A tributação do ganho de capital do Imposto de Renda (IR) e a progressividade fiscal. ”Ajustes” na arrecadação. O que muda com a conversão da MP 692/2015 e a alteração do artigo 21 da lei n. 8.981/95
German Alejandro San Martín Fernández
German Alejandro San Martín Fernández[1]
Aner Tal e Brian Wansink[2], da Universidade Cornell, Ithaca, Nova York (EUA), realizaram pesquisa comportamental cuja conclusão deveria servir de lição para os técnicos encarregados das propostas legislativas criadas com vistas a reduzir o déficit fiscal que assola o País.
O experimento realizado chegou à seguinte conclusão: não faça compras com fome. E por uma singela razão, há sempre uma preferência pelos alimentos mais calóricos, decorrente da tendência evolutiva em armazenar mais calorias a fim de suprir longos períodos de privação de alimentos, em detrimento dos alimentos mais nutritivos, portanto, mais benéficos à saúde.
Mas qual a relação dessa pesquisa comportamental e a aplicação da progressividade fiscal na tributação dos ganhos de capital no IR?
Bem, se a economia comportamental recomenda que não se vá às compras com fome, o mesmo raciocínio deveria ser aplicado para recomendar aos governos evitar reformas ou alterações relevantes na legislação tributária em momentos de déficit fiscal e queda de arrecadação decorrente de quadro recessivo. Isso porque criar ou aumentar tributos sem critérios racionais e na ânsia exclusiva de arrecadar pode, a médio e longo prazo aumentar ainda mais o quadro recessivo ou alargar ainda mais o abismo social existente no Brasil, a exemplo dos malefícios decorrentes da ingestão continuada de alimentos altamente calóricos.
A Medida Provisória 692/2015, já aprovada pela Câmara dos Deputados e atualmente aguardando apreciação pelo Senado, é um dos exemplos das tentativas do Poder Executivo de aumentar arrecadação sob pretexto de implementar justiça fiscal, fomentar a desconcentração da riqueza e estimular a redistribuição da renda através da tributação progressiva do acumulo de riqueza e do capital, em interpretação parcial das propostas de PIKETTY[3].
Na exposição de motivos assinada pelo ex-Ministro da Fazenda Joaquim Levy, resta expresso o desejo de implementação do princípio constitucional da capacidade contributiva[4] e da progressividade na tributação do ganho de capital, de sorte a criar alíquotas progressivas do IR, a exemplo do que já ocorre com os demais rendimentos tributáveis submetidos ao imposto sobre a renda, bem como não esconde a situação fiscal crítica do país e a necessidade do incremento urgente de receitas.
Pelo texto aprovado e enviado ao Senado, é alterado o artigo 21 da Lei n. 8.981/95, de modo que as alíquotas aplicáveis em decorrência da alienação de bens e direitos de qualquer natureza percebidos por pessoa física e por pessoas jurídicas não optantes pelo lucro real, arbitrado ou presumido (ou seja, PJ optantes pelo SIMPLES) passam a ser de: 15% (quinze por cento) sobre a parcela dos ganhos que não ultrapassar R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais); 17,5% (dezessete e meio por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) e não ultrapassar R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); 20% (vinte por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e não ultrapassar R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais); e 22,5% (vinte e dois e meio por cento) sobre a parcela dos ganhos que ultrapassar R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais)[5]. Até a edição da MP 692, havia uma única alíquota de 15%, independente do valor do bem ou direito, submetida à tributação isolada e definitiva, vale dizer, independente do resultado auferido no mesmo ano-calendário ou período-base.
Ainda que o texto aprovado venha a prever o reajustamento automático dos valores relativos às faixas de tributação do ganho de capital na mesma proporção da correção da tabela do IRPF pelo mesmo índice aplicado à menor alíquota (7,5%), não há nenhuma alteração no tocante ao regime de tributação isolada e definitiva dos ganhos de capital.
É bem verdade que argumentos envolvendo o prestígio a princípios relacionados com a chamada tributação justa, em um primeiro momento comovem qualquer um que tenha o mínimo de consciência social. Essa proposta ressalta a importância dos princípios constitucionais tributários na função de informadores da atividade legislativa (ainda que atípica) e de como essas “vigas mestras do sistema” serviriam para “limitar o poder de tributar” e evitar os recorrentes abusos do legislativo/executivo no exercício da competência tributária[6]. Entretanto, passado o entusiasmo inicial, convém refletir sobre os possíveis efeitos decorrentes da aplicação da progressividade na tributação dos ganhos de capital, sob o pretexto de respeito à tão almejada capacidade contributiva e isonomia[7].
Ricardo Mariz de Oliveira trata dos efeitos práticos da aplicação dos princípios da capacidade contributiva, universalidade, generalidade e progressividade do Imposto sobre a Renda e conclui pela absoluta incompatibilidade desses princípios com a tributação de fatos isolados, justamente por se tratar o IR de imposto incidente sobre o resultado de fatores positivos e negativos de mutação patrimonial e não de tributo incidente sobre fatos econômicos isoladamente considerados.
E justifica, o Autor, a larga utilização de métodos de tributação isolada de fatos supostamente “geradores” do IR, diante da facilidade e comodidade na arrecadação, ainda que resultem ao contribuinte em “(…)uma correspondente desvantagem econômica ou financeira, sempre ao arrepio dos princípios constitucionais”[8].
Para concluir que eventual aplicação da progressividade da alíquota do IR a fatos isolados, desvinculados da real variação patrimonial positiva (geral e universal), implica em “(…) progressividade falsa, por ser aplicada sobre apenas um ou alguns dos fatores positivos de acréscimo patrimonial, e não sobre a totalidade deles durante todo o período-base”.
Não há como discordar dessa conclusão. A tributação progressiva do IR dos ganhos de capital auferidos por pessoas físicas e jurídicas, sem observância da universalidade, vai de encontro à capacidade contributiva e representa apenas tentativa desesperada de aumento de arrecadação. A continuidade da segregação de rendimentos na tributação do IR, com a criação de diversos “tipos” de rendas tributáveis, cada uma submetida a um regime tributário distinto, cria uma série de distorções.
Mantendo-se a tributação “segregada”, ainda que progressiva, criam-se situações nas quais contribuintes se submetem ao recolhimento de IR na apuração de ganho de capital, mesmo que haja resultado negativo (apuração de prejuízo) ou até mesmo situações nas quais sendo titular de direito à restituição de IRFonte (retenção sujeita a ajuste), o contribuinte recolha imposto sobre ganho de capital (dentre outras esdrúxulas situações) em evidente confronto e descompasso com a capacidade contributiva.
Logo, invocar respeito ao princípio da capacidade contributiva para justificar o simples aumento de alíquotas na tributação dos ganhos de capital, sem observância da universalidade, soa apenas como mero artifício de retórica desprovido de qualquer fundamento relevante de justiça fiscal ou de aprimoramento da tributação sobre a renda.
Ademais, é evidente que a tributação progressiva da alienação de ativos, bens e direitos de pessoas jurídicas optantes pelo SIMPLES, agora submetidas às mesmas regras das pessoas físicas, restará em desestímulo para a renovação de ativos (maquinários, equipamentos etc.) e no desenvolvimento de novas tecnologias e que poderiam constituir, em um cenário recessivo, esperança de retomada do crescimento do setor produtivo.
Não se trata de busca da racionalidade do sistema ou da correção de desvios de rota da legislação tributária, mas apenas de busca irracional de novas fontes de arrecadação em época de encolhimento do PIB. E mais, por qual razão tais propostas nunca foram apresentadas quando a Receita Federal batia sucessivamente seus próprios recordes de arrecadação, resultado da concentração da tributação sobre o consumo e em evidente tributação regressiva em desfavor das classes menos favorecidas?[9]
O que se constata, mais uma vez, é que a necessidade de arrecadação (= fome), faz com que a legislação seja alterada sem critérios racionais (= alimentação calórica), e crie regimes de tributação baseados exclusivamente na necessidade de arrecadação, cujos resultados negativos (irracionalidade do sistema, desigualdade na tributação etc.) superam os eventuais resultados positivos (aumento de arrecadação) obtidos a curto prazo.
Ademais, a confusão existente na tributação dos ganhos de capital, com a “tributação do capital”, gera o catastrófico resultado de desestimulo cada vez maior à capitalização de empresas e à renovação de ativos, imprescindíveis para o crescimento do setor produtivo.
Em conclusão, sem uma reforma tributária a ser realizada em ambiente mínimo de normalidade econômica e estabilidade política e cuja discussão verse sobre a redistribuição das bases de incidência, hoje focada na tributação do consumo em evidente regressividade, não será possível chegar à tão desejada isonomia tributária.[10]
Enquanto esse dia não chega, que ao menos os princípios norteadores do sistema não sejam invocados em vão ou utilizados para justificar aumentos desesperados de arrecadação em evidente violação ao espírito constituinte e aos valores prestigiados pela Constituição Federal.
Que não se mexa na legislação tributária em épocas de vacas magras do mesmo modo que a economia comportamental recomenda que não se vá ao supermercado com fome.
[1] Mestre em Direito do Estado (Direito Tributário) pela PUC/SP. Ex -Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo. Ex-Conselheiro do CARF. Professor de Planejamento Tributário e Prática Jurídica da FAAP. Professor convidado dos cursos de pós-graduação em Direito Tributário e Empresarial da FGV Law (SP e RJ), EPD e FUCAPE/ES. Membro do Conselho Científico e Editorial da APET (Associação Paulista de Estudos Tributários). Advogado em São Paulo.
[2] Tal, Aner and Brian Wansink (2013), “Fattening Fasting: Hungry Grocery Shoppers Buy More Calories, Not More Food”. JAMA Internal Medicine, 173:12, 1146-1148.
[3] Para o economista francês, o imposto sobre a renda é, de igual modo, um imposto sobre o capital: “(…) o imposto sobre a renda se aplica, em princípio, tanto às rendas do capital quanto às do trabalho: trata-se assim, de um imposto em parte sobre o capital.” Piketty, Tomas. O Capital no Século XXI, Ed. Intrínseca, p. 481.
[4] § 1º do art. 145 da CF/88: Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
[5] A redação original da MP previa as seguintes alíquotas: 15% (quinze por cento) sobre a parcela dos ganhos que não ultrapassar R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais); 20% (vinte por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e não ultrapassar R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais); 25% (vinte e cinco por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) e não ultrapassar R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais); e 30% (trinta por cento) sobre a parcela dos ganhos que ultrapassar R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais).
[6] Para GERALDO ATALIBA: “Os princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos de governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas consequências”. República e Constituição. 2. ed. Atual. Rosalea Miranda Folgosi. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 34.
[7] Importa lembrar que a tributação progressiva da renda e das fortunas desacompanhada da redução da tributação indireta e regressiva (concentrada sobre a produção e o consumo), tem efeito reduzido na redução das desigualdades e na distribuição de renda. A respeito: Comunicados IPEA n. 92: “O sistema tributário brasileiro exerce peso excessivo sobre as camadas pobres e intermediárias de renda, o que se deve, especialmente, dos impostos indiretos (sobre o consumo).”
[8] Fundamentos do Imposto de Renda, Quartier Latin, p. 269.
[9] http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/analise-do-resultado-da-arrecadacao.
[10] Há forte correlação entre a concentração da tributação sobre o consumo e a desigualdade social medida pelo coeficiente de Gini. Para maiores informações sobre os efeitos da tributação regressiva no Brasil: http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/textos/as-implicacoes-do-sistema-tributario-nas-desigualdades-de-renda/publicacao/
German Alejandro San Martín Fernández
Mestre em Direito do Estado (Direito Tributário) pela PUC/SP. Ex -Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo. Ex-Conselheiro do CARF. Professor de Planejamento Tributário e Prática Jurídica da FAAP. Professor convidado dos cursos de pós-graduação em Direito Tributário e Empresarial da FGV Law (SP e RJ), EPD e FUCAPE/ES. Membro do Conselho Científico e Editorial da APET (Associação Paulista de Estudos Tributários). Advogado em São Paulo.