta empregabilidade.

Certamente que esse ônus adicional, não considerado na modelagem inicial da entidade e de seus retornos aos sócios, será repassado para os consumidores e quando não feito, representará acréscimo de custo insuportável, em muitas situações, ensejando o crescimento de demissões e programas similares.

Se comparados o PLP 182/25 e a Medida Provisória nº 232/00, esta última apenas propunha aumentar a base de cálculo das empresas de serviços, em nítido discrímen entre contribuintes, diversamente do PLP 182/25 que atinge todos os segmentos da economia, desde que a entidade seja tributada com base no lucro presumido.

As entidades que se colocam sob o lucro presumido não necessitam manter contabilidade para fins fiscais, pois a base de cálculo é a receita, independentemente dos custos ou despesas. Com isso fica evidente que o modelo previsto no Código Tributário e regulado por lei ordinária, se propõe a ser o mais descomplicado possível para empresas de menor porte, visto que o custo de contratar prestadores de serviços especializados, também pode ser relevante se considerarmos a complexidade da tributação no país, inclusive as obrigações acessórias exigidas.

É possível que uma entidade que adote o lucro presumido ao verificar a aplicação do lucro real a sua condição, apure um encargo tributário menor, mas a complexidade da apuração seja muito custosa, afora eventuais riscos inerentes ao critério do lucro real. Equivocada, portanto, a tentativa de alterar o critério de apuração do lucro presumido.

É certo que ao longo do tempo o Poder Público vem concedendo incentivos e benefícios para os contribuintes com objetivos variados, desde incentivar regiões até incentivar a produção de certos bens. A regra de ouro, nesse caso, é o ganho que a relação entre o produzido e o benefício concedido se mostre equilibrada entre as partes. Conceder incentivos é parte da atividade política do Estado, desde que para induzir comportamentos de interesse do Poder Público. Cabe escrutinar a concessão de benefícios e os resultados dela advindos, antes de qualquer medida que leve a sua supressão ou redução.

Certamente que as contas públicas não resultarão controladas com medidas dessa natureza que somente encarecem o custo de bens e serviços, pois importa saber, para nós contribuintes como e onde nosso dinheiro está sendo utilizado.

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[1] Exposição de Motivos do PL 1.087/25 que faz expressa referência ao artigo de Sergio Gobetti, Nota Técnica “Progressividade tributária: diagnóstico para uma proposta de reforma” publicada pelo Instituto de Política Econômica Aplicada — Ipea na Carta de Conjuntura Número 65 — Nota de Conjuntura 8 — 4º trimestre de 2024.

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é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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