A reforma tributária nativa digital: Brasil em transformação
Pilar Coutinho
Nos próximos anos, a doutrina e a jurisprudência terão a função de descrever e explorar os caminhos interpretativos das leis que vierem a regulamentar a reforma tributária de 2023. Não é o caminho adotado por esse artigo. Nesse texto, busca-se encontrar um fio da meada da reforma, linhas estruturais que revelam qualquer coisa além e se refletem no texto pendente de sanção pelo presidente da República nesse início de janeiro de 2025. Nesse sentido, acredita-se que a reforma tem por fios condutores: i. busca de uma tributação mais econômica e menos formalista; ii. uma revisão do federalismo fiscal; iii. o papel predominante da tecnologia nessa transformação.
A despeito das reações de diversos juristas da velha guarda, a ruptura de uma tributação construída ao redor de fatos “jurídico-formais” no Brasil não tem ocorrido apenas na tributação sobre o consumo. É uma imposição do mundo como é hoje, seja qual for o nome que damos a ele (pós-moderno ou pós- pandêmico). Por isso, sucumbimos a uma tributação modelo OCDE, ou seja, mais voltada para os fatos econômicos e suas complexidades, a despeito de nossas diferenças com diversos membros dessa organização. O resultado concreto é uma série de dispositivos com a intenção de deixar claro que tributaremos o fato econômico consumo (fornecimento e operação, bens materiais, imateriais, serviços, energias, imóveis, etc). Tributaremos também situações em que, embora não haja contraprestação, há um benefício econômico indireto e uma relação com a cadeia de dedução crédito-débito (brindes, bonificações, etc). Tributaremos quase tudo.
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Ainda dentro do tópico da busca de uma tributação mais econômica, portanto, ao redor do valor agregado, encontra-se a não cumulatividade inspirada no crédito financeiro. Ou seja, rompe-se com uma ideia física, formal, de creditamento, para se caminhar na direção de créditos ligados à criação de valor ao longo da cadeia produtiva (débitos relativos às operações em que seja adquirente, excetuados aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal). Verdade seja dita, a despeito de toda a especulação sobre a alíquota tributária efetiva final, necessária inclusive para acalmar os ânimos populares, é praticamente impossível antever qual será a alíquota efetiva sem se saber em que medida haverá uma ampliação concreta do creditamento.
A extinção de competências tributárias privativas com a substituição por competência tributária compartilhada, inclusive na gestão, só foi possível – de novo com um bocado de resistência – porque houve a compreensão de novas concretizações do federalismo fiscal e, ainda, pela existência de mecanismos tecnológicos adequados. A longa transição, em que a divisão dos recursos não será ainda pelo critério exclusivo do destino, é o que viabilizou a aceitação da reforma. É uma perspectiva interessante sobre um federalismo que se faz menos na repartição de competências e mais na repartição dos recursos. O que na prática já é era uma realidade para a maioria dos municípios, pode indicar uma nova perspectiva legal-teórica.
Mas o desenvolvimento tecnológico é uma marca estrutural dessa reforma. Se outros Impostos sobre Valor Agregado (IVAs) nasceram analógicos e tiveram de se tornar, aos poucos, digitais, a reforma tributária brasileira é uma nativa digital. Pertence, portanto, à geração Alpha. Nasce já pensada para operar em um mundo altamente tecnológico e virtual. Se por um lado, assim, pode criar soluções com um processamento de dados muito mais rápido do que o papel e os seres humanos, por outro, seu sucesso dependerá, em grande medida, da eficiência humana em criar as soluções tecnológicas.
Dentro dessa perspectiva, inúmeros mecanismos da reforma só funcionarão por meio de mecanismos digitais, que permitem tanto a gestão integrada da CBS, a Contribuição sobre Bens e Serviços, e do IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços (artigo 58), como a viabilização de mecanismos de justiça fiscal como o cashback (artigo 117), e a adoção do split payment (artigos 31 a 35).
Dentro dessa perspectiva, o uso de documentos fiscais eletrônicos com leiaute padronizado, já em evolução no cenário pré-reforma, é um dos pilares fundamentais da reforma (artigos 60, 62), pode-se defender o mesmo ponto quanto a existência de planilha eletrônica unificada com informações da apuração e pagamento do tributo (artigo 58). Se sempre se falou muito sobre a “divisão artificial” das competências tributárias, a verdade é que a separação das informações e cadastros gerava – ao mesmo tempo – burocratização e espaço para escolhas tributárias no limite do lícito. Assim, ainda por meio de mecanismos tecnológicos, busca-se a existência de um Cadastro de Identificação Única (artigo 59), assim como o Domicílio Tributário Eletrônico unificado e obrigatório. É sobre o IBS e a CBS, mas poderá ser sobre muito mais, inclusive sobre a regularização fundiária.
Ainda que o split payment não seja uma realidade exclusivamente brasileira, espera-se que sua implantação esteja ligada à sofisticação do sistema financeiro nacional e dos mecanismos tecnológicos que a servem. É a grande aposta do governo, aliás, um pote dourado em termos da eficiência na arrecadação e limitação de abusos fiscais. A aposta não vem, no entanto, sem temor, afinal, a própria legislação já oferta um plano B caso o sistema não seja concretizado (artigo 48).
Nascida na geração Alpha, em um mundo essencialmente digital, essa reforma tributária não é – nem poderia ser em um país como o Brasil – uma ruptura absoluta. Seu texto está cheio de passado. Mas também está cheio de promessas de novos caminhos. Esperemos que nesse salto de fé próprio das rupturas, em alguma medida viabilizado pelas promessas tecnológicas, ela consiga romper com um dos maiores absurdos do sistema tributário nacional: sua descarada obsolescência.
Pilar Coutinho
colaboradora do blog Fio da Meada, consultora tributária na HerreveldvandenHurk & Partners, professora e pesquisadora na PUC-MG, onde fez doutorado com período de investigação na ULisboa