Cejul traz novo modelo de consensualismo para a pena de perdimento

Andréa Duek

No dia 24 de janeiro último, apresentei, a convite da OAB-RJ, as inovações do contencioso relativo à pena de perdimento.

Vale dizer, inicialmente, que, com as alterações estabelecidas pela Lei nº 14.651, de 23 de agosto de 2023 [1], no Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, a aplicação e o julgamento da pena de perdimento de mercadoria, veículo e moeda obtiveram substanciais renovações no ordenamento jurídico brasileiro. Tais mudanças, inclusive, foram necessárias para fins de adaptação do Brasil a acordos internacionais em que é signatário [2].

O rito em instância única presente no Decreto-Lei no 1.455/1976, reiteradamente reconhecido como constitucional em decisões judiciais, embora sempre debatido pela doutrina, foi objeto de várias propostas de alteração nos últimos anos, e que se intensificaram após a adesão brasileira à Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA) [3], a qual estabeleceu, em seu Anexo Geral, Capítulo 10, disposições sobre o direito de recurso, cabendo destacar a norma 10.5: “Quando um recurso interposto perante as Administrações Aduaneiras seja indeferido, o requerente deverá ter um direito de recurso para uma autoridade independente da administração aduaneira”.

Centro Nacional de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul)
Diante do exposto na citada convenção, foram alterados pontos sensíveis da legislação anterior, que não mais atendiam aos interesses dos cidadãos nem da administração aduaneira, eis que a demora na análise dos processos administrativos muitas vezes levava ao aumento dos estoques de mercadorias, o que gera custos e aumenta o risco de deterioração. Quem atua diretamente no tema tem a verdadeira consciência desse cenário.

Portanto, caro leitor, a aplicação da pena de perdimento, a partir de 24 de agosto de 2023, passou a ser feita por auditor-fiscal da Receita Federal em exercício nas Unidades Aduaneiras Brasileiras, mais especificamente, lotados na administração aduaneira, enquanto que o julgamento em duplo grau passou a ocorrer por meio do Centro Nacional de Julgamento de Penalidades Aduaneiras, o Cejul, que está inserido no âmbito da Subsecretária de Tributação e Contencioso, área de negócio que não se coaduna com a administração aduaneira, o que pode ser observado pela estrutura da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil [4].

Importa ressaltar que, a partir da implementação do Cejul, questões precípuas em relação às decisões administrativas emanadas, tanto em sede monocrática prolatadas pela Equipe Nacional de Julgamento (Enaj/Cejul), quanto nas Câmaras Recursais do Cejul [5], passaram a ter relevância uniformizadora na construção de consistentes subsídios para o posicionamento da administração aduaneira, que atua como órgão fiscalizador no âmbito do perdimento. O Cejul nasceu com a função de estabelecer verdadeiro liame para o consensualismo, diante de uma nova postura adquirida pela administração tributária federal que, nos últimos anos, a nosso ver, tornou-se mais dialógica e comunicativa. Portanto, entre os objetivos desta nova estrutura está o de sedimentar sua jurisprudência e tratar questões controversas e muitas vezes lacunosas, as quais por décadas tiveram decisões possivelmente conflitantes. Na verdade, sequer possuímos um estudo comparativo de como era o antes.

Órgão busca a eficiência
Justamente, por vislumbrar o cenário anterior de incertezas, no tocante ao perdimento, difícil se torna pensar em melhoria da relação entre Fisco e contribuintes sem a construção do Cejul.

Os instrumentos norteadores de um precedente, de trechos de votos condutores ou mesmo de uma jurisprudência a ser formada e prevalente no Cejul e que, ainda, podem originar súmulas vinculantes em todo o âmbito aduaneiro relativo ao perdimento de mercadorias, veículos e moedas, são elementos extremamente poderosos e possuem o condão de trazer consigo balizas para compreendermos entendimentos, até então jamais discutidos administrativamente no âmbito da aduana, à época da instância única (as discussões eram travadas no Poder Judiciário).

O Cejul, mesmo sendo um órgão recente, já nasceu atuando fortemente em prol da eficiência, transparência e segurança jurídica. O julgamento em dupla instância, em que são proferidas decisões monocráticas pela Enaj e decisões colegiadas pelas Câmaras Recursais, com julgadores investidos em mandato; possibilidade de sustentação oral por áudio/vídeo gravado na Câmara Recursal, publicação das pautas destas últimas no DOU e das Atas no sítio da RFB, bem como o seu ementário, conforme disposto na Portaria Normativa MF nº 1005, de 2023, são algumas novidades importantes que trarão muitos avanços para a pena de perdimento.

A complementação dos normativos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, também tratou de prestigiar a uniformidade dos entendimentos por meio da edição de súmulas administrativas, representativas de suas decisões reiteradas e uniformes [6]. E vai além, estabelecendo regimentalmente a obrigatoriedade de sua observância por parte de seus integrantes.

Muito se buscou e se criticou a necessidade do julgamento independente e imparcial para a penalidade de perdimento. E tal feito se faz necessário, sim, eis que por tanto tempo o perdimento não conseguiu ter a notoriedade que merecia e agora terá, fruto da confluência de objetivos nas tratativas brasileiras em ambientes internacionais, ampliando a transparência do escopo deste antigo processo de trabalho que emergiu ao novo, para buscar o consenso e não o litígio no surgimento desta nova administração tributária.

Cenário seguro
Chamo mais uma vez a atenção do leitor, para o ponto positivo de o Cejul, órgão técnico, especializado, que passou a abarcar o duplo grau de julgamento para as penalidades de perdimento, em âmbito independente, encontrar-se na própria Receita Federal. As perspectivas uniformizadoras de casos divergentes são mais palpáveis, pois o órgão terá um núcleo preciso por meio de entendimentos sumulados com a jurisprudência sedimentada, buscando o consenso e a esperada segurança jurídica, transparência e a confiança dos contribuintes nas decisões prolatadas.

Neste sentido, esse passo já não poderia ser um ponto de partida melhor para a relação entre Fisco e contribuintes? Conferir previsibilidade e coerência aos pronunciamentos do seu órgão e para todos, uniformemente? Teríamos nesta esfera um cenário seguro e pavimentado para que os contribuintes e o Fisco Federal tenham o condão de atuar de forma garantidora do propósito inserido na Constituição Federal, ou seja, com respeito ao Estado Democrático de Direito.

A padronização decisória de casos análogos trará maior previsibilidade ao contribuinte, oportunizando a redução da respectiva litigiosidade no que tange ao perdimento. Todos sabemos que devemos sempre ter em mente os princípios constitucionais estabelecidos tanto no campo dos direitos e garantias individuais quanto no âmbito da administração pública, especialmente quanto à segurança jurídica e ao sistema de proteção da confiança.

Neste sentido, o Cejul, pensamos, encontra-se posicionado como órgão independente da Autoridade Aduaneira e tem todas as condições de iniciar um procedimento de adequação e interpretação das normas tributárias pela Receita Federal, em que todo esse caminho já poderá ter solidificado, com a uniformização no âmbito da própria Receita.

Cejul dá o norte a contribuintes e ao Fisco
Portanto, o escopo deste artigo é demonstrar o quão importante foi construir o Cejul nas bases estabelecidas pelos tratados internacionais, estampados por lei, que tramitou nas respectivas Casas legislativas sem quaisquer emendas – isto é importante ressaltar – e seus normativos subsequentes. Neste diapasão, tem-se um norte para que contribuintes e Fisco possam seguir uma conduta acerca do tema e, diante do ali exposto, iniciar uma dialética traduzida no sentido de como se prevenir acerca de possíveis autuações relativas ao perdimento, promovendo um compliance mais eficiente junto à empresa, grupo, pessoa física e corpo funcional da aduana brasileira.

Contudo, por óbvio, as posições divergentes têm por escopo melhorar a discussão, depurar o trabalho, tudo isso em festejo ao princípio da Segurança Jurídica e da Proteção da Confiança. Exatamente por estas razões que investiremos fortemente na jurisprudência futura do Cejul, e será de crucial importância como tendência, condução e incentivo ao diálogo, diante de uma cultura ainda muito pautada na litigância. Na esperança de que, exatamente, estas e outras reflexões ultrapassem o campo apenas das ideias e teses para uma conclusão definida em padrões consolidados, de forma a atender com segurança e eficiência a prevenção dos litígios e demandas fiscais, o breve estudo se finda, sem deixar o bom debate, que é sempre bem-vindo.

REFERÊNCIAS

ROCHA, Sergio André. https://www.conjur.com.br/2024-jan-22/o-cejul-e-a-convencao-de-quioto-revisada/

TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex, 2015, p. 163-198. A Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), em vigor internacional desde 03/02/2006, conta com 134 membros. Sobre a CQR/OMA, remete-se a: BASALDÚA. Ricardo Xavier. El Convenio de Kyoto Revisado: Antecedentes y Principios Aduaneros Involucrados. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 81-120; e MORINI, Cristiano. A Convenção de Quioto Revisada e a Modernização da Administração Aduaneira.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14651.htm

https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/estrutura-organizacional

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-mf-n-1.005-de-28-de-agosto-de-2023-506328565

http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133173

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14689.htm

[1] Lei 14.651, de 23 de agosto de 2023. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14651.htm [acesso em 19/12/2023]

[2] Sobre a questão da aderência do Brasil à CQR ver Sergio André Rocha, https://www.conjur.com.br/2024-jan-22/o-cejul-e-a-convencao-de-quioto-revisada/

[3] A Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), em vigor internacional desde 03/02/2006, conta com 134 membros. Sobre a CQR/OMA, remete-se a: BASALDÚA. Ricardo Xavier. El Convenio de Kyoto Revisado: Antecedentes y Principios Aduaneros Involucrados. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 81-120; e MORINI, Cristiano. A Convenção de Quioto Revisada e a Modernização da Administração Aduaneira. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex, 2015, p. 163-198.

[4] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/estrutura-organizacional [acesso em 21/12/2023]

[5] Portaria Normativa MF 1005, de 28 de agosto de 2023.

[6] Portaria RFB 348, de 01 de setembro de 2023.

Andréa Duek

auditora-fiscal da Receita Federal do Brasil, chefe do Cejul, ex-presidente da 1ª Seção do Carf, ex-conselheira titular na 1ª Turma Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), ex-delegada da Receita Federal de Julgamento no Rio de Janeiro, graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com MBA em Tributos pela PUC-RJ, e mestranda em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento na Uerj.

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