Brasil tem a pior política de prejuízos fiscais do mundo

Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Venho defendendo em diversos textos[1] que o design de políticas tributárias precisa lidar com o trade-off entre criar uma técnica fiscal eficiente, que levante muita receita causando poucas distorções (por exemplo, sem desestimular investimentos), mas que, ao mesmo tempo, possa manter contribuintes em pé de igualdade (desigualando desiguais, se necessário).

Não é uma análise nem um pouco simples, pois ainda é preciso considerar que uma política de prejuízos fiscais, por exemplo, como qualquer outra, pode reunir vários mecanismos dentro dela, os quais produzirão efeitos completamente distintos de acordo com o design legal que lhes seja dado[2].

São vários níveis de análise, e não há percurso linear, pois eles se inter-relacionam. Desenhar políticas tributárias é, portanto, tarefa de imensa complexidade, que requer um profundo conhecimento transdisciplinar das melhores teorias e práticas existentes no mundo, ampla capacidade de ponderação de diferentes medidas interconectadas em face dos diferentes efeitos em inter-relação, uns mais previsíveis e outros menos.

Tudo isso deve ser pensado com olhos nas peculiaridades brasileiras, sempre considerando o que deu certo e errado ao redor do planeta, sem perder de vista a possibilidade de imaginar novas saídas. Vejamos o caso emblemático dos prejuízos fiscais para compreender como essa extensa e complicada análise é imprescindível para o sucesso do país.

As receitas e as despesas são voláteis, dependem do tipo de negócio e dos projetos. Em regra, explicando de uma forma simples, para gerar receitas é preciso incorrer primeiro em despesas, ou seja, investir em um projeto, vender bens ou serviços e, assim, obter receitas.

Se um mercado está ruim, como muitos agora, é possível que a obtenção de receitas fique mais diferida no tempo, incorrendo o empresário em prejuízos por alguns períodos até que, enfim, os resultados positivos venham, seja possível pagar as dívidas acumuladas e, quem sabe, fazer distribuições de lucros e dividendos.

Cada detalhe da apuração do IRPJ e da CSLL — que deveriam ser fundidos em um único tributo, não canso de repetir — precisa estar atento a incentivar o investimento nos projetos de empresas novas ou já existentes. Como, por exemplo, a técnica de apuração se dá por períodos curtos, há um enorme risco de ela não conseguir apreender a volatilidade de receitas e despesas ao longo do tempo.

O tempo, na nossa dimensão humana, é real, um fluir progressivo que medimos por meio de convenções criadas por nós. O tempo tributário é jurídico, também convencionado para medir o fluir das realidades fática e jurídica. Estabelece-se cortes para poder cobrar da melhor forma possível.

O problema é que, em países menos desenvolvidos, como o Brasil, a falta de conhecimento sobre política tributária e a ingerência causada pelos interesses políticos (no mau sentido) fazem com que essa “melhor forma possível” seja entendida quase unicamente como a que arrecada mais em menos tempo, apenas uma (ou duas, a depender da perspectiva) das diversas variáveis desse complexo jogo.

A tributação é uma ferramenta institucional (metainstituição) de desenho de instituições essenciais para o país, como renda e propriedade. Ela faz estímulos e desestímulos, afeta os retornos dos investimentos, define quem ganha mais e quem ganha menos e, portanto, molda quase toda a vida socioeconômica de um país. Assim, a política tributária deve se preocupar com cada mínimo efeito produzido por ela, ainda que por uma via bem indireta.

A regra de apuração do IRPJ e da CSLL no Brasil é trimestral, porém a grande maioria das empresas opta pelo regime anual, sujeitando-se ao pagamento de estimativas mensais, exatamente por conta da trava de prejuízos.

Como ela é aplicada por períodos de apuração, no caso de serem trimestrais, a empresa corre o risco de ter prejuízos em três semestres e depois apenas poder compensá-los no limite de 30% dos lucros do último trimestre, enquanto que, no regime de apuração anual, tudo seria compensado no fechamento dos quatro trimestres juntos, resultando em menos tributos a pagar.

Em suma, o sistema brasileiro criou uma regra de apuração trimestral, que é adotada por poucas empresas, pois elas fogem dos riscos trazidos pela trava de prejuízos, preferindo uma tributação em um ciclo mais longo no regime que seria excepcional, pois a apuração anual dá mais espaço para compensação.

Devido à volatilidade dos resultados, busca-se nos países desenvolvidos o chamado life-cycle approach (approach do ciclo de vida), que significa fixar períodos curtos para apuração dos tributos e, por outro lado, mecanismos que permitam uma tributação conectada ao máximo com a capacidade contributiva medida em períodos os mais longos possíveis, preferencialmente considerando toda a vida do contribuinte.

Com olhos nesse approach, no que toca à política de prejuízos fiscais, os países vieram relaxando bastante os seus limites[3] e aperfeiçoando-a para que houvesse os investimentos não fossem desestimulados[4].

A compensação de prejuízos não é um benefício fiscal, não é um favorecimento, algo que se dá por bondade, mas uma imposição dos princípios da igualdade, da isonomia tributária, da capacidade contributiva, da eficiência econômica e da igualdade de concorrência.

É uma obrigação constitucional de permitir que os prejuízos fiscais sejam compensados da forma mais eficiente e justa possível, para que não haja cobrança de tributos em valores completamente distintos entre contribuintes que tiveram o mesmo resultado em períodos maiores do que o do regime escolhido.

A decisão do STF no sentido de que a compensação dos prejuízos fiscais é um benefício e que, portanto, pode ser limitado pela lei, destoa totalmente dos seus fundamentos jurídicos e econômicos, e faz jus à atrasada tradição positivista legalista do Brasil. Esse limite legal, chancelado pelo Supremo, é apenas mais um dos gravíssimos desequilíbrios tributários que afundam a economia do país.

É disso que estamos tratando aqui: de tornar o empreendedorismo mais favorável, permitindo geração de mais receitas e pagamento de mais tributos, além da geração de mais empregos. Em vez de distribuir privilégios a alguns poucos, o Brasil precisa criar um sistema eficiente, justo, acessível a todos, ainda que isso ocasione, numa ótica imediatista, menor arrecadação.

Limites apertados para compensação dos prejuízos prejudicam em muito a economia, sendo, o seu único benefício, garantir mais arrecadação, em menor tempo e de um modo uniforme, ou seja, faz-se as empresas pagarem tributos fora da sua capacidade para que o Estado tenha mais receitas, algo comum no Brasil e que contribui bastante para nos manter eternamente subdesenvolvidos.

Na literatura de política tributária mundial, fala-se normalmente em três gêneros de mecanismos a serem utilizados para solucionar o problema dos prejuízos fiscais acumulados: a) restituição; b) compensação; e c) transferência. Além deles, é comum criar mecanismos específicos para os casos de encerramentos de empresas.

A restituição pura e simples acontece sempre que o contribuinte tiver prejuízos, independentemente de ele ter auferido lucros no passado ou de vir a auferir no futuro. Assim, da mesma forma que ele precisa pagar tributos quando tem lucros, recebe um pagamento da Receita Federal quando tem prejuízos.

Essa sistemática tem a vantagem de eliminar os efeitos tributários do prejuízo no mesmo período em que ele é incorrido, evitando os problemas causados pelo tempo. A grosso modo, se o prejuízo foi de R$ 1 milhão e a alíquota somada de IRPJ e CSLL é 34%, então a empresa recebe R$ 340 mil na sua conta corrente.

Assim, se a empresa pagou altos tributos no ano anterior (“x”), ao ter prejuízos no presente ano (“y”), o resultado dela conjugado nos dois anos (“r”) é menor do que o do ano anterior. Se r = x + (-y), então x > r. Por isso, a tributação dela no ciclo longo (dois anos) deveria ser menor do que aquela já paga. É por causa disso que o resultado negativo (prejuízos) deve reajustar o quanto devido pelos contribuintes em cada período.

Em 1981, quando o Brasil nem sonhava em discutir esse tema com profundidade — e, aliás, não discute até hoje —, já eram publicados trabalhos nos Estados Unidos clamando pela instituição dessa sistemática, tendo em vista que o regime americano à época, muito mais avançado do que o brasileiro de hoje (35 anos depois), não estaria satisfazendo.

A legislação americana já permitia naquele ano um carryback de três anos e um carryforward de 15 anos sem trava de valor, mas alguns autores defendiam que, ainda assim, essas limitações prejudicavam os investimentos[5], tendo em vista que cada contribuinte, a depender da forma de distribuição de lucros e prejuízos, teria um resultado tributário distinto.

Esse tipo de restituição, apesar das vantagens apontadas, gera um forte incentivo à constituição de prejuízos e, sobretudo em países onde as normas são menos respeitadas, poderia dar ensejo a milhares de processos para discutir os seus valores. Além disso, pode haver, sobretudo em caso de crise, repetidas restituições sem que sequer tenham sido pagos tributos, o que é um contrassenso.

Não se pode confundir o referido mecanismo de restituição pura e simples, não encontrado em nenhum dos países analisados, com aquele decorrente de uma compensação com lucros do passado (carryback), que é hoje corriqueiro no mundo (por exemplo, Canadá, Estados Unidos, Reino Unido, Irlanda, Holanda, Alemanha, França, Japão e Cingapura).

A compensação mais comum, todavia, se dá com lucros de anos posteriores (carryforward), único mecanismo existente no Brasil. Os períodos de compensação para trás e para a frente podem ser restringidos, o que acontece muito mais no primeiro caso.

O problema da compensação para a frente é levar muitos anos até que a empresa consiga “digerir” os efeitos do seu prejuízo, perdendo muito capital de giro e, portanto, a sua capacidade de pagar dívidas, de entrar em novos projetos e de sair de eventuais crises.

Já deve ser possível perceber que é problemático um sistema não ter carryback, não atualizar os prejuízos fiscais no carryforward e, de quebra, travar de forma bem apertada o valor dos prejuízos que podem ser compensados. Porém, qual país poderia ter um sistema tão ruim? O Brasil.

Quando a trava de 30% foi criada, acreditava-se que, limitando o valor, mas não o tempo, não haveria problemas, pois um dia a empresa teria compensado todos os prejuízos. Ledo engano. A depender da volatilidade de resultados das empresas, elas nunca conseguem compensar totalmente os prejuízos, sendo comum no Brasil “quebrarem” com altos valores acumulados e o Estado enriquecido inconstitucionalmente.

O terceiro mecanismo é a transferência de prejuízos por criação de um mercado específico para negociação de estoques de prejuízos, por operações societárias ou por apuração de lucro conjunta de diferentes empresas de um mesmo grupo.

Não há espaço aqui para aprofundar em cada espécie de transferência de prejuízos, o que farei em outro texto. Elas têm aspectos positivos, mas trazem complexidade e risco de planejamentos e fraudes.

Concluo, então, com uma proposta legislativa fundamentada em tudo que foi dito anteriormente, assim como nos textos anteriores. Para ter um sistema de compensação de prejuízos fiscais simples, eficiente e justo, não é preciso, em princípio, criar novos mecanismos, que tenderiam a complicar mais as coisas e gerar mais processos tributários.

Basta fazer imediatamente, com vigência para 2017, duas simples mudanças na Lei 8.981/1995 por meio de medida provisória ou diretamente por lei. Depois de feitas as alterações e estudados os seus efeitos, o Brasil pode pensar em instituir um mecanismo de carryback ou de transferência.

A primeira delas é simplesmente extinguir o limite de valor, ou seja, a trava de 30%, que não encontra similar em nenhum país do planeta. Desse modo, as empresas não ficariam pagando mais tributos do que deveriam ano após ano por conta dos seus prejuízos estarem travados.

A segunda mudança, amplamente suportada pela literatura mundial[6], é tornar os prejuízos fiscais atualizáveis pela Selic de modo a evitar a sua desvalorização pelo tempo, o que aproximará, em grande medida, os efeitos do modelo de compensação existente no Brasil aos modelos de restituição e transferência, que evitam esse problema.

Com essas duas simples mudanças legais, teríamos um cenário econômico muito mais favorável ao empreendedorismo, menos empresas “quebrariam” e, portanto, o Estado ganharia com mais arrecadação em médio a longo prazo, enquanto a sociedade ganharia com mais empregos e concorrência.

[1] Sobre a trava de prejuízos, ver: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/06/1784578-trava-de-prejuizos-e-jabuticaba-tributaria.shtml e http://www.conjur.com.br/2016-mai-18/villas-boas-trava-30-prejuizos-fiscais-extirpada.
[2] Sobre a esquecida importância do minucioso design legal da política pública, ver: “It argues that in the domestic context, with proper design, the two instruments are essentially the same. Commonly discussed differences in the two instruments are due to unjustified assumptions about design” (WEISBACH, David. Instrument Choice in Instrument Design. ).
[3] “Interestingly, there is an overall tendency of relaxing the loss offset provisions during the last decade. While in 1996 31 out of 41 considered countries restricted the loss carryforward, in 2007 only 25 countries did so. The same holds true for the group taxation regimes which were granted in only 22 out of the 41 countries in 1996 but in 27 countries in 2007” (DREBLER, Daniel; OVERESCH, Michael. Investment Impact of Tax Loss Treatment.).
[4] “Imperfect loss-offset provisions may substantially alter the incentive effects of the corporate income tax” (AUERBACH, Alan J.; POTERBA, James M. Tax loss carryforwards and corporate tax incentives. ).
[5] “Such a system, like income averaging, would eliminate the unfairness intrinsic in an annual tax accounting system, by providing refunds on losses in the tax year of the loss. At the same time, however, recoupment would not discriminate in favor of some firms and against others-as does the current averaging system through its varying restrictions on loss deductibility” (CAMPISANO, Mark; ROMANO, Roberta. Recouping Losses: The Case for Full Losses Offsets. ).
[6] “There seems to be agreement in the literature that losses that are carried forward should be adjusted to the time value of money” (NUSSIM, Jacob; TABBACH, Auraham. Tax-Loss Mechanisms. ).

Marcos de Aguiar Villas-Bôas

Advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

iplwin login

iplwin app