Autonomia dos estabelecimentos na incidência do IPI e jurisprudência do Carf
Diego Diniz Ribeiro e Antonio Carlos Atulim
A legislação do IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) é informada pelo “princípio da autonomia dos estabelecimentos”, o qual, embora não se encontre previsto expressamente na Lei nº 4.502/64 e alterações posteriores, foi capitulado em todos os decretos que a regulamentaram.
A referida norma estabelece que “são considerados autônomos, para efeito de cumprimento da obrigação tributária, os estabelecimentos, ainda que pertencentes a uma mesma pessoa física ou jurídica” [1].
Segundo o sobredito princípio, cada estabelecimento industrial é autônomo em relação aos demais da mesma pessoa jurídica para o fim de cumprimento da obrigação tributária. Tendo em vista que o regulamento não delimitou a abrangência da expressão “obrigação tributária”, entende-se que a referência abrange tanto a obrigação principal (o pagamento do IPI propriamente dito), quanto as obrigações acessórias (manutenção de talonários e emissão de notas fiscais; manutenção e escrituração de livros fiscais; medidas de controle fiscal, como selagem, rotulagem e marcação de produtos; etc.).
Isso significa que cada estabelecimento industrial ou equiparado a industrial deve: 1) possuir uma inscrição no CNPJ; 2) possuir documentário fiscal próprio; 3) apurar e recolher o imposto devido por suas próprias operações; 4) requerer o ressarcimento de eventual saldo credor na escrita ao final de cada trimestre calendário.
Em hipótese alguma a apuração, o recolhimento ou o pedido de ressarcimento do imposto podem ser centralizados na matriz ou em um dos demais estabelecimentos, caso existam mais de um. O princípio da autonomia dos estabelecimentos também veda a utilização de créditos de IPI apurados por um estabelecimento no abatimento de débitos do imposto apurado por outro. A transferência de créditos entre estabelecimentos não é permitida, salvo se houver autorização expressa da legislação.
Um exame da jurisprudência do Carf ao longo dos anos revela que, na maioria dos seus julgados, o princípio da autonomia dos estabelecimentos foi aplicado ora para vedar determinadas pretensões dos contribuintes, ora para cancelar lançamentos em virtude de erro na identificação do sujeito passivo.
No Acórdão 202-15.593, por exemplo, o estabelecimento matriz da pessoa jurídica havia formalizado pedido de ressarcimento em nome da filial (estabelecimento industrial que efetivamente praticou os fatos geradores e que era detentor de expressivo saldo credor de escrita). A pretensão do contribuinte foi barrada pelo colegiado, restando decidido que a matriz não possuía legitimidade para requerer o ressarcimento de saldo credor pertencente ao estabelecimento filial, em face do princípio da autonomia dos estabelecimentos [2].
Já o Acórdão 3402-004.930 versou a respeito de um auto de infração decorrente de descumprimento do Regime Especial de Tributação de Bebidas Frias (Refri), no qual, por razões logísticas, o estabelecimento industrial havia dado saída aos produtos sujeitos ao Refri com suspensão do IPI para outra filial que se encarregava da distribuição. O imposto suspenso foi recolhido por essa filial. A fiscalização autuou a empresa por uso indevido da suspensão e por violação do artigo 204 do Ripi/2010 [3]. O colegiado, por voto de qualidade [4], decidiu manter a autuação, sob o argumento de que existiria manifesta incompatibilidade entre o instituto da suspensão do imposto e as regras do Refri, além do princípio da autonomia dos estabelecimentos determinar que cada estabelecimento é autônomo quanto ao cumprimento de suas próprias obrigações [5].
Em sentido oposto aos precedentes até então tratados, no caso do Acórdão 201-71.673 [6], o estabelecimento filial havia escriturado e apurado saldos devedores do imposto, cujos pagamentos foram realizados pelo estabelecimento matriz. A fiscalização efetuou o lançamento de ofício contra a filial industrial por falta de pagamento do IPI, invocando o princípio da autonomia dos estabelecimentos. Contudo, nesta situação, o colegiado cancelou o lançamento, ao fundamento de que a legislação não proíbe que o pagamento do imposto devido por um estabelecimento seja efetuado por outro [7].
Apesar desse último precedente, o que se via como regra no âmbito do Carf era uma aplicação bastante estrita e consolidada do princípio da autonomia dos estabelecimentos, o qual, nessa linha, vinha sendo prestigiado pela CSRF. A título de exemplo, no Acórdão 9303-008.624 [8], v.g., a CSRF decidiu que no âmbito do Refri, em homenagem ao princípio da autonomia dos estabelecimentos, não seria possível considerar que os recolhimentos de IPI efetuados pelo centro de distribuição quitariam os débitos de IPI devidos pelo estabelecimento produtor.
Contudo, ao proferir recente julgamento no processo administrativo n. 10872.720001/2015-53 [9], em relação ao mesmo contribuinte e versando sobre a mesma questão de fato e de direito do que fora tratado no sobredito Acórdão 9303-008.624, o colegiado, por maioria de votos, alterou seu entendimento, decidindo que no âmbito do Refri o centro de distribuição poderia recolher o IPI devido por outro estabelecimento.
A questão de a fiscalização efetuar a autuação de um estabelecimento industrial por falta de recolhimento do imposto nos casos em que o pagamento do tributo é realizado por outro estabelecimento é delicada, pois em última análise a Administração Tributária está a exigir o mesmo imposto em duplicidade.
Importante frisar a expressão “o mesmo imposto”, porque trata-se do exato tributo que incidiu sobre as mesmas mercadorias que foram enviadas do estabelecimento produtor com suspensão do IPI para o centro de distribuição. Haveria na hipótese uma exigência em duplicidade porque a exação lançada mediante auto de infração contra o estabelecimento remetente é a mesma que já foi recolhida pelo centro de distribuição.
Por sua vez, também é verdade que esse entendimento flexibiliza o princípio da autonomia dos estabelecimentos no âmbito do IPI, além de propiciar que o contribuinte prorrogue no tempo o pagamento do imposto.
Um caminho intermediário em relação a tais posicionamentos seria a imputação dos pagamentos efetuados pelo centro de distribuição aos valores lançados no auto de infração o quem além eliminar a exigência em duplicidade, também elimina os efeitos da postergação do pagamento do imposto. Aguardaremos, todavia, a disponibilização da íntegra do Acórdão 9303-013.365 para analisarmos, em futuro artigo e com mais detalhes, as razões que resultaram nessa relevante guinada da jurisprudência da CSRF.
Por fim, em nome de todos os colunistas desse espaço, gostaríamos de agradecer aos nossos assíduos leitores, que são a principal razão para a existência da coluna Direto do Carf.
Aproveitamos, ainda, para desejar um Feliz Natal e um ano de 2023 repleto de desafios e realizações. A coluna entra em recesso pelos próximos dias, com retorno já agendado para o dia 11.01.2023. Até lá!
[1] Vide artigo 609, III e IV, do Decreto nº 7.212/2010:
“Na interpretação e aplicação deste Regulamento, são adotados os seguintes conceitos e definições:
(…)
III – a expressão ‘estabelecimento’, em sua delimitação, diz respeito ao prédio em que são exercidas atividades geradoras de obrigações, nele compreendidos, unicamente, as dependências internas, galpões e áreas contínuas muradas, cercadas ou por outra forma isoladas, em que sejam, normalmente, executadas operações industriais, comerciais ou de outra natureza;
IV – são considerados autônomos, para efeito de cumprimento da obrigação tributária, os estabelecimentos, ainda que pertencentes a uma mesma pessoa física ou jurídica;
(…)”.
[2] De relatoria do então Conselheiro Henrique Pinheiro Torres e assim ementado:
“IPI. RESSARCIMENTO DE CRÉDITO. AUTONOMIA DOS ESTABELECIMENTOS.
As obrigações e os haveres de cada um dos estabelecimentos de uma pessoa jurídica, no que pertine ao IPI, por força da autonomia dos estabelecimentos, prevista na legislação de regência desse tributo, são personalíssimas, isto é, são intransferíveis para outro estabelecimento, ainda que da mesma firma, salvo expressa autorização legal em contrário.
Estabelecimento, ainda que se trate da matriz, não tem legitimidade para pleitear eventual direito creditório de outro estabelecimento. Recurso negado”.
[3] “Artigo 204. Os produtos sujeitos ao regime previsto no artigo 200 pagarão o imposto uma única vez, ressalvado o disposto no §1º deste artigo (Lei nº 7.798, de 1989, artigo 4º, e Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001, artigo 33):
I – os nacionais, na saída do estabelecimento industrial, ou do estabelecimento equiparado a industrial (Lei nº 7.798, de 1989, artigo 4º, inciso I); e
II – os estrangeiros, por ocasião do desembaraço aduaneiro (Lei nº 7.798, de 1989, artigo 4º, inciso II).
§1º Quando a industrialização se der por encomenda, o imposto será devido na saída do produto (Lei nº 7.798, de 1989, artigo 4º, §1º, e Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001, artigo 33):
I – do estabelecimento que o industrializar; e
II – do estabelecimento encomendante, se industrial ou equiparado a industrial, ainda que para estabelecimento filial.
§2º O estabelecimento encomendante de que trata o inciso II do § 1 o poderá se creditar do imposto cobrado na saída do estabelecimento executor (Lei nº 7.798, de 1989, artigo 4º, §1º, inciso II, e Medida Provisória nº 2.158-35, de 2001, artigo 33)”.
[4] Anterior a regra do artigo 19-E da Lei n. 10.522/2022.
[5] Esta é a ementa do julgado, de relatoria da então Conselheira Maria Aparecida Martins de Paula:
“REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO DE BEBIDAS FRIAS (REFRI). INCIDÊNCIA ÚNICA DO IMPOSTO. SAÍDA DO ESTABELECIMENTO INDUSTRIAL. SUSPENSÃO. INCOMPATIBILIDADE.
O IPI incidirá uma única vez sobre os produtos nacionais na saída do estabelecimento industrial da pessoa jurídica optante do Regime Especial de Tributação de Bebidas Frias (Refri). Por falta de expressa previsão legal, as saídas de produtos acabados do estabelecimento industrial para outros estabelecimentos da mesma pessoa jurídica optante do Refri não podem ser feitas com suspensão do imposto.
SUSPENSÃO INDEVIDA. RECOLHIMENTO POR OUTRAS FILIAIS. DEDUÇÃO/COMPENSAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. IPI. AUTONOMIA DOS ESTABELECIMENTOS.
No lançamento de IPI em face do estabelecimento industrial que se utilizou indevidamente da suspensão na saída de seus produtos não se admite o abatimento de eventuais recolhimentos do tributo efetuados por outras filiais da mesma pessoa jurídica em fases posteriores da cadeia econômica.
O IPI é regido pelo princípio da autonomia de estabelecimentos, de forma que o estabelecimento autuado não se confunde com os demais estabelecimentos da mesma pessoa jurídica para fins de apuração e recolhimento desse imposto.
A eventual autorização para dedução no auto de infração dos valores recolhidos por outros estabelecimentos da mesma pessoa jurídica, relativamente aos produtos que saíram com a suspensão indevida do IPI do estabelecimento industrial, representaria lesão ao disposto no art. 51, parágrafo único do CTN e nos arts. 384 e 609, IV do Regulamento do IPI/2010.
(…)”.
[6] Relator Conselheiro Rogério Gustavo Dreyer.
[7] IPI — EXTINÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÀRIO — Comprovado devidamente o pagamento do imposto por estabelecimento da mesma pessoa jurídica, diverso daquele onde ocorreram os fatos geradores e a escrituração do tributo, está extinto o crédito tributário, não se aplicando o princípio da autonomia dos estabelecimentos, como fundamento para lançamento de ofício, por falta de recolhimento do IPI. Recurso provido.
[8] Que tratava de caso análogo ao versado no Acórdão 3402-004.930, já mencionado aqui e, inclusive, referindo-se ao mesmo contribuinte.
[9] Caso de relatoria da Conselheira Érika Costa Camargos Autran e julgado na sessão de 18.10.2022, cujo acórdão ainda está pendente de publicação.
Diego Diniz Ribeiro e Antonio Carlos Atulim
Diego Diniz Ribeiro é advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro, Processo Tributário e Processo Civil, doutorando em Processo Civil pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV-SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.
Antonio Carlos Atulim é advogado e consultor no Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, auditor-fiscal da Receita Federal aposentado, ex-conselheiro e ex-presidente de colegiados na 3ª Seção do Carf e no antigo 2º Conselho de Contribuintes, ex-membro da CSRF e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.