As novas tentativas dos Estados de legalização da cobrança de ICMS nos casos de “perdas e ganhos”
Fabio Silva Alves
I – Das "perdas e ganhos" no ICMS – Lei estadual nº 6.357, de 18 de dezembro de 2012, do Rio de Janeiro, e Decreto estadual nº 32.854, de 1º de outubro de 2012, do Amazonas
Não é de hoje que as Fazendas estaduais e os contribuintes que têm dentre suas atividades empresariais a distribuição e a venda de combustíveis discutem a plausibilidade jurídica da cobrança do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS) nos casos conhecidos na prática jurídica como "perdas e ganhos" ou "sobras e faltas". Tratam-se de operações nas quais são verificadas pequenas diferenças nos estoques dessas empresas, quando contrapostas às entradas e saídas, decorrentes das variações volumétricas a que estão submetidas as mercadorias por elas comercializadas. Se a divergência encontrada nas informações referentes a entradas e a saídas é "a menor", há "perdas". Se "a maior", há "ganhos". E é para esta última que, por óbvio, os órgãos de fiscalização e mesmo o Poder Legislativo dos Estados voltam suas atenções.
Isso porque, de acordo com a posição das autoridades fiscais (e até legislativas), feito levantamento do quantitativo do estoque e identificando-se divergência a maior de mercadorias – "menos" entradas X "mais" saídas -, estaria atestada a falta de recolhimento do ICMS. Sustentam, na maioria das autuações, que essa diferença seria resultado de saída de mercadoria desacompanhada do respectivo documento fiscal ou, ainda que acompanhada, tal documento fiscal seria inidôneo.
Não à toa, alguns Estados têm tentado "legalizar" essa suposta hipótese de incidência do ICMS. Inclusive, foi o que fez recentemente o Estado do Rio de Janeiro, ao editar a Lei nº 6.357, de 18 de dezembro de 2012, alterando e incluindo dispositivos na Lei nº 2.657/96, que versa sobre a cobrança do imposto. Dentre outros, foi acrescido a este ato normativo o artigo 3º-A, inciso V (com efeitos a partir de 1º.07.2013):
"Art. 3º-A. Consideram-se como saída de mercadorias ou prestação de serviços sem emissão de documento fiscal, os valores referentes a:
(…)
V – diferença de estoque de mercadorias, quando a quantidade apurada pela fiscalização, com base em livros e documentos fiscais do contribuinte, for maior do que a escriturada no Livro Registro de Inventário ou do que a consubstanciada em auto de constatação decorrente de contagem física (…)" (grifei)
Como consequência, o inciso V, do artigo 3º-E da Lei nº 2.657/96 – também novidade trazida pela Lei nº 6.357/12 e igualmente com efeitos fixados para 01.07.2013 – passou a prever que "considera-se posta em circulação a mercadoria (…) entrada no estabelecimento desacompanhada de documento fiscal ou acompanhada de documento fiscal inidôneo ou, ainda, cuja entrada não tenha sido regularmente escriturada".
Por sua vez, o Estado do Amazonas também dispôs há pouco, mas de forma ainda mais específica, sobre a presunção de ocorrência do fato gerador do ICMS nos casos de "perdas e ganhos" relacionadas à atividade de distribuição e venda de combustíveis. Segundo a norma editada, essa presunção se dá quando ultrapassados determinados percentuais de "ganho" ou de "perda" no volume do estoque dessas mercadorias. É o que se confirma pela leitura dos incisos VI e VII, acrescidos ao § 4º, do artigo 3º, do Regulamento do ICMS/AM (Decreto nº 20.636/99), pelo Decreto nº 32.854, de 1º de outubro de 2012:
"Art. 3º Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
(…)
4º Presume-se a ocorrência de operação ou prestação tributável sem pagamento do imposto devido quando:
(…)
VI – constatado ganho superior a 0,6% (seis décimos por cento) no volume do estoque físico de combustíveis, hipótese em que será considerada entrada de mercadoria desacompanhada de documento fiscal;
VII – constatada perda superior a 0,6% (seis décimos por cento) no volume do estoque físico de combustíveis, hipótese em que será considerada saída de mercadoria desacompanhada de documento fiscal;" (grifei)
Seja como for, a cobrança do ICMS nos casos de "perdas e ganhos" não é, propriamente, uma novidade. Há tempos, as Fazendas estaduais as têm efetivado, com base nas frequentes justificativas de omissão de entradas ou de saídas de mercadorias desacompanhadas dos respectivos documentos fiscais, havendo a "presunção" de falta de recolhimento de tributo. O que está mais perto de ser novidade, isso sim, é essa tentativa dos Estados de "legalização" da exigência, inserindo-a no rol de hipóteses de incidência da obrigação tributária, ainda que sob o molde de "consideração" ou "presunção": seja, genericamente, pela constatação de diferença nos estoques (ex. Rio de Janeiro); seja, especificamente, pela ultrapassagem de "limites" percentuais tidos por razoáveis, quando da contraposição dos estoques na entrada e na saída de combustíveis (ex. Amazonas).
Todavia, tanto no modo mais amplo – Rio de Janeiro -, quanto no mais específico – Amazonas -, fica a pergunta: teria nascido a obrigação de pagar tributo conforme preconizado nessas legislações estaduais?
II – Dos limites tidos por razoáveis pelos órgãos reguladores
Resposta objetiva à pergunta acima: não. Não há que se cogitar o nascimento da obrigação de pagar o ICMS quando da ocorrência de operações nas quais são verificadas pequenas diferenças nos estoques das empresas voltadas à atividade de distribuição e venda de combustíveis, decorrentes de variações volumétricas. Entretanto, não apenas com fundamento em disposições legais jurídico-tributárias.
Isso porque, em primeiro lugar, é rigorosamente natural que as mercadorias comercializadas pelas empresas atuantes na atividade de distribuição e venda de combustíveis estejam submetidas a peculiaridades físico-químicos, resultado de suas próprias essências. Dentre estas, está a dilatação volumétrica, consequência direta da variação de temperatura à qual estão submetidas, em especial quando dos seus armazenamento e transporte.
Ante essas e outras especificidades, coube à Administração Pública Federal a normatização da atividade, atualmente feita por meio da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP (1) ), em observância ao artigo 177 (2), § 2º, inciso III, da Constituição de 1988. Entretanto, antes mesmo da promulgação da atual Carta, os órgãos regulatórios federais já tinham a incumbência de normatizar o mercado de distribuição de combustíveis.
Nesse contexto, em respeito justamente a atos normativos editados por esses órgãos do passado e do presente é que as empresas que atuam em referido segmento estão, há tempos, obrigadas a adquirir os produtos que comercializam à temperatura de 20ºC (3) . Em seguida, devem aliená-los à temperatura ambiente, que, em um país tropical como o Brasil, está em geral acima desse patamar. Logo, uma vez adquiridos e armazenados a 20ºC e posteriormente distribuídos a temperaturas mais elevadas, é natural que tais mercadorias tenham sofrido os efeitos da dilatação volumétrica.
Diante desse cenário, esses mesmos órgãos regulatórios – dentre os quais, além da ANP, inclui-se, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP) – entendem como "razoáveis e admissíveis" índices de "sobras e faltas" situados na ordem de 0,4% a 0,72% (4). Assim, ao serem aferidas diferenças nos estoques das empresas, quando contrapostas entradas e saídas, dentro desses percentuais, os mesmos são tidos por "razoáveis e admissíveis".
Todavia, ressalte-se que essa "razoabilidade" não se dá porque a legislação do Estado do Amazonas ou do Estado A, B ou C assim prescrevem. E sim porque, antes mesmo de qualquer discussão tributária, tais "percentuais tidos como razoáveis" estão previstos em atos normativos editados pelos órgãos federais competentes constitucionalmente (5) para tal.
Inclusive, referidos preceitos normativos firmados pela própria Administração Pública, através nos dias de hoje da sua competente agência reguladora, estão em acordo com o princípio constitucional da razoabilidade, por meio do qual, nos dizeres de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (6) , "enuncia-se (…) que a Administração, ao atuar no exercício da discrição, terá que observar a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal das pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida". Portanto, tais parâmetros encontram amparo na própria Constituição da República.
Até porque, se prevalecesse o entendimento das Fazendas estaduais como a do Rio de Janeiro – refletidos pela supracitada Lei nº 6.357/12 -, que insistem na cobrança do ICMS mesmo em casos em que as diferenças nos estoques estão dentro dos limites regulatórios, as empresas teriam de optar:
(i) ou cumpririam a legislação regulatória federal, adquirindo produto a 20º C e alienando-o na temperatura ambiente, mas "descumpririam" a legislação estadual fiscal;
(ii) ou descumpririam a federal, não mais adquirindo a mercadoria a 20º e/ou vendendo-a na temperatura ambiente, ao ponto de que, do resultado desse "cálculo", não mais haveria qualquer "diferença para mais ou para menos, entre a quantidade que foi base para retenção e a que foi efetivamente comercializada (…)".
Como se trata de infundada encruzilhada fiscal, fato é que se o percentual de "perdas e ganhos" estiver dentro dos limites fixados, como razoáveis, pelos órgãos incumbidos de regular a atividade de distribuição de combustíveis – pautados, que são, em análises técnicas -, estará de acordo não apenas com as normas regulatórias, mas com a própria Carta Magna, por respeito, sobretudo, ao princípio da razoabilidade.
Com isso, atos normativos como a Lei nº 6.357/12, do Estado do Rio de Janeiro, que sequer estabelecem quaisquer balizadores, já nascem fadados à ilegalidade e à inconstitucionalidade, antes mesmo de qualquer discussão jurídico-tributária.
III – Do princípio da legalidade tributária e dos mecanismos disponíveis à fiscalização para a efetiva verificação da "ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente"
Em segundo lugar, mesmo que as diferenças de estoque ultrapassem os limites tidos por "razoáveis e admissíveis" pelos competentes órgãos regulatórios, poderão seguir sendo indevidos os valores exigidos a título de ICMS. Todavia, desta vez sim, por afronta exclusiva a normas jurídico-tributárias. Veja-se:
De início, válido lembrar que, com fundamento nos estudos de PAULO DE BARROS CARVALHO (7), a Norma Padrão de Incidência Tributária Impositiva é composta por 05 (cinco) aspectos:
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Por sua vez, nos termos ensinados por HUGO DE BRITO MACHADO (8), "ainda que se trate de um ato jurídico, no sentido dessa expressão no Direito Civil, o fato gerador da obrigação tributária há de ser considerado como um FATO (…) vale dizer, sem qualquer relevância dos aspectos subjetivos" (grifei). Aliás, tais lições estão de acordo com a própria definição dada a "fato" pelo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (9), tratando-se esse de "ação, coisa feita (…) aquilo que realmente existe, é real". Deste modo, para ser "fato" não se pode ter dúvidas quanto à sua concretização.
Já em termos jurídico-tributários, coube genericamente ao artigo 114 do Código Tributário Nacional (CTN) – recepcionado pela CF/88 com o status de lei complementar – conceituar esse "fato" (gerador) como o "aspecto material" da norma de incidência impositiva:
"Art. 114. Fato gerador da obrigação tributária principal é a situação prevista em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência." (grifei)
Aliás, essa conceituação somente poderia mesmo ter ficado a cargo do CTN, pois, de acordo a Constituição da República, em seu artigo 146, inciso III, alínea ‘a’, é papel da lei complementar "estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre (…) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes" (grifei).
Igualmente em obediência ao comando constitucional, restou à Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, prever, em seu artigo 2º, os fatos geradores do ICMS, ou seja, os aspectos materiais da norma de incidência impositiva desse tributo. Com destaque, para os fins da presente análise, ao inciso "I" do caput:
"Art. 2º O imposto incide sobre:
I – operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares;
II – prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;
III – prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;
IV – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios;
V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.
§ 1º O imposto incide também:
I – sobre a entrada de mercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade;
II – sobre o serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior;
III – sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente." (grifei)
Assim sendo, o aspecto material da norma de incidência tributária, no tocante ao ICMS, se efetiva quando da concretização de algum dos fatos acima relacionados. Se não ocorrer, no mundo das coisas, qualquer das situações taxativamente previstas na norma geral (artigo 2º da LC nº 87/96), não nascerá a obrigação tributária. Nem, muito menos, o crédito e a sua consequente necessidade de pagamento. O que se aplica não só ao ICMS, mas a todos os tributos. Sem "considerações" ou "presunções".
Nesse contexto, as hipóteses de incidência tributária previstas tanto pela Lei fluminense nº 6.357/12, quanto pelo Decreto nº 32.854/12 do Estado do Amazonas, não podem ser tidas como "aspectos materiais" da norma de incidência impositiva, pois:
(i) como demonstrado, fundamentam-se em "considerações" e "presunções", o que, ontologicamente, já lhes retira a possibilidade de serem definidos como "fatos" e, consequentemente, de serem conceituados como "fatos geradores"; e
(ii) mesmo que fosse juridicamente sustentável a concretização de fatos geradores "considerados" ou "presumíveis" – o que, repita-se, é evidentemente antagônico -, as hipóteses de incidência prescritas em referidos atos normativos estaduais não estão relacionadas na norma geral que trata sobre a matéria, ou seja, no artigo 2º da LC nº 87/96.
Inclusive, seguindo na análise deste segundo ponto, nota-se afronta ao princípio da Legalidade Tributária, previsto tanto na Constituição (artigo 150 (10), inciso I), quanto no CTN (artigo 97 (11), inciso I), justamente porque as hipóteses de incidência criadas pelos Estados do Rio de Janeiro e do Amazonas não se encontram dispostas dentre aquelas presentes na Lei Complementar nº 87/96.
Assim, lembrando que HAMILTON DIAS DE SOUZA (12) já ensinara que "de todos os princípios constitucionais erigidos como garantia fundamental do contribuinte, o mais importante é o da legalidade da tributação", e LEANDRO PAULSEN (13), que "a lei é fonte da obrigação tributária, que surge com a sua incidência, e não por força de atos normativos infralegais ou de acordos de vontades", não há embasamento legal que comporte a cobrança de ICMS "presumidamente" devido ante a verificação de pequenas diferenças nos estoques das empresas atuantes no mercado de combustíveis, quando contrapostas entradas e saídas, decorrentes das variações volumétricas a que esses estão submetidos.
De qualquer forma, poder-se-ia discutir, até mesmo, o que acontece quando ultrapassados os limites estabelecidos pelas normas regulatórias e mesmo por algumas legislações estaduais, como a do Amazonas. Imagina-se que tais patamares foram fixados tomando por base estudos técnicos acerca do impacto da temperatura e de outros fatores sobre os combustíveis, obedecendo a critérios tanto físico-químicos, quanto de bom senso e razoabilidade. Exatamente por conta desses mesmos critérios, ultrapassados os tetos estabelecidos, sem dúvida poderiam – e até mesmo deveriam – as autoridades fiscais presumir a ocorrência de fraude nas operações e, consequentemente, no recolhimento do ICMS. Afinal, o trabalho dessas autoridades é, justamente, o de fiscalizar, o que inclui suspeitar, de forma fundamentada, de qualquer atividade tendente a lesar os cofres públicos.
Entretanto, esse mesmo trabalho de fiscalização não pode ser exercido de maneira arbitrária, desacompanhada dos princípios e regras constitucionais e legais. Por isso que, fora dos limites predefinidos pela própria Administração Pública – por meio de suas agências reguladoras – como razoáveis e admissíveis, as autoridades tributárias dispõem de suportes legais para fiscalizar, apurar e cobrar o tributo eventualmente não recolhido.
Dentre esses suportes está o artigo 142 do CTN, que não é pautado em "considerações" ou "presunções", mas na efetiva verificação da "ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente". Se nesse trabalho a Fiscalização atestar a concretização de "operações relativas à circulação de mercadorias", por exemplo, deverá "constituir o crédito tributário pelo lançamento (de ofício)", calculando o montante do tributo devido (se for o caso) e "propor a aplicação da penalidade cabível". Mas isso, frise-se, porque foi identificada precisamente a ocorrência de "operações relativas à circulação de mercadorias" e não porque a mesma foi "presumida" com base nesta ou naquela norma estadual, desacompanhadas que são da lei complementar nacional que rege as hipóteses de concretização do fato gerador da obrigação tributária.
IV – Da definitividade na substituição tributária
Como demonstrado, os estoques de combustíveis estão sujeitos a variações volumétricas em função de diversos fatores peculiares à atividade de distribuição. Em razão disso, os órgãos responsáveis pela regulação do setor editaram normas específicas estipulando os limites de variação admitidos como razoáveis, com o que nas vendas efetuadas pela refinaria de petróleo às distribuidoras, é considerada a temperatura de 20ºC. Por sua vez, nas vendas por estas efetuadas, é considerada a temperatura ambiente da base de distribuição. Logo, os faturamentos da refinaria são efetuados com fundamento no volume do combustível a 20ºC, enquanto nos faturamentos das distribuidoras, a temperatura ambiente.
Pois bem. Nesse ponto, importante lembrar que a substituição tributária nos combustíveis foi instituída com o intuito principal de viabilizar a tributação e fiscalização do ICMS incidente sobre esta atividade. Muito se discutiu sobre a constitucionalidade da definitividade da substituição tributária, sobretudo, em relação à possibilidade de ressarcimento da diferença entre o ICMS sobre o valor presumido (pago antecipadamente pela refinaria) e o ICMS sobre o valor efetivo da venda do produto pela distribuidora. Todavia, o Supremo Tribunal Federal pacificou a questão ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.851/AL, ratificando o que ficou conhecido como "definitividade da substituição tributária" e consolidando o entendimento de que na aplicação do instituto da substituição tributária não cabe restituição ou complementação do imposto pago pelo contribuinte substituto.
Por raciocínio lógico, da mesma maneira que é incabível buscar a restituição ou a complementação do imposto pago pelo contribuinte substituto em função da diferença entre o preço real e presumido (PMPF), também é incabível aos Estados exigir a complementação sobre a variação de volume de mercadorias que foram integralmente tributadas na primeira etapa por toda a cadeia. Ainda mais sem previsão na LC nº 87/96, a qual é amparada pela Constituição da República, como visto.
Dessa forma, os novos atos normativos fluminense e do Amazonas violam não apenas os artigos 150, inciso I, da CF/88, e 97, inciso I, do CTN, mas também o artigo 150 (14), § 7º, da Carta – que consolidou o instituto da substituição tributária para frente e, consequentemente, sua definitividade. E essa afronta se mantém mesmo com a eventual previsão de restituição de valor por parte do Estado em caso de "perdas", com justificativa no mesmo fundamento constitucional: a definitividade da substituição tributária.
Por fim, cabe mencionar precedente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em voto do Desembargador WILSON SAFATLE FAIAD (acórdão 067/2011), através do qual resta claro que, nos casos em que forem verificadas diferenças no volume dos combustíveis, ocasionados em razão da diferença de temperatura, a definitividade da substituição tributária impossibilita a cobrança de ICMS:
"(…) Portanto, a situação fática descrita no caderno processual pode ser assim decomposta: a refinaria recolhe o tributo incidente sobre determinada quantidade de combustível pelo seu valor legalmente estimado, armazenando-o a 20ºC, para que posteriormente seja vendido à distribuidora. A partir de então, esta o recebe neste estado, transporta a mesma quantidade, a uma temperatura diferenciada devido à mudança climática do território e, quando promove o armazenamento em seu estoque para revenda, já o faz com alteração no volume do combustível.
Feitas tais considerações, tem-se que, o Estado de Goiás, com arrimo no Parecer Normativo nº 02/05 da Superintendência de Administração Tributária – SAT, a partir de janeiro de 2006, passou a considerar como fato gerador do ICMS as diferenças no volume do combustível defluentes do ‘ganho de temperatura’.
(…) Efetivamente, versando a espécie sobre substituição tributária progressiva ou ‘para frente’, incontroverso que o correlato imposto (ICMS) já foi recolhido antecipadamente pela refinaria com arrimo em fato gerador presumido, consoante disposto na cláusula primeira do Convênio ICMS nº 03/1999 e prefalado art. 6º da Lei Complementar nº 87/1996, de maneira que inexiste ganho ou lucro da distribuidora/substituída, visto que a alteração de volume eventualmente observada decorre de mudança climática. De igual forma verificar-se á diminuição volumétrica do combustível, se houver armazenamento em temperatura inferior a 20ºC. Trata-se, em verdade, de simples processo físico, não traduzido em fato gerador.
Frise-se, por oportuno que o simples fato de haver aumento no volume do combustível não rende ensejo à cobrança de complementação de tributo, posto que a variação no nível de calor, é absolutamente normal e acarreta invariavelmente dilatação volumétrica da mercadoria (combustível) armazenada.
(…) Deste modo, não há falar em complementação do tributo em comento (ICMS-ST), recolhido previamente pelo substituto tributário, porquanto o fato gerador presumido e a base de cálculo estimada possuem caráter definitivo por força do disposto no art. 114 do CTN, a menos que não se realize o prefalado fato gerador, consoante orientação do Pretório Excelso, verbis:
(…) Impende ressaltar, ainda, que tangente às diretivas traçadas pela Superintendência de Administração Tributária do Estado de Goiás, por meio do Parecer Normativo nº 02/05, força convir ser predito órgão administrativo desprovido de competência para legislar sobre incidência de ICMS, sob pena de afronta ao princípio da reserva legal, cabendo somente à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como em relação aos impostos discriminados na CF/88, seus respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (art. 146, III, ‘a’, CF).
Destarte, entendo por pertinentes as alegações da insurgente e acolho a justificativa de que não existe excesso de mercadoria não tributada, mas somente alteração no volume do líquido, devido a uma mudança climática que altera a quantidade do combustível. (…)"
V – Conclusão
Apesar da impossibilidade jurídica de cobrança de ICMS nesses casos de "perdas e ganhos", não raro os Poderes Executivo e Legislativo estaduais pautam suas respectivas autuações e legislações no possível "enriquecimento ilícito ou sem causa do contribuinte". Ou seja, tributa-se como consequência do ganho auferido pela variação volumétrica do combustível.
Acontece que, nos termos expostos ao longo da presente análise, essa diferença – que pode até existir, reitere-se – está de acordo tanto com os limites definidos pelos órgãos federais competentes, quanto com a opção constitucional de definitividade da substituição tributária, prevista no artigo 150, § 7º, já chancela pelo Supremo Tribunal Federal, não havendo na LC nº 87/96 hipótese de incidência na qual se enquadre. Logo, mesmo que tenha havido qualquer "ganho", gerado pela variação volumétrica dos combustíveis, é plenamente lícito. Assim como também é lícita eventual "perda" – venda pela distribuidora em temperatura inferior à da compra – em favor dos Estados.
Por consequência, se o resultado da aplicação dessas normas regulatórias e da regra da definitividade na substituição tributária vier a gerar "ganho" pelo aumento de volume dos combustíveis comercializados, não pode o contribuinte ser penalizado com a cobrança de tributo indevido. Do contrário, estar-se-á indo de encontro a todos os dispositivos constitucionais e legais já expostos e mais ao artigo 3º do CTN, que veda a aplicação de sanção na forma de tributo.
Nem mesmo a justificativa de que algumas legislações estaduais permitem a restituição do valor supostamente pago a maior quando da verificação de diferença a menor de combustível é suficiente para ter-se como legal a exigência. Ora, pelas mesmas razões aqui apontadas, se a substituição tributária é definitiva, não há qualquer valor a ser pago pelo contribuinte, nem devolvido pelos Estados, isso porque a substituição tributária é definitiva, pois assim o disse o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição da República. Órgão este que, após o julgamento do "Mensalão", até quem não o conhecia não tem mais o direito de ignorar.
Além disso, fato gerador não se presume. Fato gerador se atesta, verificando-se ou não a sua ocorrência, podendo a Fiscalização valer-se de todas as "armas" constitucionais e legais para tal. Entretanto, dentre essas "armas" não está a criação de lei – e muito menos de decreto – que pretenda criar hipótese de incidência tributária diferente das dispostas no artigo 2º da Lei Complementar nº 87/96.
Dessa forma, cobrar ICMS com fundamento na "consideração" ou na "presunção" de ocorrência de fato gerador vai de encontro, ao menos, aos basilares dispositivos constitucionais e legais explicitados nesse estudo. E mais: se a afronta ao ordenamento fosse mensurável, certamente estaria um degrau acima nas hipóteses em que as diferenças de estoque de combustíveis estão contidas nos percentuais tidos como razoáveis pelos órgãos reguladores federais. Logo, se estiverem "dentro" desses limites, não há sequer fundamento normativo para fiscalizar, vez que recolhido indubitavelmente todo o tributo; se "fora", as Fazendas Públicas estaduais dispõem de mecanismos legais para realizar essa fiscalização e atestar a concretização ou não de algum dos fatores geradores do ICMS, prescritos taxativamente no artigo 2º do LC nº 87/96.
Por todo o exposto, sem qualquer "consideração" ou "presunção", tanto a Lei fluminense nº 6.357/12, quanto pelo Decreto nº 32.854/12 do Estado do Amazonas, são ilegais e inconstitucionais no que tange a pretensão de criação de hipótese de incidência tributária não prescrita no ato normativo competente para tal, sob pena de afronta à Constituição da República e a atos normativos regulatórios e tributários, além de inobservância ao posicionamento da Corte Suprema. Aliás, tudo isso é fato.
Notas
(1) Autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia, cuja finalidade é "promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (…)" (artigo 8º da Lei nº 9.478/97).
(2) "Art. 177. Constituem monopólio da União:
(…) § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre:
(…) III – a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União;"
(3) Após estudos procedidos pelo Instituto Nacional de Tecnologia e pelo Conselho Nacional de Petróleo, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio publicou, em 19 de fevereiro de 1959, editou a Portaria MTIC nº 27, que adotou a temperatura de 20º C como referência para a medição do petróleo e seus derivados.
Posteriormente, a Resolução nº 6/1970 do Conselho Nacional do Petróleo – CNP, precursor da atual ANP – igualmente aprovou para o uso na comercialização dos derivados do petróleo a referência de 20º C.
Quase três décadas depois, foi publicado o Decreto nº 2.705, de 03 de agosto de 1998, cujo artigo 3º definiu os critérios para cálculo e cobrança na produção de petróleo, estabelecendo, dentre outros, que a temperatura de 20º C é a aferível na "Condição Padrão de Medição".
Por fim, o Ministério da Fazenda, através da Portaria nº 60, de 29 de março de 1996, trouxe previsão sobre o assunto em seu Item 1, constante das notas explicativas. Na mesma, consta que "os preços de venda do produtor quando por unidade de volume são tabelados considerada a temperatura ambiente de 20º C".
(4) Como exemplos desses atos normativos estão o Ofício Nº 2910/SAB, da lavra do Sr. César Antonio Gonçalves, então Superintendente de Abastecimento da ANP, e a Resolução CNP (Conselho Nacional do Petróleo) nº 07, de 17 de junho de 1969.
(5) Essa previsão constitucional está explicitada justamente no artigo 177, I c/c §§ 1º e 2º, inciso III, já transcrito.
(6)BANDEIRA DE MELLO, CELSO ANTÔNIO. "Curso de Direito Administrativo", 22ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2007, p. 54.
(7) CARVALHO, PAULO DE BARROS. "Curso de Direito Tributário", 8ª Ed., Saraiva: 1996, p. 159.
(8) MACHADO, HUGO DE BRITO. "Curso de Direito Tributário", Malheiros, 1997, p. 91.
(9) FERREIRA, AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA. "Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa", Editora Nova Fronteira, 1986, Rio de Janeiro, 2ª edição, p. 761.
(10) "Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;"
(11)"Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;"
(12) DIAS DE SOUZA, HAMILTON. "Comentários ao Código Tributário Nacional", vol. 1, coord. Ives Gandra da Silva Martins, Saraiva, 1998, p. 08.
(13) PAULSEN, LEANDRO. "Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência", Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 11ª edição, 2009.
(14) Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…) § 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restda quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido."
Fabio Silva Alves
Advogado Sênior - Coordenadoria Jurídico-Tributária da Ipiranga Produtos de Petróleo S/A.