A tributação do futuro e a rigidez constitucional
Luciano Felício Fuck, José Roberto Afonso
As relações econômicas — e também as sociais —, no Brasil e em todo mundo, estão mudando em uma velocidade tão drástica e abrupta nunca experimentada na história da humanidade, como apontam diferentes analistas.
A tributação não escapa dessa realidade. Muito já se discute no exterior, mas o debate a esse respeito sequer começou por aqui. Analistas e até grandes empresários mundiais sugerem a criação de um imposto sobre robô, para tentar enfrentar o desemprego estrutural que resultará de um processo generalizado de mecanização de muitos negócios. Haverá mudança na definição das competências tributárias, que deve levar em conta os condicionantes sociais, econômicos e políticos da época em que são instituídos e cobrados.
Talvez hoje ninguém saiba ao certo como serão cobrados impostos no futuro não muito distante. A única certeza é que nada mais será exatamente igual ao atual sistema tributário.
Será um grande desafio para qualquer economia e governo se preparar e se estruturar para cobrar impostos sem uma ideia mais firme de quais serão. No Brasil, esse desafio se torna monumental diante de um fato peculiar de nossa institucionalidade: nenhum outro país tem tanta definição e detalhes de matérias tributárias cravados no texto constitucional. Se a estabilidade de regras e normas pode ser uma virtude, por certo isso perderá força e se tornará um enorme problema quando for preciso criar novos impostos, de forma rápida e muitas vezes sem muito conhecer como deverá ser sua incidência.
A rigidez constitucional deverá ser um entrave importante para se conseguir modernizar o sistema tributário, ainda mais quando se avizinha um processo carregado de incerteza sobre as novas cobranças.
Com efeito, a Constituição de 1988, na linha da tradição constitucional brasileira, é singular no Direito Comparado[1] pelo grau de detalhamento das competências tributárias, além do extenso rol de limitações constitucionais ao poder de tributar[2]. É necessário aprovar uma emenda constitucional para qualquer reforma substancial dos tributos.
O sistema tributário brasileiro é único: rígido, disciplinado analítica e pormenorizadamente no texto constitucional. Essa prodigalidade de normas constitucionais tem consequência importante, apesar de pouco explorada na literatura: concentra no STF a solução de inúmeras questões e controvérsias sobre tributos.
De fato, no zelo de dispor sobre o sistema tributário, a Constituição de 1988 desce a detalhes comezinhos — o que é o caso mais exemplar o ICMS. Daí que as controvérsias judiciais em matéria tributária acabem desaguando necessariamente no Supremo Tribunal Federal. Apesar de todo o esforço da corte, ainda são comuns as declarações de inconstitucionalidades de leis tributárias revogadas ou vigentes há mais de uma década, a exemplo do caso do Funrural (no RE 363.852/MG, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, DJe 23/4/2010), em foi que reconhecida a inconstitucionalidade em 2010 de tributo cobrado desde 1992.
O STF, regra geral, pode-se dizer que tem exercido influência decisiva no desenho e no funcionamento do sistema constitucional tributário, mantendo papel fundamentalmente institucional na apreciação das questões constitucionais e na concretização dos direitos fundamentais. Cada vez mais, esse papel institucional não se liga à orientação garantista em relação aos contribuintes nem ao endosso das políticas fiscais exaradas pela administração pública e aprovadas pelo Legislativo, mas ao equilíbrio alinhado ao Estado fiscal.
Alguns episódios, no entanto, revelam-se quase que trágicos, tanto pelo procedimento quanto pela conclusão adotados pelo STF, como (i) na ADI-MC 4.389/DF, rel. min. Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 25/5/2011, em que a corte deu interpretação conforme a item da lista de serviços do ISS de maneira muito pouco precisa, tornando ainda mais complexa e controvertida a questão constitucional; (ii) na AC-MC 1.657/RJ, red. para o acórdão min. Cezar Peluso, Pleno, DJe 31/8/2007, em que o tribunal manteve sanção política por inadimplência de obrigação tributária para indústria de cigarro; e (iii) na ADI 2.588/DF, red. para o acórdão min. Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 11/2/2014, cujo julgamento durou mais de dez anos e o resultado proclamado, quase incompreensível, consistiu em verdadeira colcha de retalhos com zonas de indecisão. Tratou-se, neste último caso, de verdadeira não decisão, em que a solução salomônica criou mais controvérsias e problemas do que soluções.
O STF também teve acórdãos memoráveis e paradigmas que mudaram o panorama do Direito Tributário e até do controle de constitucionalidade no país, como (i) a ADI 939/DF, rel. min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 18/3/1994, primeira vez em que o Supremo declarou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, para considerar como cláusulas pétreas garantias individuais dos contribuintes e imunidades; (ii) a ADI 3.105/DF, red. para o acórdão min. Cezar Peluso, Pleno, DJ 18/2/2005, em que proferida decisão demolitória com efeitos aditivos para manter isonomia quanto ao mínimo existencial dos inativos do serviço público em paridade com os filiados ao RGPS, ao mesmo tempo em que se validou a instituição de nova competência tributária essencial para o equilíbrio financeiro do Estado fiscal; e (iii) a ADI-MC 2.247/DF, rel. min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 10/11/2000, que, apesar de sucinto, examinou e reconheceu a violação da legalidade tributária sob o aspecto formal (edição de mera portaria para instituir taxa) e o material, rejeitando a vagueza e imprecisão das especificações da hipótese de incidência da regra matriz da taxa.
Recentemente, causou polêmica a decisão no RE 574.706/PR, rel. min. Cármen Lúcia, Pleno, julgado em 15/3/2017, que rompeu com a centenária jurisprudência da corte de admitir a incidência de tributos sobre tributos. Nada obstante as nefastas consequências dessa incidência por dentro dos tributos, não se pode negar que o sistema tributário brasileiro é fundado nessa premissa desde sua primeira constituição.
Tais decisões indicam a necessidade de imediata reforma de nosso sistema constitucional. E talvez das mais importantes seja reduzir as extensas disposições sobre tributação no texto constitucional, conferindo maior flexibilidade aos entes federados.
Impreterivelmente, um novo e verdadeiro sistema terá de ser construído, materializando mais do que uma reforma tributária, da qual tanto se deseja e promete, mas concretamente nada se faz. A realidade vem se impondo às leis de forma incontornável, como no típico caso da conversão de empregados (com carteira assinada) em prestadores de serviços, através de firmas (inclusive microempreendedores) — uma clara resposta ao país que impõe aos seus empregadores os maiores custos em todo mundo para contratar um trabalhador (entre impostos, encargos e incerteza jurídica).
Governos, leis e, por conseguinte, Justiça parecem que chegam atrasados para tentar lidar e regular com fatos já consumados, na economia e na sociedade. Quando não se sabe nem ao certo aonde se está, como saber para onde ir? Há uma carência de diagnóstico mais completo e atualizado da nova realidade econômica e social. O que dizer se será possível dar respostas de forma rápida e inteligente aos novos desafios para políticas públicas. É urgente ao Brasil pensar e adotar uma nova estratégia para construir novas instituições consistentes e compatíveis com a nova economia e sociedade.
No caso particular da tributação, é certo que será preciso construir um novo sistema (até porque as atuais regras formam qualquer coisa menos um “sistema”, segundo seu significado). Como já dito, será impossível, até no médio prazo, adivinhar, antecipar e cravar no texto constitucional as novas competências tributárias compatíveis com a atual economia. Por isso, defendemos que a Constituição sofra um drástico e radical encurtamento em suas normas tributárias. É preciso assegurar princípios mais elementares, como a proteção básica dos contribuintes — como no caso da legalidade e da anterioridade. Agora, não se poderá sequer denominar os novos impostos no texto constitucional, sob pena de não contemplar todas as novas atividades e fatos geradores, ou o fazer de forma parcial ou inadequada.
Diante das incertezas e mudanças, ideal seria definir as competências no Código Tributário Nacional: lei que exige quórum qualificado (abaixo do exigido para alteração constitucional) e, hierarquicamente, está pouco abaixo de uma alteração constitucional.
Em uma democracia ainda recente e em uma federação em que governos não pactuam, é compreensível a desconfiança na lipoaspiração da matéria tributária no texto constitucional. Por outro lado, também é inquestionável a necessidade de rever sensivelmente a forma tradicional de cobrar tributos na economia brasileira, como em qualquer outra mundo afora. De pouco adiantará a Constituição assegurar conquistas e direitos — individuais e coletivos — se o poder público não for capaz de financiar e, por conseguinte, não puder prestar de forma suficiente e adequada os serviços públicos básicos.
A tributação do futuro exige uma Constituição mais enxuta ao lado de um código tributário mais extenso, que concentre as definições dos pilares de um novo sistema tributário. É preciso agilidade e flexibilidade para ajustar o sistema tributário à nova realidade da economia e da sociedade.
[1] A propósito cf. TÔRRES, Heleno Taveira et alli. “Sistema Tributário e Direitos Fundamentais no Constitucionalismo Comparado”. In: TÔRRES, Heleno Taveira (Coord.). Sistema Tributário, legalidade e Direito Comparado: entre forma e substância. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 21 (28).
[2] BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p. 2.
Luciano Felício Fuck, José Roberto Afonso
Luciano Felício Fuck é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (Alemanha) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
José Roberto Afonso é economista, contabilista, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Economia Industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do curso de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Coordenou a equipe técnica responsável do governo federal que elaborou o projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal.