A oração aos moços (Ruy Barbosa) e 0 direito aos créditos das contribuições PIS/Cofins sobre o valor do ICMS substituição tributária
Walmir Luiz Becker
Escrevi pela primeira vez sobre este assunto, no final do ano de 2010, em trabalho publicado nesse mesmo site jurídico. Dei ao artigo de então este título: “O Ativismo Judicial e os Créditos das Contribuições PIS/COFINS na Substituição Tributária do ICMS”.
Tal titulação prenunciava minha preocupação com o teor das decisões judiciais que poderiam vir a ser proferidas acerca desta questão tributária inédita, que era, e continua sendo, a de saber se, no regime de substituição tributária do ICMS, o contribuinte substituído faz jus à apropriação de créditos das contribuições PIS e COFINS não cumulativas, calculadas sobre o valor do ICMS – Substituição Tributária.
No referido artigo critiquei com severidade os atuais julgamentos do Poder Judiciário em causas tributárias. É que, de uns tempos para cá, os contribuintes raramente obtiveram êxito em suas demandas judiciais de natureza tributária. Estas, na maioria dos casos, foram resolvidas pro fisco, por mais sólidos que fossem os fundamentos jurídicos para afastar exigências fiscais ilegais ou inconstitucionais.
Trata-se de fenômeno que vem sendo objeto de debates nas conferências feitas pelos mais renomados juristas pátrios em Congressos, Simpósios e Seminários de Direito Tributário realizados por esse País afora. Infelizmente, de um modo geral, ainda não ecoou nos gabinetes da maioria dos magistrados esse clamor de conferencistas ilustres por uma justiça tributária que respeite princípios constitucionais elementares, como o da segurança jurídica, da moralidade da administração pública, da boa-fé, do não confisco, dentre outros.
Contudo, e apesar de tudo, no que diz respeito à discussão relativa aos créditos das contribuições PIS/COFINS sobre o valor do ICMS Substituição Tributária – ICMS/ST pago pelo contribuinte substituído, estou plenamente convencido de que os contribuintes interessados (contribuintes substituídos do ICMS) poderão vir a obter melhor sorte.
Venho estudando este tema há mais de três anos. Resultaram desse estudo prolongado quatro artigos jurídicos, dois deles já veiculados por este site, e, o último, no n.º 219 da Revista Dialética de Direito Tributário.
Esta minha convicção quanto ao direito do contribuinte substituído à tomada de créditos relativos ao ICMS – ST decorre da certeza que tenho quanto a que a parcela correspondente a esse ICMS, destacada no documento fiscal de venda emitido pelo contribuinte substituto, integra o custo de aquisição da mercadoria adquirida pelo contribuinte substituído.
Não é possível chegar-se a conclusão diferente quando se examina o disciplinamento contábil e fiscal que a legislação tributária, mormente a do imposto de renda das pessoas jurídicas, confere aos valores de impostos como o IPI e ICMS, constantes em todo documento fiscal que formaliza a entrada de bens e mercadorias em estabelecimentos comerciais ou industriais.
Como se sabe, por imposição legal, esses tributos são declarados e destacados pelo vendedor nos documentos fiscais de saídas de bens ou mercadorias de seu estabelecimento, devendo ser registrados, contabilmente, pelo estabelecimento comprador, ora como ativos, se recuperáveis contábil e fiscalmente, ora como custos, se irrecuperáveis.
Serão classificados como custo de mercadorias destinadas à revenda os tributos devidos na aquisição destas (art. 289, § 1.º, do RIR/99); não devem, todavia, ser considerados custo de aquisição, mas contabilizados em conta do ativo, os impostos recuperáveis através de créditos na escrita fiscal (art. 289, § 3.º, do RIR/99 e IN SRF 51/78), mesmo em se tratando de bens/mercadorias adquiridos para revenda.
Por conseguinte, nas demandas judiciais por créditos das contribuições PIS e COFINS em relação a valores do ICMS Substituição Tributária, o que está em julgamento, em última análise, é saber se o ICMS – ST integra, ou não, o custo de aquisição das mercadorias adquiridas sob esse regime de tributação pelo ICMS. Só isto, nada mais que isto.
Como parcela do custo de aquisição de mercadoria adquirida para revenda, esse ICMS – ST está apto a gerar créditos das contribuições PIS e COFINS, de acordo com o disposto no art. 3.º, inciso I, das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003.
Ora, a própria Receita Federal do Brasil, em várias ocasiões, orientou os contribuintes a contabilizar o ICMS – ST como custo de aquisição. Leia-se, a título ilustrativo, a ementa da Solução de Consulta n.º 60/07, expedida pela Superintendência Regional da Receita Federal da 4.ª Região Fiscal.
“EMENTA: ICMS-SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. CONTABILIZAÇÃO. O valor referente ao ICMS-Substituição tributária, retido pelo fornecedor do contribuinte substituído nos termos da legislação estadual, integra o custo de aquisição das respectivas mercadorias, visto que não é recuperável por este último, pelo que não pode ser contabilizado diretamente à conta de despesas tributárias, sob pena de redução indevida do lucro real correspondente ao período-base em que as citadas mercadorias não sejam vendidas.”
Com esta orientação, a RFB obedeceu ao disposto nos parágrafos 1.º e 3.º do art. 289 do RIR/99, segundo os quais os impostos recuperáveis na escrita fiscal não devem ser incluídos no custo de aquisição das mercadorias. Logo, contrario sensu, os impostos não recuperáveis na escrita fiscal, como o ICMS – ST, integram o custo de aquisição, conforme, acertadamente, concluiu a referida Solução de Consulta.
Se, como reconhece a RFB, o ICMS – ST integra o custo de aquisição da mercadoria adquirida para revenda, e se os créditos PIS/COFINS são calculados sobre o custo de aquisição da mercadoria (art. 3.º, I, das Leis 10.637 e 10.833), essa mesma RFB deveria admitir os créditos PIS/COFINS sobre o custo de aquisição ICMS – ST. Certo? Não, errado!
Utilizando a mesma via das Soluções de Consulta, a Receita Federal do Brasil tem vedado o desconto de créditos PIS/COFINS sobre o valor do ICMS – ST. Neste sentido, por exemplo, a Solução de Consulta n.º 73/12, da Superintendência Regional da 4.ª Região Fiscal:
“EMENTA: ICMS – SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DE CREDITAMENTO. O ICMS recolhido em regime de substituição tributária não compõe a base de cálculo dos créditos da apuração não cumulativa da Cofins devida pelo contribuinte substituído.”
Quer dizer: embora reconhecendo que o ICMS – ST compõe o custo da mercadoria do substituído, a RFB, contraditoriamente, incorrendo em inequívoca ofensa ao princípio constitucional da moralidade pública (art. 37 da CF), não quer que sejam apropriados créditos do PIS e da COFINS sobre o ICMS – ST.
Aliás, tal reconhecimento de que o ICMS – ST compõe o custo de aquisição de mercadorias, que vinha desde 2007 (SC 60/07), veio a ser reiterado mais tarde, em 2012. Efetivamente, em outra Solução de Consulta, a de número 60/12, agora tendo por objeto, não as contribuições PIS/COFINS, mas o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, a Superintendência Regional da 4.ª Região Fiscal novamente veio a orientar os contribuintes a contabilizarem como custo de aquisição o valor do ICMS – Substituição Tributária.
Desta vez, justificou tal orientação a partir dos reflexos tributários negativos que a não adoção desse procedimento contábil traria para fins de apuração das bases de cálculo do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas (lucro real) e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro líquido (lucro líquido do exercício). Eis a ementa do citado ato administrativo fazendário:
“Assunto: Imposto sobre a Renda Pessoa Jurídica – IRPJ. Ementa: ICMS-SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. CONTABILIZAÇÃO. O valor referente ao ICMS-Substituição tributária, retido pelo fornecedor do contribuinte substituído nos termos da legislação estadual, integra o custo de aquisição das respectivas mercadorias, visto que não é recuperável por este último, pelo que não pode ser contabilizado diretamente à conta de despesas tributárias, sob pena de redução indevida do lucro real correspondente ao período-base em que as citadas mercadorias não sejam vendidas. DISPOSITIVOS LEGAIS: Decreto Estadual (AL) n.º 35.245, de 1991, arts. 428 e 429; Decreto Federal n.º 3.000, de 1999 (RIR/1999), art. 289, ‘caput” e §§ 1.º e 3.º; Instrução Normativa SRF n.º 51, de 1978, arts. 3.º e 6.º.
Não há como negar a contradição contida nas aludidas orientações fazendárias. Se, nas Soluções de Consultas 60/07 e 60/12, a RFB diz que o ICMS – ST é parte do custo de aquisição da mercadoria adquirida para revenda, não poderia, na Solução de Consulta 73/12, negar créditos de PIS e COFINS sobre a parcela desse imposto. Se é parcela do custo de aquisição, o ICMS – ST compõe o valor do bem/mercadoria adquirido para revenda, proporcionando, consequentemente, créditos das contribuições PIS/COFINS, ex vi do disposto no art. 3.º, I, da Lei n.º 10.637/2002 e no art. 3.º, I, da Lei n.º 10.833/2003.
Nem se diga, como parece que já andaram dizendo por aí alguns magistrados, que o contribuinte substituído não pode calcular créditos de PIS/COFINS sobre a parcela correspondente ao ICMS – ST porque esta parcela do preço não sofreu anterior incidência das contribuições na operação de venda da mercadoria realizada pelo contribuinte substituto.
Perguntemos a eles: onde está o fundamento legal para a incidência das contribuições PIS e COFINS sobre meros ingressos de valores de terceiros, uma vez que o contribuinte substituto apenas arrecada para os Estados o ICMS – ST que desconta do contribuinte substituído. De resto, essa não incidência tributária é assunto pacificado desde há muito por diversas Soluções de Consulta da RFB, como a de número 4/2007, da Superintendência Regional da 3.ª Região Fiscal, formulada com a seguinte ementa:
“EMENTA: ICMS – SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA. EXCLUSÃO D A BASE DE CÁLCULO. O valor do ICMS cobrado pelo vendedor dos bens ou prestador dos serviços na condição de substituto tributário não integra a base de cálculo da Cofins, independentemente de qual seja o regime de cobrança da contribuição, por se tratar de antecipação do imposto devido pelo contribuinte substituído e não ter a natureza de receita própria do substituto.”
Para finalizar, desejo deixar registrado que há outros argumentos de peso para se arguir o direito à adjudicação de créditos do PIS/COFINS sobre o valor do ICMS – ST, conforme expus em artigos anteriores. Entretanto, considero suficiente e o bastante, para a sustentação desse direito, esse fato inquestionável: o ICMS – ST compõe o custo de aquisição da mercadoria adquirida por esse regime de tributação desse imposto estadual, na medida em que o respectivo valor é irrecuperável, contábil e fiscalmente, na escrituração contábil e fiscal do contribuinte substituído.
Portanto, não tem qualquer consistência jurídica, para dizer-se o menos, só podendo provir de quem sempre quer colocar-se ao lado do Fisco, o argumento de que inexistiria direito ao creditamento pela circunstância de a parcela do ICMS – ST (uma não receita) não ter composto, em operação anterior, a base de cálculo das contribuições PIS e COFINS devidas pelo contribuinte substituto.
Vejam a absoluta impropriedade de um raciocínio desse jaez. O que estão a almejar? Querem, sob pena de negativa aos respectivos créditos, que as contribuições incidam sobre uma não receita do contribuinte substituto? Estão a confundir tudo, a fazer o “Carnaval Tributário” denunciado por Alfredo Augusto Becker (Lejus, 2.ª edição, SP, 1.999).
Fico entristecido ao constatar que argumento absurdo como este esteja sendo utilizado por quem, no exercício da magistratura, “a mais eminente das profissões a que o homem pode se entregar neste mundo”, segundo Ruy Barbosa, deveria ser o primeiro a fazer valer os postulados maiores do direito, inclusive do direito tributário.
Se nos servir de consolo, lembremo-nos de que, no remotíssimo ano 1920, o paraninfo de uma Turma de direito da Faculdade de Direito de São Paulo, já fazia a seguinte advertência aos formandos:
"Não vos mistureis com os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de ‘fazendeiros’. Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado".
Quem era esse paraninfo? Ruy Barbosa. Seu discurso ganhou o título famoso de Oração aos Moços, cujo texto foi recentemente publicado pela Editora Edra (2.ª edição, SP, 2009). O trecho acima reproduzido está na página 66 da mencionada obra. A frase com a qual o mesmo Ruy Barbosa reconhece, na magistratura, “a mais eminente das profissões”, está na página 63.
Walmir Luiz Becker
Advogado