CNJ desempenhará papel relevante na regulamentação do novo CPC

Igor Mauler Santiago

O Conselho Nacional de Justiça promove nesta quarta-feira (11/5) a audiência pública Regulamentação das modificações trazidas pelo novo CPC. Especialistas das mais diversas origens discorrerão sobre Comunicações processuais e Diário da Justiça Eletrônico, Leilão eletrônico, Atividade dos peritos, Honorários periciais, Demandas repetitivas e Atualização financeira[1].

Dos quase 100 experts inscritos, 48 foram selecionados para falar. Indicado pelo Movimento de Defesa da Advocacia (MDA) e pela Associação Brasileira de Direito Tributário (ABRADT), tratarei dos recursos repetitivos.

Antes de entrar no tema, cuja relevância para o Direito Tributário é evidente, convém abordar brevemente as competências do CNJ no novo regime processual. O CPC de 2015 reconhece ao órgão, entre outros, poderes para:

fixar metas de julgamento que preponderam sobre a ordem cronológica de exame dos feitos, de resto tornada flexível (artigo 12, parágrafo 2, inciso VII[2]);
definir supletivamente os honorários dos peritos particulares, quando o pagamento caiba a beneficiário da justiça gratuita (artigo 95, parágrafo 3, inciso II);
dispor sobre a composição e o funcionamento dos centros de mediação e conciliação, o currículo para a capacitação e a política de remuneração dos mediadores e conciliadores (artigos 165, parágrafo 1º, 167, parágrafo 1º, e 169);
disciplinar a prática e a comunicação de atos por meio eletrônico (artigo 196);
estabelecer normas de segurança para a penhora eletrônica de dinheiro (artigo 837);
regulamentar o leilão eletrônico (artigo 882, parágrafo 1º);
desenvolver programa de computador para a atualização financeira de valores (artigo 509, parágrafo 3º).
Trata-se sempre, como se nota, de regras acessórias que têm por destinatários diretos os juízes e os auxiliares da justiça, sem inovar quanto aos deveres das partes e de seus procuradores, dos terceiros intervenientes ou do Ministério Público. Isso está em linha com o caráter não legislativo do CNJ e com a sua competência para, dentre outros pontos irrelevantes aqui, controlar a atuação administrativa do Poder Judiciário (Constituição, artigo 103-B, parágrafo 4º).

Posta essa premissa, passemos à análise dos recursos repetitivos, assim entendidos – a teor do artigo 928 – o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR: artigos 976 a 987) e os recursos especial e extraordinário repetitivos (artigos 1.036 a 1.041).

O julgamento por amostragem de questões processuais e de fundo, com irradiação do precedente para os demais casos onde elas sejam versadas, revela-se essencial para a sanidade do Poder Judiciário num país com mais de cem milhões de ações em curso.

Porém, os desafios que esse sistema acarreta são proporcionais à magnitude do problema que visa a enfrentar, e os resultados até agora obtidos — só o IRDR é uma inovação do CPC de 2015 — demonstram que estamos ainda muito longe de um sistema razoavelmente satisfatório.

As disfunções manifestam-se em todas as etapas do procedimento, iniciando-se pela frequente eleição de leading cases pobres em argumentação jurídica, passando pela vinculação — virtualmente irreversível — de feitos a casos líderes tratando de tema diverso, e terminando na recusa dos juízes, pressurosos para aplicar o precedente à massa de processos paralisados, em analisar outros pedidos ou outras causas de pedir constantes de alguns deles (a incompetência do Estado para instituir uma taxa cujo valor se julgou razoável, a decadência de um tributo cujo fato gerador se julgou compatível com o CTN, etc.).

O CPC de 2015 enfrentou o primeiro e o último desses pontos. Para garantir o amplo debate das questões submetidas a julgamento por amostragem, autoriza o relator no STJ ou no STF a substituir os recursos especiais ou extraordinários recebidos das Cortes inferiores (artigos 1.036, parágrafo 4º, e 1.037, inciso III) e impõe a estas e àquele a seleção de recursos “que contenham abrangente argumentação e discussão” (artigo 1.036, parágrafo 6º). Embora não haja tais cuidados no IRDR, o direito de participação de terceiros interessados, com a apresentação de razões, documentos e sustentação oral, e ainda com o poder de requerer diligências, tudo devendo ser considerado no acórdão (artigos 983 e 984), tende a levar a igual resultado.

A vinculação equivocada de processos a leading cases sobre tema diferente — seja sobrestando-os até a decisão destes, seja estendendo àqueles o resultado (vitória do Estado ou do contribuinte) alcançado nestes – revelou-se, na sistemática anterior, um caso perdido. Com efeito, a jurisprudência firmou-se pelo descabimento de agravo ou de reclamação para o STJ ou o STF na espécie, afirmando que o erro deveria ser solucionado apenas por meio de agravo interno na Corte de origem[3], nem sempre inclinada a dar a mão à palmatória.

Lamentavelmente, a situação restou inalterada no Código de 2015, como decorre do artigo 1.030, parágrafo 2º. Um acréscimo para efeito de pura sistematicidade, mas sem melhoria substancial, foi feito pelo artigo 1.037. Como a suspensão de todos os processos idênticos é agora automática (inciso II), as partes devem ser intimadas da paralisação do seu feito, podendo demonstrar a diversidade temática e pedir o respectivo prosseguimento ao juiz ou ao relator (parágrafos 8º a 10). A negativa, entretanto, desafia no máximo agravo interno (parágrafo 13), ficando vedado o acesso às Cortes Superiores. Tudo como dantes.

Por último, a análise de outros pontos controvertidos no processo é determinada pelos artigos 1.037, parágrafo 7º (decisão pela Corte Superior, no âmbito dos próprios recursos selecionados como repetitivos) e 1.041, parágrafo 1º (decisão pelo Tribunal a quo, quando o exercício do juízo de retratação torne necessário o enfrentamento de outras questões tratadas na apelação, até então prejudicadas) e 1.041, parágrafo (decisão pelo Tribunal ad quem, após o juízo de retratação da Corte de origem, quando restem outras discussões no especial ou no extraordinário).

A implementação dessas regras pressupõe que se conheçam bem todos os processos em curso no País, para se decidir: (i) quais devem ser efeitos como leading cases; (ii) quais devem ou não devem ser sobrestados a partir da afetação de determinada matéria ao regime dos recursos repetitivos (também no IRDR a suspensão é automática, podendo ser estendida para além da jurisdição do Tribunal que dele conheceu – artigo 982, inciso I e parágrafos 3º e 4º) e (iii) que outras questões terão de ser analisadas em cada processo, após a aplicação do precedente.

Tratando-se de cotejo, não basta conhecer os paradigmas. Cumpre conhecer também cada um dos feitos a ser com eles comparado. Insuficientes, assim, embora decerto essenciais, os cadastros eletrônicos a serem mantidos pelos Tribunais e pelo CNJ com informações específicas sobre as questões de direito submetidas a julgamento por amostragem: teses jurídicas, fundamentos determinantes da decisão e comandos normativos relacionados (artigo 979).

Os dados necessários tampouco serão obtidos nos atuais sistemas de informação dos Tribunais, regidos pelo art. 206, o qual não exige mais do que juízo, nome das partes, e natureza, número e data de início do processo. Nesses cadastros, é comum que uma ação de alta complexidade – discutindo, digamos, a exigência de imposto de renda sobre lucros auferidos por controlada no exterior — tenha o seu objeto laconicamente descrito como Tributos — Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.

Um banco de dados apto a fazer frente aos desafios do Novo CPC deveria conter — além elementos acima e do valor da discussão — a descrição sintética, mas precisa, de todos os pedidos e das causas de pedir ligadas a cada um deles. Mantendo o exemplo e supondo alguns detalhes adicionais, a ação há pouco referida deveria ser cadastrada assim:

Natureza da ação: anulatória de débito fiscal

a) Pedido 1: Extinção parcial do crédito tributário
a.1) Causa de pedir 1: Decadência – aplicação do artigo 150, § 4º, do CTN, dadas a existência de pagamento e a inexistência de acusação de fraude

b) Pedido 2: Extinção total do crédito tributário
b.1) Causa de pedir 1: Inconstitucionalidade artigo 74 da MP 2.158-35/2001, por ofensa ao conceito de renda (princípio da realização)
b.2) Causa de pedir 2: Incompatibilidade com o art. 7º do tratado Brasil – França contra a dupla tributação internacional

c) Pedido 3: Exclusão da responsabilidade do coobrigado
c.1) Causa de pedir 1: Ingresso na sociedade após o fato gerador
c.2) Causa de pedir 2: Ausência de poderes de gestão
c.3) Causa de pedir 3: Inexistência de acusação de fraude (mera inadimplência)

Embora não possa, sem lei, impor o preenchimento deste cadastro às partes, o CNJ tem competência para criá-lo e encarregar os órgãos judiciais da sua alimentação, que deveria atualizar-se em cada instância (pois nem todos os pedidos e fundamentos sobem com os autos).

Nada obsta, ademais, que a regulamentação do CTN autorize os advogados das partes a preencherem os campos, inclusive para os processos em curso (a cada nova abertura de prazo, por exemplo), sujeitando-se à revisão do juiz e de seus auxiliares. Quer parecer-nos que a adesão seria expressiva, a ponto de gerar-se uma cultura de colaboração espontânea com o Judiciário, a bem da rápida obtenção dos efeitos das decisões superiores.

Além de permitir uma gestão racional dos recursos repetitivos, com ganhos de isonomia, eficiência e custo, este cadastro, uma vez universalizado, daria ao CNJ, ao Judiciário e à sociedade um conhecimento muito mais acurado do perfil da litigiosidade brasileira, contribuindo para o planejamento do futuro.

[1] http://www.cnj.jus.br/eventos-campanhas/evento/227-audiencia-publica-sobre-novo-cpc
[2] Todos os dispositivos citados sem referência à respectiva lei são do CPC de 2015.
[3] STJ, 1ª Seção, AgRg na Rcl. 14.527/RJ, Relatora Ministra Assusete Magalhães, DJe 16.12,2014; STJ, Corte Especial, QO no Ag. 1.154.599/SP, Relator Ministro César Ásfor Rocha, DJe 12.05.2011; STF, Pleno, Rcl. 13.508-AgR/DF, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 21.06.2013.

Igor Mauler Santiago

Sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG.

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