Carf analisa tributação pelo Imposto de Renda e dupla residência fiscal

Luís Flávio Neto e Alexandre Evaristo Pinto

Por Luís Flávio Neto e Alexandre Evaristo Pinto

Nesta semana, analisaremos como o Carf tem decidido em questões relativas à tributação pelo Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) no caso de dupla residência do indivíduo.

A competência tributária representa o conjunto de poderes que os entes soberanos possuem para instituir tributos. No tocante à competência tributária externa, Heleno Torres assinala que a atividade legislativa tributária dos Estados é livre desde que sejam utilizados elementos de conexão que demonstrem “um contato efetivo entre o fato-evento com elementos de estraneidade o Estado que tem a pretensão de discipliná-lo fiscalmente”1.

Para que um Estado possa tributar um determinado rendimento, deverá estar conectado2. Não há oposição quanto a isso, esclarecendo a administração fiscal brasileira, ao solucionar consultas de contribuintes, que “os rendimentos auferidos por pessoa física não-residente no País (residente ou domiciliada no exterior) de fontes situadas no exterior não se sujeitam à tributação do imposto de renda no Brasil”3.

O binômio universalidade e territorialidade (pura) reflete as duas opções oferecidas ao legislador interno para tributar aqueles que com ele mantêm uma conexão material (fonte de produção) ou pessoal (residência ou nacionalidade) , como pontua Luís Eduardo Schoueri4. Com relação ao princípio da universalidade, este pressupõe que o alcance espacial das normas tributárias transcenda o território do Estado5.

A decisão do legislador pela territorialidade (pura) consiste tributar os seus residentes exclusivamente em relação aos rendimentos obtidos em território nacional. Por sua vez, com a adoção do princípio da universalidade, o Estado exerce a sua competência tributária sobre a totalidade dos bens e rendas de seus residentes, independentemente da nacionalidade destas pessoas ou do local de origem das rendas ou dos bens6.

Boa parte dos países define “residência fiscal” por critérios exclusivamente objetivos, como a simples presença física em território nacional por um período mínimo, normalmente 183 dias. Alguns sistemas jurídicos possuem testes de domicílio fiscal com fatores mais subjetivos, como o “local principal de repouso”, “laços familiares”, “ânimo definitivo”, “centro vital de interesses”, “laços duráveis”. O legislador também pode adotar critérios mistos, que levem em consideração tanto fatores objetivos quanto subjetivos.

No Brasil, conforme o artigo 1º da Lei n. 7.713/887, o IRPF é devido pelas pessoas físicas residentes ou domiciliados no Brasil, sendo que a tributação independe da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem dos bens produtores da renda8. Em outras palavras, o contribuinte do IRPF é a pessoa física residente ou domiciliada no Brasil, ao passo que os rendimentos recebidos pelo residente no Brasil serão tributados pelo IRPF ainda que recebidos de fonte de pagamento ou fonte de produção localizadas no exterior.

Em relação aos estrangeiros, o Brasil adota critérios objetivos para reconhecer a conexão pela residência. Em relação a estes, Schoueri9 observa que, “embora possa estar presente o animus, o legislador dispensa sua prova, vinculando a residência a elementos observáveis”. Isso porque o estrangeiro adquire a condição de residente fiscal brasileiro quando concretizados fatos objetivos, como obter visto permanente e, ainda que com visto temporário, trabalhar com vínculo empregatício ou permanecer em território nacional mais de 183 dias, consecutivos ou não, dentro do período de doze meses.10

Já as regras brasileiras de residência fiscal aplicáveis aos nacionais levam em consideração fatores subjetivos, devendo-se “investigar e demonstrar o animus, sendo condições objetivas meros indícios, mas não elementos suficientes para a caracterização da residência” 11. Assim, o nacional que residir habitualmente no país será naturalmente residente fiscal, mas o brasileiro que sair do país abdicando da residência fiscal brasileira retomará tal condição no mesmo instante em que retornar ao Brasil com “ânimo definitivo” 12. A renúncia à condição de residente depende apenas da vontade do brasileiro ausente do país, que pode ser manifestada de forma expressa ou tácita. Com isso, torna-se irrelevante uma série de elementos objetivos, a exemplo da manutenção de negócios, propriedades e pertences pessoais no Brasil ou, ainda, visitas ao território nacional.

A manifestação tácita da intenção de abandonar o status de residente fiscal brasileiro se dá com o decurso do prazo de 12 meses de ausência e silêncio13. Por sua vez, a manifestação expressa se materializa com a entrega de Comunicação de Saída Definitiva do País14, que terá eficácia declaratória, pois o indivíduo será considerado não residente desde o momento da saída. A fim de apurar o imposto de renda devido até o momento em que se manteve a residência fiscal brasileira, o contribuinte deverá apresentar a Declaração de Saída Definitiva do País15, abrangendo rendimentos e aos ganhos de capital percebidos no período de 1º de janeiro até o dia anterior à data da saída do País, além da declaração correspondente aos rendimentos do ano-calendário anterior, conforme preceitua o artigo 14 do Regulamento do Imposto de Renda, fundamentado no artigo 17 da Lei n. 3.470/58.

Em diversas soluções de consultas, a Receita Federal identifica a importância de fatores subjetivos para a aferição da residência fiscal de nacionais. Nessa linha, “a pessoa física de nacionalidade brasileira que tenha adquirido a condição de não-residente no Brasil e retorne ao País com ânimo definitivo, volta a ser considerada residente na data da sua chegada”16. Sob a mesma diretriz, o brasileiro que “que se ausenta do País em caráter temporário ou se retira em caráter permanente sem entregar a Declaração de Saída Definitiva, até o dia em que completar doze meses consecutivos de ausência. O retorno da pessoa física ao Brasil, apenas para gozo de férias, não interrompe a contagem do prazo dos doze meses que caracterizaria a condição de não-residente no país”17.

Feitas as considerações gerais sobre a residência fiscal, iremos analisar precedente recente do Carf acerca da tributação pelo IRPF no caso de dupla residência fiscal.

No Acórdão 2301-007.136 (04/03/2020), entendeu-se, por maioria de votos, que é residente no Brasil o contribuinte pessoa física que tenha deixado o país sem cumprir o dever acessório de comunicar a saída definitiva à Administração Tributária brasileira. No caso, o contribuinte foi autuado em função da omissão de rendimentos decorrentes de trabalho assalariado exercido em Portugal com relação ao ano-calendário de 2010.

O contribuinte teria entregue a declaração de ajuste anual do referido período, sem a apresentação de declaração de saída definitiva. Em sua defesa, teria afirmado residir em Portugal desde 1993, bem como que equivocou-se na entrega da declaração de ajuste anual e na não apresentação de declaração de saída definitiva. Tal qual um erro de direito, o contribuinte teria partido da ideia de que a propriedade de bens imóveis no Brasil o obrigaria à apresentação da declaração de ajustes anuais. Além disso, embora sua remuneração fosse creditada por pessoa jurídica brasileira, este pagamento se daria por conta e ordem de pessoa jurídica estrangeira.

No voto vencido, constou o entendimento de que os pagamentos feitos por pessoa jurídica brasileira ao contribuinte se davam por conta e ordem de empresa estrangeira, o que estaria evidenciado nos livros contábeis e documentos relacionados à reembolsos de despesas, posição que já havia sido encampada no Parecer Normativo Cosit n. 04/96, conforme abaixo:

“9. O fato de o pagamento ou crédito dos rendimentos do trabalho assalariado ser efetuado em moeda nacional, no Brasil, diretamente por estabelecimento ou organismo situado no exterior ou por sua conta e ordem, não altera a definição de fonte pagadora dos rendimentos nem a origem desses rendimentos para efeitos tributários.

9.1. Razão pela qual os rendimentos do trabalho assalariado pagos ou creditados, em moeda nacional, no Brasil, diretamente por estabelecimento ou organismo situado no exterior ou por sua conta e ordem, nas condições da Portaria MF nº 001, de 02 de janeiro de 1986, sofriam o mesmo tratamento fiscal, perante o Decreto-lei 1.380/74, dispensado aos pagamentos ou créditos efetivados no exterior pelo mesmo estabelecimento ou organismo.

9.2. Mutatis mutandis, no ordenamento trazido pela Lei 9.250/95, esses rendimentos estão sujeitos à tributação no Brasil pelo carnê-leão e na declaração de rendimentos, nos 12 primeiros meses de ausência do contribuinte; ou não estão alcançados pela tributação brasileira, se o contribuinte já é considerado residente ou domiciliado no exterior”.

No voto vencido, o conselheiro julgador firma a convicção de que o contribuinte era residente em Portugal diante dos diferentes documentos trazidos, que incluíam cartão de cidadão de Portugal, carteira de motorista de Portugal, contrato de trabalho, declaração do imposto de renda de Portugal, além de faturas de energia elétrica, água, gás, condomínio, telefonia e internet.

A partir da análise do acordo para evitar bitributação celebrado entre Brasil e Portugal, o voto vencido afirmou que a pessoa física apenas seria considerada residente se mantivesse uma habitação permanente à sua disposição no Brasil. Se possuísse habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, deve ser considerada residente do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e econômicas, isto é, o centro de interesses vitais.

Neste ponto, o voto vencido se refere às chamadas tie-breaker rules previstas geralmente no artigo 4º dos acordos de bitributação, aplicáveis sempre que a legislação de ambos os Estados contratantes considerarem o contribuinte residente fiscal em suas respectivas jurisdições. De fato, os acordos de bitributação reconhecem ser possível que o indivíduo possua habitações permanentes em ambos os Estados, situação em que seria considerado residente do Estado contratante com o qual suas “ligações pessoais e econômicas sejam mais estreitas”, em que se encontre o seu “centro de interesses vitais”. Caso o “centro de seus interesses vitais” do indivíduo não possa ser determinado ou haja habitação permanente em ambos os Estados, a balança penderia para o Estado que apresentar maior frequência de permanência.

No Acórdão 2301-007.136, como decorrência da farta documentação trazida pelo contribuinte sobre a residência em Portugal, o voto vencido concluiu que os rendimentos discutidos devem ser tributados em Portugal, que seria o centro de interesse vital do contribuinte, sendo que a apresentação da declaração de ajuste anual se deu por erro comprovado.

Por sua vez, no voto vencedor constou o entendimento de que a pessoa física somente perderia a condição de residente quando cumulativamente nos termos do artigo 11-A da Instrução Normativa SRF n. 208/02: (i) retirar-se do território nacional; (ii) apresentar a Comunicação de Saída Definitiva no prazo estabelecido pela norma; e (iii) apresentar a Declaração de Saída Definitiva do país.

Considerando que não houve a apresentação da Comunicação e da Declaração de Saída Definitiva, não haveria como o contribuinte perder a condição de residente, sobretudo porque ele permaneceu entregando a declaração de ajuste anual.

Diante de tal cenário, o voto vencedor considerou que o contribuinte possuía dupla residência fiscal.

No tocante à análise da convenção para evitar bitributação entre Brasil e Portugal, o voto vencedor concluiu que o centro de interesse vital estaria no Brasil, visto que haveria imóveis e rendimentos da atividade rural no Brasil, de modo que os rendimentos deveriam ser tributados pelas autoridades fiscais brasileiras, sendo que o contribuinte poderia eventualmente comprovar que o rendimento teria sido tributado em Portugal para fins de compensação do tributo pago no exterior com o IRPF devido no Brasil, no entanto, constou no voto vencedor que não houve tal comprovação.

Diante do exposto, nota-se que no precedente julgado pelo CARF foi mantida a tributação pelo IRPF ainda que houvesse farta comprovação de que o contribuinte estava residindo em Portugal, uma vez que entendeu-se que o contribuinte tinha dupla residência fiscal, dado que: (i) formalmente permanecia entregando a sua declaração de ajuste anual e nunca apresentou sua declaração de saída definitiva; e (ii) materialmente era titular de imóveis e rendimentos da atividade rural no Brasil.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

1 TORRES, Heleno Taveira. Pluritributação Internacional Sobre as Rendas de Empresas. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2001. p. 69.

2 NETO, Luís Flávio. Planejamento tributário com star companies, residência fiscal de artistas e esportistas e acordos internacionais para evitar a dupla tributação. In Tributação internacional, análise de casos. São Paulo: MP, 2015, v. 2.

3 Receita Federal do Brasil. SOLUÇÃO DE CONSULTA nº 61 de 23 de julho de 2002.

4 SCHOUERI, Luís Eduardo. Princípios no Direito Tributário Internacional: Territorialidade, Universalidade e Fonte. In FERRAZ, Roberto (org.). Princípios e Limites da Tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 323-376.

5 XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 258.

6 MOREIRA JUNIOR, Gilberto de Castro. Bitributação Internacional e Elementos de Conexão. São Paulo: Aduaneiras, 2003. p. 38.

7 Lei n. 7.713/88, art. 1º.

8 Lei n. 7.713/88, art. 3º, § 4º.

9 SCHOUERI, Luís Eduardo. Residência fiscal da pessoa física, in Revista de Direito Tributário Atual n. 28. São Paulo: IBDT/Dialética, 2012, p. 163.

10 Lei 9.718/98, art. 12.

11 SCHOUERI, Luís Eduardo. Residência fiscal da pessoa física, in Revista de Direito Tributário Atual n. 28. São Paulo: IBDT/Dialética, 2012, p. 163.

12 IN SRF n. 208/2002, art. 2, IV.

13 IN SRF n. 208/2002, arts. 2, V, 3, V e 11.

14 IN SRF n. 208/2002, art. 3, II, 2, art. 11-A.

15 IN SRF n. 208/2002, art. 9.

16 Solução de Consulta nº 37/12.

17 Solução de Consulta nº 262/09.

Luís Flávio Neto e Alexandre Evaristo Pinto

Luís Flávio Neto é ex-conselheiro titular da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF, doutor e mestre em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), Postdoctoral Research Fellow do International Bureau of Fiscal Documentation (IBFD, Holanda), Coordenador e Professor do Mestrado Profissional em Direito Tributário Internacional e Desenvolvimento do IBDT, Sócio do KLA Advogados.

Alexandre Evaristo Pinto é conselheiro titular da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro da 2ª Seção do Carf, doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comercial pela USP, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e coordenador do MBA IFRS da Fipecafi.

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