Churchill, Caetano e o ‘tema do momento’
Rosaldo Trevisan
O sesquicentenário do leão que ruge e o Gatt
Nascido em novembro de 1874, Sir Winston Leonard Spencer Churchill foi uma das personalidades mais relevantes do Século passado [1]. Extraordinário estadista, excelente orador e escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1953 [2], além de líder inspirador que levou a Grã-Bretanha à vitória na Segunda Guerra Mundial, tendo atuado por duas vezes como primeiro-ministro, pelo partido conservador (de 1940 a 1945, e de 1951 a 1955), Churchill mesclava o bom humor e a criatividade presentes nas incontáveis frases impactantes [3] reproduzidas até hoje, com a impressionante capacidade de trabalhar (e de fumar charutos e beber!) e com a aparência sisuda, registrada em famosas e históricas fotografias.
Uma das mais conhecidas fotos de Churchill, intitulada de “Roaring Lion” (em tradução livre, “O Leão que ruge”), foi tirada por Yousuf Karsh em 1941, logo após o líder britânico ter feito um discurso no parlamento canadense. Com a mão na cintura, Churchill é visto olhando severamente para a lente – uma expressão que Karsh atribuiu ao fato de ter acabado de arrancar um charuto da mão do primeiro-ministro antes de disparar o obturador. Mas o mais fantástico e surreal da foto não acaba na sua obtenção [4]. O retrato, que estava em um hotel em Ottawa, foi furtado e vendido em leilão a um advogado italiano, e recenetemente devolvido ao Canadá, em setembro de 2024 [5].
Churchill viveu (e moldou) uma realidade de cenário internacional que possibilitou a criação do Gatt (Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio), acordo que estabeleceu as bases para a liberalização progressiva do comércio nas décadas seguintes, assinado originalmente por 23 territórios, entre eles o Reino Unido e o Brasil. As décadas que seguiram o pós-guerra representaram um considerável avanço no combate ao protecionismo tarifário (o “velho” protecionismo), nas primeiras rodadas de negociação do Gatt (Genebra/1947, Annecy/1949, Torquay/1951, Genebra/1956 e Dillon/1960-1961). Até 1956, foram reduzidas tarifas para dezenas de milhares de mercadorias comercializadas através das fronteiras, que respondiam por aproximadamente metade do comércio mundial [6].
Mas, ao final da Rodada Dillon, o contexto internacional apontava que as negociações essencialmente tarifárias, nos moldes originalmente concebidos, estavam chegando ao limite. Após o estrangulamento do protecionismo tarifário, novos temas – não tarifários – passavam a ocupar a agenda do Gatt, exigindo a atenção para a compatibilização de interesses de países desenvolvidos e em desenvolvimento [7].
De Churchill a Caetano
Em meados da década de 1960, tudo muda em nosso roteiro, no cenário internacional e nacional. Os mecanismos criados no Gatt notoriamente acentuavam a disparidade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. No âmbito das Nações Unidas a década de 1960 foi declarada a “década do desenvolvimento”, culminando o “grito” dos países em desenvolvimento na I “Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento” (Unctad), em 1964, sob o comando do argentino Raúl Prebisch [8]. As negociações comerciais internacionais jamais seriam as mesmas a partir de então.
Spacca
De fato, na Rodada Kennedy (1964-1967), os debates alastraram-se a temas como “métodos de valoração aduaneira”, “políticas governamentais de aquisição”, “regulamentos técnicos e administrativos” e “políticas antidumping”, com avanços apenas neste último, e contemplaram a inclusão de uma Parte IV ao Gatt, tratando especificamente de “Comércio e Desenvolvimento”, atendendo (ao menos em parte) os anseios da Unctad.
Churchill nos deixa em janeiro de 1964, antes mesmo do início da Rodada Kennedy, e do incremento de manifestações violentas ao redor do mundo em tempos de guerra fria, e de militarização na América Latina, inclusive do Brasil. E passa a fazer falta, desde então, com seu espírito de estadista diplomático e conciliador.
Um ano após a morte de Churchill, o baiano Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, já com seus 25 anos, lançava por aqui seu primeiro LP (Domingo, em conjunto com Gal Costa). Músico, líder do chamado “tropicalismo”, e contestador do establishment, Caetano é uma figura bem diferente de Churchill (em formação, hábitos, vestimenta, e dezenas de outros aspectos), mas a semelhança é patente quando se analisa genialidade, coragem e manejo perspicaz das palavras. E, no cenário que aqui vamos analisar, isso basta.
Caetano compôs o hino/manifesto É Proibido Proibir, que, incompreendido, foi desclassificado do III Festival Internacional da Canção, e vaiado pelos presentes, no Teatro da Universidade Católica, em São Paulo, no dia 15/9/1968. Um ano depois foi preso (por cerca de dois meses) pelo regime militar e partiu para exílio em Londres, de onde retornou definitivamente em 1971, para tornar-se um dos maiores compositores e músicos da história do Brasil, com sucessos como Sampa, Leãozinho e Qualquer Coisa [9], ganhando dois Grammy Awards [10].
Do “Leão que ruge” ao Leãozinho da música de Caetano, lançado em 1977, o mundo do comércio internacional se torna mais protecionista, demandando regulação de novos temas, na Rodada Tóquio (1973-1979), como valoração aduaneira, subsídios e medidas compensatórias, medidas antidumping, barreiras técnicas e licenças de importação, já contemplando autorização definitiva para o tratamento diferenciado e favorável aos países em desenvolvimento, em bases não recíprocas (a chamada “Cláusula de Habilitação”) [11]. Caetano e Prebisch, cada qual a seu modo e em sua área, deram ressonância mundial ao “grito” latino.
A década de 1990, de fortalecimento do liberalismo, do Consenso de Washington e de consolidação da União Europeia, culminou na Rodada Uruguai, com a criação da OMC, na Ata de Marraqueche, em 1994. E, desde então, como diria Caetano, vivemos um momento “pra lá de Marraqueche”.
O “tema do momento”
O “tema do momento”, nos períodos que sucederam a Rodada Uruguai, é a facilitação do comércio, sendo o “Acordo sobre a Facilitação do Comércio” (AFC) o único acordo relevante da OMC nas últimas duas décadas. Apesar de o Brasil ser parte contratante do AFC, aqui promulgado pelo Decreto 9.326/2018, a filosofia da facilitação do comércio, com desburocratização e simplificação de procedimentos, e maior cooperação entre aduanas e intervenientes, e entre órgãos que atuam no comércio exterior, ainda não está expressamente incorporada em nossos textos legais.
Exatamente com o objetivo de trazer explicitamente ao direito positivo brasileiro essa nova forma de encarar o comércio internacional que foi redigido o anteprojeto de “Lei Geral de Comércio Exterior” (LGCE), sendo o tema tão atual e debatido em nosso país que esteve em quatro das últimas colunas deste “Território Aduaneiro”.
Em 17/09/2024, apresentamos a LGCE [12], sua estrutura básica e seus objetivos principais, além das ausências e de quais seriam os próximos passos do anteprojeto. Em 15/10/2024, Leonardo Branco e Thális Andrade comentaram possíveis impactos práticos do anteprojeto sobre as empresas, reforçando aspectos estruturais e fundamentos do texto [13]. Em 22/10/2024, Fernando Pieri analisa os desmembramentos dos 168 artigos do anteprojeto apresentado a consulta pública no mês de setembro/2024, apontando méritos e pontos que merecem reflexões e críticas [14]. E, em 29/10/2024, Fernanda Kotzias e Renata Sucupira aprofundam uma das críticas destacadas por Fernando Pieri: a de que teria sido limitada a participação e escasso o tempo para as contribuições do setor privado [15].
De fato, o tempo foi extremamente escasso para a elaboração do anteprojeto. Nesse aspecto, a crítica acaba sendo, ao mesmo tempo, o próprio fundamento do anteprojeto. Foi exatamente pelo escasso tempo que se optou pela preparação uma “lei geral”, factível, com foco no alinhamento às melhores práticas internacionais, presentes na CQR/OMA e no AFC/OMC (o que torna mais consensual e mais célere o trâmite e a aprovação). Por certo que aprimoramentos serão bem vindos no processo legislativo, que ainda está por iniciar, com ampla participação democrática, nas casas do Parlamento.
Parece mais fácil, lógico e prático dar seguimento aos temas consensuais, alinhados às melhores práticas internacionais em uma “lei geral”, corrigindo eventuais imperfeições (e elas existem!), do que travar o andamento de todo esse alinhamento importante na busca pela ideal codificação detalhada da plenitude da matéria aduaneira (ou pior, na busca pela inserção pontual de disposições normativas que excedam diretrizes sobre temas que não serão tratados exaustivamente no texto do anteprojeto).
Quanto ao sonho da futura codificação (comungado por este colunista), Caetano melodicamente recitaria:
“Ainda assim, acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, tempo, tempo, tempo” [16]
No que se refere à sequência do anteprojeto de “Lei geral”, Churchill afirmaria: “Now this is not the end. It is not even the beginning of the end. But it is, perhaps, the end of the beginning” [17]. Quem não conhece bem Caetano diria que ele complementaria essa frase de Churchill com “…ou não!” [18].
[1] O leitor pode encontrar uma excelente biografia de Churchill em: ROBERTS, Andrews. Churchill: caminhando com o destino. Trad. Pedro Mais Soares. Companhia das Letras: 2020.
[2] Premiação pelo conjunto da obra, com a seguinte motivação externada pelo Comitê: “…for his mastery of historical and biographical description as well as for brilliant oratory in defending exalted human values”. Disponível em: https://www.youtube.com/@observatorionacional. Acesso em 3.nov.2024.
[3] Algumas delas estão disponíveis em: https://winstonchurchill.org/resources/quotes/famous-quotations-and-stories/, acesso em 3.nov.2024. Aliás, nesse mesmo local o leitor encontra ainda citações falsamente atribuídas a Churchill que circulam pela internet.
[4] Sobre a foto, Yousuf Karsh comentou que após retirar o charuto de Churchill, retornou à sua câmera e “…he looked so belligerent he could have devoured me”. Foi exatamente nesse instante que a fotografia “do leão que ruge” foi tirada. Disponível em: https://www.smithsonianmag.com/smart-news/churchill-portrait-stolen-from-canadian-hotel-180980644/, acesso em 3.nov.2024.
[5] A notícia sobre a devolução e um registro do retrato podem ser encontrados também em: https://www.reuters.com/world/europe/roaring-lion-churchill-portrait-retrieved-italy-after-canada-theft-2024-09-19/. Acesso em 3.nov.2024.
[6] Tradução livre do inglês, idioma oficial do documento disponível em: https://docs.wto.org/gattdocs/q/GG/MGT/60-19.PDF. Acesso em 3.nov.2024.
[7] TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação e o Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: Lex, 2017, p.102.
[8] Prebisch foi secretário-geral da UNCTAD de 1964 a 1969 e já se havia destacado como diretor do Banco Central da Argentina, de 1935 a 1948, e como secretário-executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal), de maio de 1950 a julho de 1963. Ao lado do economista alemão Hans Singer, Prebisch ficou conhecido pela “teoria da deterioração dos termos de troca” em países em desenvolvimento (TREVISAN, Rosaldo. O imposto de importação…, op. cit., p. 107).
[9] O leitor pode encontrar uma biografia de Caetano em: DRUMMOND, Carlos Eduardo; NOLASCO, Marcio. Caetano: uma biografia – a vida de Caetano Veloso, o Mais Doce Bárbaro dos Trópicos. São Paulo: Seoman, 2017.
[10] Disponível em: https://www.grammy.com/artists/caetano-veloso/12725. Acesso em 3.nov.2024.
[11] Como destaca Basaldúa, a constituição da ALADI, em 1980, por meio do Tratado de Montevidéu, e a própria criação do Mercosul, em 1991, pelo Tratado de Assunção, foram amparadas na Cláusula de Habilitação (BASALDÚA, Ricardo Xavier. La Organización Mundial del Comercio y la regulación del comercio internacional. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2013, p. 184-185).
[12] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-17/lei-geral-de-comercio-exterior-um-alinhamento-importante/. Acesso em 3.nov.2024.
[13] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-15/820823/. Acesso em 3.nov.2024.
[14] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-22/anteprojeto-da-lei-geral-de-comex-comentarios-parte-1/. Acesso em 3.nov.2024.
[15] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-out-29/engajamento-em-prol-do-comercio-exterior/. Acesso em 3.nov.2024. Neste último artigo há ainda outras críticas, que demandariam mais linhas do que aqui se dispõe para análise (no que se refere a erro escusável, soluções antecipadas, gestão de risco, elevado número de remissão a normas complementares, e caráter “geral” da “lei geral”).
[16] Trecho de “Oração ao tempo”, que o leitor pode ouvir em: https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA. Acesso em 3.nov.2024.
[17] Churchill se refere, na frase, a uma vitória em El Alamein, no Norte da África, em 10/11/1942. Excerto disponível em: https://winstonchurchill.org/resources/quotes/famous-quotations-and-stories/. Acesso em 3.nov.2024.
[18] Alguns humoristas costumam atribuir o “…ou não!” ao final das frases como um apanágio de Caetano. O próprio Caetano já esclareceu, em entrevista, disponível em: https://globoplay.globo.com/v/1759859/, acesso em 3.nov.2024, que esse “…ou não”, eventualmente mencionado em uma fala sua, não é nem um bordão por ele criado, e nem reflete que ele comumente desdiz suas afirmações ao final das falas. Trata-se de excerto repetido na música “Cabeça”, de Walter Franco.
Rosaldo Trevisan
é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), auditor-fiscal da RFB, conselheiro da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, presidente da Câmara Especializada Aduaneira do Carf e membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).