Ausência de responsabilidade legal na remessa e desigualdade tributária
Thális Andrade
Por Thális Andrade
No último dia 30 de junho, o governo publicou a Portaria MF nº 612/2023, que concede redução de Imposto de Importação a 0% para os destinatários de remessas que comprem de empresas de comércio eletrônico que tenham aderido ao Programa de Remessa Conforme, criado pela IN/RFB nº 2.146/2023, publicado na mesma data.
Com a nova regulamentação, as remessas internacionais inferiores a US$ 50, enviadas por empresas detentoras do “selo de conformidade”, mesmo nas operações efetuadas entre pessoas físicas (C2C), passam a contar com o chamado “de minimis”, zerando a tributação em nível federal.
No entanto, a redução fiscal possui um custo elevado de adaptação por parte das empresas de “marketplace” que enviam seus pacotes por operadores que não possuem a mesma posição de mercado que os Correios. Por sua vez, os Correios possuem situação consolidada estando muito mais apto a atender prontamente os mecanismos instituídos pela nova legislação.
Uma dessas obrigações do Programa é justamente fornecer antes da chegada do veículo transportador ao País todas as informações necessárias ao registro da Declaração de Importação de Remessa (DIR). Além disso, as empresas de comércio eletrônico precisam repassar os valores dos impostos cobrados do destinatário para o responsável pelo registro da DIR no Siscomex Remessa.
É aí que reside a primeira desconformidade jurídica do Programa: a criação da figura do substituto tributário por um ato infralegal.
Isso porque a IN/RFB 2.146/2023, dispõe em seu artigo 20-B, inciso I, “b” que “poderão ser certificadas no Programa Remessa Conforme as empresas de comércio eletrônico que possuam contrato firmado com a ECT ou empresa de courier no qual conste, dentre as obrigações por parte das empresas de comércio eletrônico, as de […] repassem os valores dos impostos cobrados do destinatário para o responsável pelo registro da DIR no Siscomex Remessa”.
Nota-se que os impostos (Imposto de Importação e ICMS) agora serão recolhidos por empresa de comércio eletrônico que não está elencada legalmente como contribuinte, tampouco com responsável pelo fato gerador praticado. Tal obrigação, ainda que inserida em um programa de conformidade supostamente voluntário, cria sujeição passiva tributária sem previsão legal, em conflito com o artigo 150, §7º da Constituição Federal de 1988 [1] e com o Código Tributário Nacional [2].
Outro problema é que a mesma norma infralegal produzida na esfera federal atribui a figura do substituto tributário para o ICMS, tributo que não é de sua competência. Neste caso, eventual substituição dependeria de lei de estatura “complementar” (artigo 155, inciso XII, “b”, CF/88).
Ainda que se argumente que a proposta de reforma tributária sobre o Consumo tenha equacionado essa questão no novo artigo 156-A, §3º ao prever que “lei complementar poderá definir como sujeito passivo do imposto a pessoa que concorrer para a realização, a execução ou o pagamento da operação, ainda que residente ou domiciliada no exterior”, vale lembrar que a reforma sobre consumo não inclui o Imposto de Importação, que é o grande “vilão” do custo das encomendas e que também deve ser repassado pelas plataformas nas operações do programa. Portanto, no atual cenário, não há qualquer sinalização de que restará superado o obstáculo da falta de previsão legal da responsabilidade tributária.
Portanto, apesar dos esforços de adequação e a suposta voluntariedade do programa, entendemos que há obstáculos legais para o instrumento jurídico que veiculou o mecanismo de substituição tributária.
Uma segunda “desconformidade” do programa é que a Portaria MF nº 612/2023 implica quebra de isonomia tributária ao criar tratamento tributário desigual entre destinatários de remessas. Isso porque alguns contribuintes, mesmo ambos sendo compradores nas plataformas, serão tributados de forma distintas tão somente por conta da adesão ou não da empresa de comércio eletrônico ao programa de conformidade, isto é, serão discriminados por fato estranho à hipótese de incidência ou situação jurídica do contribuinte, conflitando com o artigo 150, inciso II da CF/88 [3].
Assim, ao mesmo tempo que a norma anda bem em criar um programa de conformidade, a discriminação tributária como mecanismo de adesão torna-o, na prática, obrigatório ao invés de voluntário.
Por fim, não se desmerece os esforços de aperfeiçoar a fiscalização das remessas internacionais que já somam 17 milhões de pacotes/mês, tampouco a boa vontade da Receita Federal em buscar de querer apurar informações para se rediscutir a alíquota de Imposto de Importação aplicada [4], tema que já foi objeto de artigo aqui nesta ConJur [5].
No entanto, este artigo tão somente busca novamente fomentar o debate para que justamente um programa desse porte, com tamanhas modificações no sistema tributário, seja devidamente criado em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Não o fazendo, o programa de suposta conformidade pode trazer mais um capítulo de insegurança jurídica ao tema.
[1] Dispõe o artigo 150, §7º da CF/88: “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.
[2] Conforme disposto no artigo 121, parágrafo único, inciso II, do Código Tributário Nacional, “o sujeito passivo da obrigação principal diz-se responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”.
[3] Dispõe o artigo 150, II da CF/88: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
[4] É a previsão do artigo 1-B, §3º, III inserido pela Portaria MF nº 612/2023: “A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil deverá elaborar relatórios bimestrais de avaliação do programa de conformidade referido no caput, com vistas a propor alteração da alíquota diferenciada de que trata o §2º [redução de II a 0%], conforme o caso”.
[5] ANDRADE, Thális. Tributação das remessas internacionais de mercadorias: há espaço para ajuste? publicado em 31 de maio de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-31/thalis-andrade-tributacao-remessas-internacionais-mercadorias. Acesso em: 13.07.2023.
Thális Andrade
Advogado, doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFSC e pelo World Trade Institute (Suíça), professor de Legislação Aduaneira e Comércio Internacional em cursos de pós-graduação, subsecretário de Facilitação de Comércio substituto no Ministério da Economia, autor de diversas publicações na área aduaneira, como a obra Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em Espécie (Dialética, 2021).