A Reforma Fragmentada do Imposto de Renda: Entre a Retórica da Equidade e os Desafios Técnicos”

Marcelo Magalhães Peixoto

A recente proposta do Governo Federal para reformar o Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas, apresentada de forma deliberadamente fatiada e isolada, configura mais do que um recorte oportunista de uma pauta legislativa anteriormente rejeitada: trata-se de uma evidência concreta da instrumentalização política do discurso da justiça fiscal. Sob o pretexto de ampliar a progressividade e beneficiar trabalhadores de baixa renda, o que se observa, na verdade, é a retomada velada da agenda de dupla tributação dos dividendos, com impacto direto e oneroso sobre o setor produtivo nacional.

Disfarçada sob o manto retórico da equidade tributária, a proposta abandona qualquer pretensão de equilíbrio técnico ou de modernização estrutural do sistema. Ao invés de uma reforma integrada, assistimos à imposição de um projeto regressivo, populista e desestruturado, cujo efeito prático é reintroduzir distorções já superadas desde a vigência da Lei nº 9.249/95.

Antes da reforma de 1995, o sistema tributário brasileiro incentivava a concentração patrimonial na pessoa jurídica e o empobrecimento formal da pessoa física. Era prática disseminada que empresas mantivessem em seu ativo bens utilizados exclusivamente pelos sócios — aviões, imóveis, veículos de luxo, embarcações — enquanto estes declaravam rendimentos mínimos.

A figura jurídica da distribuição disfarçada de lucros (DDL) era, então, um dos principais instrumentos de fiscalização e repressão, embora aplicada com eficácia limitada. O cenário fiscal à época era caótico: a inflação distorcia os lucros contábeis, e o sistema de correção monetária criava lucros fictícios tributáveis, seguidos de mecanismos de diferimento que postergavam indefinidamente o pagamento do IRPJ. A arrecadação tornava-se ineficaz, e a contabilidade empresarial operava com base em ficções jurídicas e estratégias de postergação.

Foi neste contexto que a Lei nº 9.249/95 estabeleceu uma ruptura estrutural: concentrou a tributação na pessoa jurídica e isentou os lucros distribuídos ao sócio pessoa física, estabelecendo um modelo racional, estável e promotor da formalização.
Como resultado, a aplicação da DDL caiu drasticamente, estimando-se redução superior a 99% em sua incidência prática. O projeto atual rompe com esse pacto de racionalidade fiscal. Ao prever a tributação de dividendos sem a necessária contrapartida da redução da carga sobre a pessoa jurídica, reacende todos os incentivos para a simulação patrimonial e o uso da empresa como instrumento de consumo privado. E mais grave: esse efeito já está sendo percebido na prática dos contribuintes.

Vários empresários — espontaneamente, sem qualquer provocação técnica — já iniciaram consultas e reorganizações patrimoniais visando reconfigurar seus fluxos econômicos. Entre as estratégias em gestação, destacam-se: inclusão de familiares como sócios; aquisição de bens pela empresa para uso pessoal; e planejamento de distribuição escalonada de lucros para escapar da tributação progressiva.

Esse movimento espontâneo não é apenas indicativo de planejamento: é diagnóstico antecipado da falência técnica da proposta. Ela ressuscita as condições que fomentaram, por décadas, a evasão disfarçada e a ineficiência arrecadatória.
Diferentemente de propostas anteriores, que ao menos esboçavam um equilíbrio entre tributação de lucros e alívio na alíquota do IRPJ, a versão atual não apresenta nenhuma lógica compensatória. Trata-se de um projeto orientado exclusivamente por motivações arrecadatórias de curto prazo, travestido de justiça social e redistribuição de renda.

A proposta atual de reforma do imposto de renda representa, em sua essência, um retrocesso técnico e institucional, que ameaça destruir décadas de avanço construído a duras penas na organização do sistema fiscal brasileiro.

Longe de promover justiça tributária, ela distorce as premissas constitucionais da capacidade contributiva, da neutralidade e da razoabilidade na tributação. Ao desconsiderar os fundamentos que sustentaram a Lei nº 9.249/95, o projeto ignora deliberadamente a experiência histórica que levou à superação da distribuição disfarçada de lucros como prática generalizada. Pior: ao sinalizar a retomada da tributação dos dividendos sem ajustes estruturais no IRPJ, recria os mesmos incentivos que produziram informalidade, ineficiência e litigiosidade no passado.

É imperativo que o Congresso Nacional não se deixe seduzir pela retórica populista da isenção para os mais pobres. A função do legislador é construir normas justas, coerentes e sustentáveis — e não sacrificar a integridade do sistema para obter dividendos eleitorais temporários. O Brasil precisa de uma reforma verdadeira: ampla, técnica, participativa e orientada por princípios, não por narrativas convenientes.
Somente com coragem institucional será possível romper o ciclo de improvisações e construir um modelo tributário que promova justiça sem comprometer a eficiência econômica.

Marcelo Magalhães Peixoto

Presidente fundador da Associação Paulista de Estudos Tributários – APET; doutorando e mestre em Direito pela PUC-SP

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

Depo 25 Bonus 25

Depo 25 Bonus 25