Biscoito ou bolacha? Um inusitado debate de… direito tributário!

Hugo de Brito Machado Segundo e George Marmelstein

Você sabia que o clássico debate “biscoito ou bolacha” tem sua origem no direito tributário?

Tudo começou no Reino Unido quando a confeitaria McVities’s criou um novo produto chamado Jaffa Cake (Bolo Jaffa).

O Jaffa Cake tinha o nome de bolo, os ingredientes típicos de um bolo tradicional e o formato de o bolo, mas era do tamanho de um biscoito.

O bolo/biscoito/bolacha se tornou popular e várias empresas passaram a fabricá-lo e vendê-lo como bolo, até que, em 1991, o Reino Unido questionou a classificação tributária do produto.

No Reino Unido, os biscoitos são considerados produtos de luxo e, portanto, sofrem uma tributação elevada. Os bolos, por sua vez, são tratados como alimentos básicos e por isso, são tributados com alíquota zero.

Isso transformou o caso em um hard case, pois as empresas queriam que o Jaffa Cake fosse enquadrado como bolo; e a autoridades tributárias, como biscoito. O caso foi parar na Justiça que teve que decidir se a guloseima era um biscoito ou um bolo pequeno (bolacha vem de do latim “bulla” — objeto esférico — com o sufixo “acha”, que indica diminutivo).

Havia bons argumentos de ambos os lados.

O Fisco dizia que era biscoito. Afinal, tinha tamanho de biscoito, era embalado como biscoito e vendido na prateleira de biscoitos. Além disso, era consumido como biscoito, com as mãos, enquanto um bolo era consumido com talheres.

Os contribuintes contra-argumentaram dizendo que o Jaffa Cake tem o nome de bolo (cake), os ingredientes de um bolo e se comporta como um bolo, pois endurece quando envelhece. Se o Jaffa Cake fosse biscoito, ficaria mole e não duro. Um Jaffa Cake gigante seria tem tudo igual a um bolo.

A disputa foi longa, árdua e cara e, ao final, venceu a confeitaria! A Justiça, respaldada por uma perícia judicial, reconheceu que o Jaffa Cake é, de fato, um bolo pequeno, coberto de chocolate, e, portanto, deve ser tributado como alimento básico.

O caso parece inusitado, mas ilustra um problema que costuma sondar as lides tributárias. A classificação de um produto pode ser decisiva para definir qual será o seu regime tributário e, portanto, a sua alíquota.

Impostos que tem função extrafiscal, e se destinam a estimular ou desestimular a produção, a importação ou consumo de produtos, como o IPI e o imposto de importação, contemplam a possibilidade de se fixarem alíquotas diferentes para produtos diferentes. Daí a necessidade de classificações minudentes, que permitem distinguir os mais variados produtos a serem tributados. É quando surgem dúvidas sobre a classificação desses produtos, considerando-se mesmo que a realidade não possui essas divisões que a mente humana tenta estabelecer para melhor compreendê-la. Há sempre as ambiguidades e as vaguidades, seja nas palavras, seja mesmo nas coisas que elas designam. Os biólogos que classificaram aves e mamíferos, e depois encontraram um ornitorrinco, que o digam.

É fato que muitos produtos têm mesmo uma natureza ambígua.

Por exemplo, um carregador portátil de celular (powerbank) deve ser classificado como carregador de celular, ou como uma bateria? Carregadores submetem-se a alíquota menor, e baterias de celular, a alíquota maior, mas o powerbank, conquanto tenha dentro de si uma bateria, destina-se a funcionar como carregador. Semelhante ao animal que tem penas, coloca ovos, tem bico, mas cujo filhote mama mas glândulas da mãe ao nascer…

Outro exemplo: um smartwatch multiesportivo, que espelha a tela do celular, permite chamadas telefônicas e monitora várias atividades do usuário, deve ser considerado um relógio de pulso, um monitor de batimento cardíaco, um módulo de GPS ou um smartphone? Ganha um Jaffa Cake quem souber!

O próprio STF já teve que lidar com casos assim quando decidiu que cards do mangá Yu-Gi-Ho, contendo a imagem dos personagens e fragmentos descritivos das características e aventuras relativas a ele, deveriam ser enquadrados como parte integrante do livro correspondente — e não como jogos ou puzzles — estando, portanto, protegidos pela imunidade tributária (STF, ARE 941.463, rel. min. Dias Toffoli, j. 23/2/2016). Seguiu-se, neste ponto, o precedente já firmado relativamente às figurinhas de álbuns de figurinhas, oportunidade na qual a corte decidiu que os envelopes com os tais “cromos auto adesivos” — no caso, do álbum dedicado à novela “Que Rei Sou Eu?” — seriam igualmente imunes (STF, 1.ª T, RE 221.239/SP, rel. min. Ellen Gracie, j. em 25/5/2004, DJ de 6/8/2004).

O caso Jaffa Cake também ilustra outro fenômeno comum nessas disputas. Quando há ambiguidade, o Fisco tende a interpretar os fatos de modo a ampliar a carga tributária. Assim, a classificação “oficial” costuma ser sempre a que acarreta uma tributação mais alta. Por outro lado, o contribuinte busca, naturalmente, a redução de custos e, por isso, irá defender a classificação que lhe seja mais favorável.

Em ciência cognitiva, há um viés conhecido como cognição motivada pelo valor (value-motivated cognition), que nada mais é do que a tendência de resolver ambiguidades factuais de modo a gerar conclusões compatíveis com os valores autodefinidos. Isso também está relacionado a outro viés cognitivo bem conhecido: o viés do meu próprio lado (myside bias), que é a tendência de interpretar os fatos de acordo com as nossas crenças, desejos e interesses.

O Fisco está condicionado a enxergar o contribuinte como um sonegador que fará de tudo para escapar das garras tributárias. O contribuinte, por sua vez, assume que o Fisco incorpora uma ganância voraz para cobrar cada centavo que puder. Assim, cada um dos lados enxerga o mundo a partir de sua própria perspectiva e preenche as lacunas da incerteza com suas cores favoritas. Os argumentos e evidências de suporte são aceitos facilmente, enquanto os contrários são submetidos a um rigor crítico mais intenso.

Para entender melhor essas armadilhas interpretativas produzidas pelos vieses cognitivos, vale muito a pena ler o livro de divulgação científica “A Arte de Pensar Claramente”, de Rolf Dobelli (clique aqui). Ele explica que, por força do viés de confirmação, temos uma inclinação para interpretar novas informações de modo que sejam compatíveis com nossas teorias, visões de mundo e convicções. Por isso, temos muita dificuldade em “matar nossas teorias favoritas”, preferindo distorcer as evidências quando elas se chocam com nossas pressuposições.

Se preferir algo mais robusto, o espetacular livro “Psicologia Social”, de David Myers, pode ser uma mão na roda para entender, com uma linguagem bem clara e acessível, os vieses cognitivos com mais profundidade, inclusive no contexto jurídico (clique aqui). Ele explica que somos ávidos por confirmar nossas crenças, mas menos inclinados a buscar evidências que possam refutá-las, fenômeno que pode ser designado de autoconfirmação. Segundo Myers, há várias estratégias para reduzir esse viés que derivam da dissonância cognitiva. Uma delas é fazer as pessoas pensarem em uma boa razão porque seus juízos poderiam estar errados; ou seja, forçá-las a considerar seriamente as informações refutatórias.

Em certo sentido, pelo menos nesse debate das classificações tributárias, o contribuinte parece ter razão na maioria das vezes, especialmente quando a dúvida quanto ao enquadramento é sincera. Afinal, se o Fisco tem o poder regulamentar para definir as regras da classificação deve ter também a obrigação de ser claro. Os ônus ou as consequências negativas da falta de clareza não podem ser impostos a quem não tem o poder de elaborar a regra classificatória. Desse modo, se o Fisco não for capaz de estabelecer critérios precisos, a dúvida deve ser interpretada em favor do contribuinte, pelo menos quando houver múltiplas classificações possíveis. Essa talvez seja a principal lição do Jaffa Cake.

Isso não significa que não possa haver parâmetros de orientação, como o da especificidade, da finalidade e da essencialidade, como previsto na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM). Assim, quando um produto pode ser enquadrado em duas ou mais posições, a classificação mais específica deve prevalecer sobre a mais genérica, levando em conta a clareza, precisão e detalhamento da descrição tributária. Além disso, um produto incompleto deve receber a mesma classificação do produto completo, desde que apresente, no estado em que se encontra, as características essenciais do produto completo. Do mesmo modo, quando o produto for híbrido, a classificação deve prestigiar, se possível, a sua função primordial.

Por outro lado, se, conhecendo o objeto a ser tributado, o Fisco costumeiramente vinha adotando uma classificação, e depois resolve alterá-la para enquadrar o produto em outra, sujeita à alíquota mais alta, ainda que o novo critério seja mais adequado, ele não poderá ser usado retroativamente, como esclarece o artigo 146 do Código Tributário Nacional.

Seja como for, a lição que fica é que, no direito tributário, o debate bolacha ou biscoito não é apenas um meme de internet. Em alguns contextos, pode ser uma discussão com consequências práticas.

Será que o Jaffa Cake teria o mesmo sabor se tivesse outro nome? Provavelmente sim. Porém, a depender do enquadramento tributário, o preço do produto poderia ser bem menos saboroso.

PS. Se quiser conhecer outros vieses cognitivos e curiosidades afins, convidamos a acompanhar a newsletter Brain Hacks, uma fonte semanal e gratuita de boas ideias diretamente no seu e-mail (clique aqui).

PS2. Além do livro “A Arte de Pensar Claramente”, de Rolf Dobelli e do “Psicologia Social”, de David Myers, mencionados no texto, merece enfática indicação o “Rápido e Devagar”, do prêmio Nobel Daniel Kahneman, que é o livro de referência quando se trata de vieses cognitivos

Hugo de Brito Machado Segundo e George Marmelstein

Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

George Marmelstein é juiz federal no Ceará, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e mestre em Direito Constitucional pela UFC.

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