Afinal, onde está o equilíbrio entre os gastos públicos e o que se arrecada?
Elidie Palma Bifano
Nos últimos dias observa-se uma crescente discussão sobre o chamado “arcabouço fiscal” e a correspondente reforma tributária. Por trás disso há um eterno debate que permeia a questão fiscal, entendida de forma ampla, ou seja, a obtenção dos recursos para fazer frente aos gastos públicos e a forma como esses recursos são utilizados. Os gastos necessários são tratados pelas normas voltadas ao orçamento público (Lei nº 4.302/64 e leis orçamentárias anuais) sendo que a obtenção de recursos para que o Estado cumpra suas tarefas assenta-se em receitas as quais ele não tem o compromisso de devolver. Essas receitas originam-se de diversas fontes como é o caso de rendimentos derivados de investimentos efetivados em atividades econômicas produtivas, os lucros ou dividendos, em que o Estado atua como o faria um investidor privado, bem como de receitas oriundas de tributos, qualquer que seja sua espécie.
Além disso, há sempre um cotejo entre a justiça da tributação em face do indevido uso dos recursos arrecadados, o que fica ao sabor de quem faz tal julgamento, pois se todos os brasileiros fossem autorizados a opinar sobre as despesas públicas, certamente chegaríamos a um orçamento igual a uma quimera, terrível monstro da mitologia grega, descrito por alguns com cabeça entre o leão e a cabra, ou, por outros com três cabeças, de cabra, de leão e de cobra ou, ainda como um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. O importante é que seu hálito de fogo matava todos que dele se aproximavam.
No exercício de suas funções, cabe ao governo a elaboração do orçamento público. Nesse mister o novo governo decidiu inovar e divulgou o chamado arcabouço fiscal ou conjunto de medidas, regras e parâmetros que deverão orientar o controle dos gastos e receitas no país. Se, de um lado se busca estabilidade para as contas públicas, de outro lado busca-se reformar o sistema tributário nacional para com isso suportar os recursos necessários para financiar gastos essenciais com saúde, educação, segurança pública. Em todo esse louvável propósito cabe, entretanto, uma análise mais profunda do tema.
É sempre bom relembrar que a atual Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101/00, foi editada com o objetivo de impedir tradicionais práticas que impactavam de forma perigosa as finanças públicas, voltando-se para a responsabilidade na gestão fiscal, conforme preconiza a Constituição. Com isso a responsabilidade na gestão fiscal consolidou-se como “ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange à renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidadas e mobiliárias, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar”. Ou seja, eliminaram-se as tradicionais práticas de acolher desvios de uso e gerar prejuízos debitando-os à conta do contribuinte, visto que assumidos, em geral, pela Estado.
O abandono da Lei de Responsabilidade Fiscal, e seu teto é fundamentado, pelo atual governo e por especialistas na matéria, pelo seu caráter anticíclico, o que permitirá que os investimentos sejam mantidos, mesmo que a arrecadação de tributos caia, e pela vinculação da âncora fiscal com o crescimento econômico e com a arrecadação. Permeando toda essa discussão sempre se impõe o crescimento do país e a melhor distribuição de renda para todos, em especial para os cidadãos mais carentes. Por alterar a Lei Complementar nº 101/00, lei de caráter nacional, é de supor que critérios de Estados e municípios também se alteram.
No que se refere à outra ponta da questão fiscal trata o governo de buscar recursos para cumprir com todos os objetivos a que se propõe, considerando-se que às despesas acima referidas, básicas, somam-se muitas outras obrigações, inclusive a de restituir tributos decorrentes das mais recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, como a “tese do século” — ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, por exemplo.
Não menos relevante nessa discussão é o tema recentemente trazido pelo ministro da Fazenda pertinente aos incentivos e benefícios fiscais que estima em montantes que ascendem, na esfera federal, em mais de R$ 600 bilhões e que, por essa razão, sugere rever. O assunto não é novo e não nos olvidemos, o Brasil cresceu e cresce, em muitas regiões, por conta de incentivos e benefícios concedidos pelo poder público. Os incentivos e benefícios aqui referidos inserem-se na área da extrafiscalidade, não passando de previsões legais que induzem comportamentos para atingir certos objetivos, no caso, a redução ou eliminação da carga tributária com a finalidade de gerar efeitos positivos desde que os contribuintes atendam às disposições legais. Incentivos e benefícios fiscais são valores protegidos constitucionalmente, sendo que operam mediante desonerações tributárias, não podendo ou devendo ser atacados de forma generalizada. O próprio Código Tributário contempla disposições especiais para alterar ou revogar isenções ou reduções de tributos, o que não se faz de uma canetada. Nesses termos o assunto merece considerações especiais.
Diga-se que esse tema é tratado na já referida Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 14, que faz expressa referência ao que se deve entender por renúncia fiscal, ou seja, a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária, nela compreendidas a anistia, a remissão, o subsídio, o crédito presumido, a concessão de isenção em caráter não geral, a alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros que correspondam a tratamento diferenciado. A renúncia fiscal só pode ser concedida se houver demonstração, pelo proponente da norma, de que ela foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, não afetando as metas de resultados fiscais e desde que esteja acompanhada de medidas de compensação, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Confirmando a acertada decisão do legislador constituinte de proteger incentivos e benefícios fiscais, coloca-se o caso da Zona Franca de Manaus, introduzida pela Lei nº 3.173/57, depois alterada pelo Decreto-Lei nº 288/67, a qual desfruta de diversos incentivos fiscais que permitiram e permitem a geração de empregos locais bem como a integração da Amazônia ao país. Tal foi a relevância dessa iniciativa que a Lei Complementar nº 24/75, que trata de incentivos e benefícios fiscais de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICM), atual ICMS que passou a incluir a circulação de serviços, determinou que nenhuma restrição pode ser aplicada às indústrias instaladas ou que vierem a instalar-se na Zona Franca de Manaus, sendo vedado às demais Unidades da Federação determinar a exclusão de incentivo fiscal, prêmio ou estímulo concedido pelo Estado do Amazonas. E mais, o artigo 40, das Disposições Constitucionais Transitórias determina que ela, a Zona Franca seja mantida, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, até o ano de 2073, conforme a Emenda Constitucional 83/14.
Em contrapartida, há incentivos e benefícios fiscais que se mostram e/ou mostraram verdadeiros desastres, como foi o caso da Lei nº 12.218/10, que a pretexto de introduzir incentivos fiscais para o desenvolvimento das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, concedeu às empresas montadoras e fabricantes de veículos automotores terrestres, crédito presumido do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), como ressarcimento das contribuições devidas ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Financiamento da Seguridade Social (Cofins), no montante do valor das contribuições devidas, em cada mês, decorrente das vendas no mercado interno, além de ter concedido isenção de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na concessão de crédito, que por diversas ações do governo foi facilitado pelas instituições financeiras, para aquisição de veículo novo, para o período de 2011 a 2015. Como resultado de tudo isso tivemos: (1) inadimplência generalizada por parte das pessoas que se beneficiaram do crédito junto aos bancos, pois a despeito do incentivo, não tinham, no geral, condições de manter a compra; (2) redução substancial dos resultados nas instituições financeiras com a geração de prejuízos, sem condições de recuperação; (3) devolução dos veículos usados para as instituições financeiras que não podem mantê-los em balanço por vedação do Banco Central e tiveram que se agilizar para vendê-los. Observe-se que um incentivo mal planejado resulta em um problema nacional. Olvidaram-se também, os criadores desse incentivo, que o momento internacional não permitia incentivar agentes de poluição.
Os incentivos fiscais devem ser analisados sob o aspecto essencial de estarem ou não colaborando com a geração de riqueza, em sentido amplo, para o país, sob pena de se tornarem um estorvo e, até mais, um uso não permitido de recursos públicos.
Ainda no que tange à manifestação do ministro da Fazenda quanto ao equilíbrio fiscal, é de se registrar que a reforma tributária nos moldes pretendidos pelo atual governo patina no Congresso Nacional e nos parece de difícil concretização. Em primeiro lugar porque está assentada em modelo legislativo já muito criticado e que não parece desfrutar, ainda, de consenso nas Casas do Congresso, tendo seus próprios autores, já reconhecido, que se há de abrir exceções, pelo menos no que tange a certos aspectos voltados a alíquotas, à não cumulatividade e aos correspondentes créditos que os contribuintes anseiam por ver reconhecidos. A perspectiva mais nova é de uma aprovação, se assim ocorrer, que permita sua implementação até 2026, momento em que este governo já estará em sua rota final.
Além disso há uma grande preocupação, preocupação legítima, diga-se, por parte do ministro com os menos favorecidos estarem pagando mais tributos que os mais ricos. Esse comentário deve ser examinado à luz de cada um dos tributos envolvidos na reforma tributária, especialmente no caso dos tributos ditos indiretos, como é o ICMS, em que ocorre tratamento idêntico em termos absolutos de valor de tributo, para todos, embora o esforço para pagar dos menos privilegiados seja infinitamente maior, pois atingem bens de consumo diário em pessoas dotadas de menor poder aquisitivo. No caso do Projeto de Emenda Constitucional nº 45/19, há previsão para afastar, por exemplo, a incidência futura do ICMS sobre bens de consumo diário, itens que hoje integram a cesta básica, não tributados ou sujeitos a reduções de alíquota ou base, a atual desoneração, se afastada, convertendo-a em uma devolução de tributos para os menos dotados de recursos financeiros, o que nos parece uma política adequada, destacando, entretanto que o segredo desse modelo reside na agilidade de reembolso.
No que tange ao Imposto sobre a Renda, a simples atualização das faixas de isenção da Tabela de Incidência na Fonte, já permitiria substancial redução do encargo tributário. O fato, por nós aqui já discutido, é que tais montantes não são atualizados desde 2015, em total desrespeito ao princípio da capacidade contributiva e, até o momento, não se fez qualquer ato normativo para tanto. Ocorre que a imprensa dá conta de que a Secretaria da Receita Federal teria atualizado a Tabela de Incidência, o que teria sido declarado publicamente, conquanto nada tenha sido publicado oficialmente. Como as obrigações fiscais do período-base de 2023 já estão correndo, declarações dessa natureza à imprensa trazem uma crescente intranquilidade dos contribuintes sobre esse tema, sejam eles ricos ou pobres.
Ainda, em nítida empreitada de desconstruir o que há de melhor no sistema tributário de nosso país, modelo para outros países inclusive, o ministro da Fazenda afirma que há abuso de empresas no uso de regime para evitar Imposto sobre a Renda mediante o pagamento de juros sobre o capital próprio ou sobre o patrimônio líquido aos sócios. Com isso, avalia uma forma de impedir que esse instituto se consubstancie em hipótese de distribuição de lucros a acionistas por empresas. Há um grande equívoco nessa afirmativa, pois lucro é o fruto da atividade empresarial depois de deduzidos os custos e despesas, é a remuneração que por lei, estatuto ou contrato social o sócio tem direito. Tributar ou não a distribuição de lucros é uma decisão de País e, hoje, o Brasil não a tributa. Outra coisa é permitir a remuneração do patrimônio líquido da sociedade em benefício dos sócios, instituto bastante antigo no Brasil, datando da década de 1940.
E, mais além, tampouco a dedução fiscal dos juros calculados sobre o patrimônio líquido e pagos aos sócios se confunde com os institutos já comentados. A afirmativa do governo de que se trata de forma de distribuição de lucros aos sócios é equivocada: juros pagos e lucros pagos são diferentes e os juros sempre poderão ser pagos se houver permissão para isso nos atos societários. Com isso o objetivo final fica claro: revogar a dedutibilidade dos juros, de vez que eles não podem ser revogados, sendo decisão de cada empresa pagá-los ou não.
Reconhecemos o quão difícil é o cenário econômico e o quão árdua é a tarefa deste governo de viabilizar o país, cuidando da segurança, da saúde e da educação e de tantas outras contas que herdou. Não há solução mágica, mas ela não pode tampouco resultar em uma enxurrada de normas que atentem contra o sistema tributário e financeiro apenas para obter superávits.
A indagação que fica é: o que pode ser melhorado no sistema tributário sem o arrojo de medidas que rompam com nossa tradição e sem a ofensa aos direitos individuais? E mais, o que pode ser repensado em termos de gastos, questão ainda mais difícil de solucionar e que por essa razão tem ficado para as calendas gregas. Seria importante inverter prioridades, colocando a reforma administrativa à frente da reforma tributária, pois conhecidos os gastos fica, a nosso sentir, mais fácil determinar o quanto deve ser arrecadado. Resta saber se há vontade para tanto.
Elidie Palma Bifano
Mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.