A litigância tributária entre o split payment e o solve et repete
Fernando Facury Scaff
Split payment é o nome dado ao recolhimento de tributos no momento da liquidação financeira, método criado pela EC 132/23 e regulamentado pela LC 214/24, pelo qual uma parcela da fatura paga será imediatamente apartada para quitação dos tributos sobre o consumo incidentes sobre aquela operação (CBS+IBS), o que também vale para o Imposto Seletivo, quando incidir (artigo 433, LC 214/24). Esse método de pagamento de tributos ingressou de forma sutil na EC 132/23 (artigo 156-A, §5º, II, “b”), mas tornou-se o coração do novo sistema tributário do consumo.
Expondo de maneira didática, e supondo uma alíquota de 30%: se a empresa A vender mercadorias para a empresa B por R$ 100, no ato de quitação do boleto bancário será imediatamente apartado o montante de R$ 30 para pagamento da CBS+IBS. Com isso, a empresa vendedora A receberá apenas R$ 70, embora a empresa compradora B tenha pago R$ 100, pois o imposto já terá sido abocanhado pelo Fisco no montante de R$ 30. Existem algumas variantes, como o split payment inteligente, o simplificado e o manual, mas, em síntese, a operação está desenhada da forma exposta.
Critica demolidora ao sistema de split payment foi feita por Gustavo Brigagão nesta ConJur, inclusive considerando a experiência em outros países. Brigagão não considerou em sua análise os impactos que esse método de pagamento trará no sistema de litigância tributária – o que ora faço.
Será necessária uma nova emenda constitucional para regular a matéria processual, decorrente da EC 132/23. De forma irônica tenho comentado que será a “PEC do Esqueceram de Mim”, lembrando o conhecido filme com o mesmo nome, pois esqueceram a importantíssima questão processual referente ao IVA dual dos irmãos gêmeos CBS+IBS. Não tratarei do desenho processual em debate por uma Comissão formada no âmbito do CNJ, nem do conjunto de projetos de lei em trâmite no Congresso decorrentes de uma Comissão anterior, presidida pela ministra Regina Helena Costa, do STJ, órgão que já manifestou preocupações acerca da condução do tema.
Meu foco está nas consequências do split payment na litigância tributária. E o ponto a ser tratado é muito singelo: se o pagamento do tributo ocorrerá de forma instantânea e concomitante ao pagamento da fatura, a massa de execuções fiscais, e seus consequentes embargos, tende a ser fortemente reduzida.
O que os Fiscos cobrarão administrativa ou judicialmente se o imposto sobre o consumo já tiver sido antecipadamente pago? Quase nada. Restarão apenas aquelas situações raras e pontuais de transações que ocorrerão à margem do sistema implantado, por meio das operações “sem nota fiscal”, como já vislumbro em alguns mercados específicos e apenas em casos extremos, por exemplo: (1) na cadeia de comercialização de joias, na qual, pelo volume dos bens, é fácil adquirir, transportar e vender sem emitir documentos fiscais, ou (2) no caso de prestadores de serviços, fortemente impactados pela brutal majoração da carga tributária, que deixarão de emitir notas fiscais aos seus clientes, como os médicos de antigamente, que tinham um preço de consulta “com ou sem recibo”. Repito: serão casos pontuais. O “grosso” das operações serão alcançadas pelo pagamento antecipado por meio do split payment. Tendo sido pago antecipadamente o imposto, as execuções fiscais e seus embargos tendem a ser fortemente reduzidos.
Spacca
Isso aponta para a redução da litigiosidade do Fisco contra os contribuintes, mas não para a redução da litigiosidade dos contribuintes contra o Fisco – a litigância terá sentido inverso.
O split payment reintroduz o lamentável e odioso solve et repete, que, em bom português, quer dizer paga antes e busca ressarcimento em caso de erro na cobrança.
Suponhamos que o split payment venha a ser financeiramente descalibrado, com o Fisco cobrando mais do que o devido. Exemplos esclarecem: (1) Em uma demanda coletiva o Judiciário declara inconstitucional determinada incidência por meio de controle difuso e o Fisco permanece cobrando via split payment – o contribuinte individual, representado coletivamente, terá que ingressar com uma medida judicial para que não ocorra o recolhimento de tributos no momento da liquidação financeira; ou (2) Identifica-se que dentre inúmeras operações de um supermercado, a somatória dos pagamentos em cada operação individual foi maior do que o devido no conjunto do período – como receber o saldo positivo? A resposta teórica é fácil, pois bastaria compensar o crédito com as operações a débito no período posterior, mas, quem acredita que o Fisco venha a reconhecer e compensar esse valor de forma automática? Trata-se de outra situação na qual vai se intensificar a litigiosidade dos contribuintes contra o Fisco.
O cenário é de uma ampla modificação na litigância tributária, fruto do sistema de split payment que está sendo implantado, pois o contribuinte não mais declarará o tributo devido. Ao revés, o Fisco é que receberá automaticamente, e de forma antecipada, em cada operação singular, o tributo que ele, Fisco, entende como devido. É a reintrodução do solve et repete no nosso sistema tributário, com o contribuinte necessitando ir ao Poder Judiciário para frear eventuais erros de apuração e cobrança antecipada dos tributos sore o consumo.
O problema pode se intensificar caso o contribuinte, no curso de uma ação judicial, decida depositar em juízo a quantia que entende devida. Neste caso, nada garante que o depósito judicial equivalerá a um crédito de CBS+IBS, pois o dinheiro não será recolhido aos cofres do Tesouro, mas do juízo. É preciso regular essa matéria, pois se trata de uma derivação do solve et repete implantado por meio do split payment, que seguramente envolverá decisões judiciais.
Cavalo de Troia
Enfim, constata-se que: (1) esta revolução na tributação do consumo tem nítida inspiração fiscalista, isto é, pró-Fisco; (2) o split payment foi nela introduzido como no velho mito do Cavalo de Troia, isto é, sem que os contribuintes percebessem o tamanho do problema que estavam incorporando para sua atividade empresarial, e com isso, (3) a litigância tributária vai mudar de rumo, reduzindo a litigância do Fisco contra os contribuintes e aumentando a litigância dos contribuintes contra o Fisco, com todos os custos daí envolvidos. Ao final, (4) o argumento dos economistas e dos fiscalistas que gestaram a reforma será que a culpa é dos advogados e do Poder Judiciário que destruíram o belo e perfeito sistema que por eles foi criado.
Espero estar errado, pois, caso esteja certo, os problemas judiciais e os custos empresariais se avolumarão de forma exponencial.
Fernando Facury Scaff
é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.