A inadequação do fato gerador da CBS incidente no mercado interno

Sergio André Rocha e Melina Rocha Lukic

Na última semana, os debates tributários foram tomados pelas discussões a respeito do Projeto de Lei nº 3.887/2020 (PL 3.887), apresentado pelo Governo Federal, que propõe a instituição da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços, a CBS.

O projeto tem sofrido inúmeras críticas desde a sua apresentação. As principais se referem ao desenho do fato gerador do tributo e à possibilidade de a CBS nascer já gerando discussões judiciais; a contradições internas do próprio projeto; ao aumento da carga tributária de alguns setores – especialmente em um ambiente de crise econômica aguda, e à alíquota proposta de 12%, considera alta e opaca, diante da falta de informações sobre o seu processo de definição.

Com efeito, o modelo da CBS e a redação de inúmeros artigos do PL 3.887 trazem diversas questões com potencial de gerar contencioso. A exposição de motivos afirma que a CBS utilizará a técnica de tributação do valor adicionado, alinhando-se à literatura e experiências internacionais consolidadas. Existem diferentes tipos de tributos que podem ser caracterizados como IVA.

Por esta razão, muitos consideram que o IVA é muito mais uma técnica para definir a base tributável do que um tipo de tributo. Em geral, os modelos internacionais de IVA adotam como fato gerador a realização de toda e qualquer operação com bens e serviços e são baseados em creditamento por meio de faturas (imposto contra imposto). Tendo em vista estas características, a literatura internacional é unânime em afirmar que o IVA, neste modelo, é um tributo que incide sobre operações/transações.

Esta tributação nos moldes do IVA tentou ser traduzida pelo parágrafo único do art. 1º do PL 3.887 ao se estabelecer que “a CBS incide sobre as operações com bens e serviços”.

Apesar de não haver nenhuma definição do termo “operações” no projeto, a exposição de motivos leva a crer que o conceito de “operações” adotado no art. 1º “tem um sentido amplo” e teria seguido os modelos internacionais.

Os modelos internacionais de fato gerador de IVA diferem entre si, mas, em geral, abrangem todo e qualquer negócio jurídico que envolva uma provisão (supply) de bens ou serviços[1].

Por esta razão, se a interpretação do conceito de operações seguir esta linha, a interpretação de “operações” no art. 1º deverá abranger todos os negócios jurídicos que envolvem a provisão de bens e serviços, incluindo, além da transferência da propriedade por uma compra e venda, a locação e a cessão de uso, por exemplo.

Ocorre que este conceito internacional que parece ter sido adotado pelo art. 1º é muito mais largo do que a interpretação consolidada no Brasil, seja na doutrina, seja na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Os pontos de partida que o PL 3.887 toma consolidados, estão sob análise do STF em diversos casos envolvendo o ICMS, o ISS e as próprias Contribuição para o PIS e Cofins.

Além de apresentar uma base conceitual controvertida, ao pretender estabelecer uma contribuição sobre operações no mercado interno com bens e serviços, pode ser levantado o argumento de que o PL 3.887 se afastou da competência estabelecida pela Constituição Federal, no art. 195, I, “b”, que prevê a possibilidade de instituições de contribuições sociais sobre “receita” ou “faturamento”.

A questão que se coloca aqui não é meramente de opção legislativa. As contribuições sociais sobre receita ou faturamento não incidem sobre “operações circulatórias”, mas sim sobre a receita ou o faturamento da empresa.

Trata-se de tributos diretos, não daqueles apontados como juridicamente indiretos. Baseiam-se na capacidade de contribuir da empresa, não tendo como foco atingir a capacidade econômica do consumidor – de uma perspectiva jurídica.

Em seguida, o art. 2º define como fato gerador da CBS o “auferimento da receita bruta de que trata o art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77”. Claramente a redação do art. 2º teve por objetivo enquadrar a CBS na materialidade do já referido art. 195, I, “b” da Constituição Federal, já que, como visto, a União Federal não tem competência para instituir uma contribuição sobre operações com bens e serviços no mercado interno.

Esta materialidade está incluída no rol de competências tributárias dos estados no art. 155 (circulação de mercadorias e certos serviços) e dos municípios (serviços de qualquer natureza), no art. 156. Mesmo por via do exercício da competência residual prevista no § 4º do artigo 195 da Constituição seria questionável a criação de um tributo cujo fato gerador seja a circulação de bens e serviços.

A exposição de motivos ainda tenta explicar que a definição do art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 (DL 1.598/77) permite a tributação sobre bens e serviços e que “a CBS incidirá apenas sobre a receita decorrente do faturamento empresarial, ou seja, sobre as operações realizadas com bens e serviços em sentido amplo”.

Tanto a redação dos arts. 1º e 2º, quanto a exposição de motivos, parecem ser contraditórias e não deixam claro se a CBS incidirá, no caso de operações no mercado interno, sobre as operações em si ou sobre a receita bruta.

Um tributo sobre operações não é a mesma coisa que um tributo sobre receitas, por mais que o resultado final do cálculo do tributo a recolher, após a aplicação de um dos métodos para se apurar o valor adicionado, possa ser o mesmo.

Igualmente, não fica claro se a interpretação do art. 2º deve ser feita em conjunto com o art. 1º, no sentido de que incidirá somente sobre as operações decorrentes de operações com bens e serviços. Se este é o caso, não haveria a necessidade de remeter o conceito de receita bruta ao DL 1.598/77.

Esta, porém, não parece ser a interpretação do governo federal, já que em diversas apresentações a equipe técnica afirmou que o conceito de receita bruta a ser considerado deve ser o do DL 1.598/77.

Esta questão deixa mais evidentes as contradições internas do PL 3.887. Por exemplo, ao tratar da CBS incidente sobre a importação de serviços, o projeto estabeleceu, de forma explícita, que seriam considerados “serviços” a “cessão e o licenciamento de direitos, inclusive intangíveis”.

Ora, se houve uma referência explícita a essas atividades no § 1º do art. 61 do PL 3.887, é sinal de que o conceito de serviços utilizado pelo projeto não incluía tais atividades, não sendo, portanto, um “conceito amplo” como se diz na exposição de motivos.

Daí que, nas operações internas, a base ampla da CBS dependeria bastante da interpretação dada ao art. 12 do DL 1.598/77, cujo inciso IV tem uma redação aberta, ainda não pacificada, que certamente gerará controvérsias, ao fazer referência à inclusão na receita bruta da empresa das “receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica”.

Note-se que o inciso IV fala apenas nas receitas decorrentes da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica. A exposição de motivos, entretanto, parece não levar em conta este requisito, pois afirma que “de acordo com este artigo, a receita bruta é o produto da venda de bens e serviços, ou, no caso, de não se caracterizar como coisa ou outra, o produto das demais atividades empresariais da pessoa jurídica” e, estranhamente, não menciona a referência à “atividade ou objeto principal da pessoa jurídica”, mencionada expressamente no DL 1.598/77.

Diante destas discussões e seguindo a intenção de simplificação da legislação, o governo federal deveria ter inserido um novo conceito de receita bruta no PL 3887/2020, em vez de fazer a remissão à redação DL 1.598/77.

Além disso, a conclusão é a de que, no caso do mercado interno, o art. 1º parece não ter qualquer utilidade e só vai criar mais confusão interpretativa e margem para contencioso.

A mesma questão aparece no art. 9º do PL 3887/2020 que condiciona o aproveitamento de crédito “à aquisição de bens ou serviços”. Tendo em vista que a intenção é a de um crédito amplo, não deveria a redação do art. 9º ter usado a palavra “aquisição”, que leva à interpretação restrita de compra e venda.

Se a intenção é efetivamente um creditamento amplo, bastaria prever que todo e qualquer custo ou despesa efetuado pela pessoa jurídica gera o direito ao crédito para o contratante, tomador ou adquirente, sem referência a “operações com bens ou serviços”.

A tributação sobre a receita total conjugada com a dedução de despesas e custos referentes à atividade empresarial segue o método de IVA conhecido como “subtrativo” (subtraction method), técnica através da qual igualmente se pode calcular o valor adicionado pela empresa[2].

Este foi, aliás, o método adotado na criação do atual PIS/Cofins não cumulativo, segundo a própria exposição de motivos da Medida Provisória nº 135/2003[3] que foi convertida na Lei nº 10.833/2003.

Apesar de pouco comum nos IVAs adotados internacionalmente, este é o método mais adequado para um tributo sobre a receita, pois não leva em consideração o tributo devido e pago em cada operação, tais como nos sistemas em que o imposto incide sobre operações.

Portanto, a principal e importante diferença para fins da CBS é que, enquanto o método de crédito por fatura (invoice credit) é baseado em transações, o método de subtração é baseado na entidade/empresa, o que se conforma perfeitamente com um tributo cuja materialidade é a receita da pessoa jurídica[4].

Desta forma, é possível aplicar uma técnica de apuração do valor adicionado dentro de um tributo sobre a receita, o que não descaracterizaria a CBS como um tributo sobre o valor adicionado, tal como é a intenção do governo.

Por fim, a confusão também está presente no art. 7º que descreve a base de cálculo da CBS e que igualmente reflete esta incidência indefinida entre operações e receita. Conforme o artigo, a base de cálculo é o valor da receita bruta auferida em cada operação.

Em sistemas IVAs, o fato gerador normalmente é o valor da operação. A redação “receita bruta auferida” leva a entender que a base de cálculo é o valor que é efetivamente recebido pelo fornecedor de bens e serviços, o que não necessariamente coincide com o valor da operação.

Um exemplo são transações entre partes relacionadas, para as quais algumas legislações de IVA no mundo estipulam que o valor da operação será o valor de mercado do bem ou produto, independentemente da receita auferida pelo fornecedor.

Considerando os comentários anteriores e com a intenção de contribuir para o aprimoramento do fato gerador da CBS, apresentaríamos as seguintes sugestões:

A não ser que seja precedida de uma alteração constitucional, não é aconselhável que a CBS seja instituída como um IVA incidente sobre operações com bens e serviços. A competência outorgada pela Constituição Federal, neste caso, é para a instituição de um tributo sobre “receita” ou sobre o “faturamento”, e não sobre “operações com bens e serviços”.
Portanto, para se alinhar à Constituição Federal, o PL 3.887 deveria instituir duas contribuições distintas: uma Contribuição Social sobre a Receita Bruta – CSRB – e uma Contribuição Social sobre a Importação de Bens e Serviços – CSIBS.
A CSRB teria base ampla, alcançando as receitas decorrentes de todas as atividades empresariais. Para tanto, ao invés de trazer para o projeto conceitos controvertidos como “operações”, “bens” e “serviços”, bastaria usar o modelo do PIS e Cofins não cumulativos e o método subtrativo para apuração do valor adicionado, estabelecendo que a incidência se dará sobre a receita total, com a dedução de ganhos de capital, receitas financeiras, equivalência patrimonial, etc. Não há nenhuma dúvida de que uma receita, mesmo secundária, de locação, é tributada pelo PIS e a Cofins não cumulativos. Porém, não se pode dizer o mesmo sobre a CBS incidente no mercado interno, nos moldes previstos no PL 3.887.
Portanto, a CSRB deveria ser estruturada como uma contribuição sobre a receita bruta, afastando-se, assim, esta tentativa a nosso ver equivocada de se tentar criar um tributo circulatório sem base constitucional, tentando introduzir um IVA federal baseado em operações com bens e serviços sem levar em consideração que a estrutura constitucional das contribuições sociais, em princípio, não dá base para tanto.
O propósito deste artigo é contribuir com o trabalho em direção a uma reforma tributária eficaz, que efetivamente traga simplificação e reduza litígios entre o Fisco e os contribuintes. Ele não é uma crítica ao modelo de IVA, que certamente pode e deve ser introduzido no Brasil.

Ademais, os autores suportam um sistema dual, onde a União Federal siga um caminho independente de estados e municípios. Contudo, a premissa dos autores é a de que o modelo do projeto do governo pode trazer discussões desnecessárias com relação à competência prevista no art. 195, I, “b” da Constituição Federal.

Portanto, ao menos em relação à incidência doméstica, o PL 3.887 deveria instituir uma CSRB, um tributo sobre a receita bruta, no qual igualmente será aplicada uma técnica para apuração do valor adicionado, evitando a tentativa de se criar um IVA incidente sobre operações com bens e serviços, que certamente gerará insegurança e contencioso.

Não é possível prever o resultado de eventuais disputas. Contudo, parece-nos que o simples fato de se inaugurar um sistema novo já povoado de controvérsias deveria ser suficiente para repensarmos o modelo apresentado no PL 3.887.

[1] A legislação do Canadá, por exemplo, traz uma lista exemplificativa destes negócios jurídicos no conceito de supply: “Excise Tax Act (Canada) 123 (1) supply means, subject to sections 133 and 134, the provision of property or a service in any manner, including sale, transfer, barter, exchange, licence, rental, lease, gift or disposition”.

[2] Ebrill e outros descrevem este método da seguinte maneira: “under the “subtraction” method, tax is levied directly on an accounts based measure of value added calculated for each firm by subtracting allowable purchases from revenues”. EBRILL, Liam, KEEN, Michael, BODIN, Jean-Paul, SUMMERS, Victoria. The Modern VAT. International Monetary Fund, 2001.

[3] Segundo a exposição de motivos da Medida Provisória nº 135/2003: “Por se ter adotado, em relação à não-cumulatividade, o método indireto subtrativo, o texto estabelece as situações em que o contribuinte poderá descontar, do valor da contribuição devida, créditos apurados em relação aos bens e serviços adquiridos, custos, despesas e encargos que menciona”.

[4] De acordo com Ebrill e outros: “most of these differences reflect the central feature that the invoice-credit method is transaction-based and the subtraction method entity-based”. EBRILL, Liam, KEEN, Michael, BODIN, Jean-Paul, SUMMERS, Victoria. The Modern VAT. International Monetary Fund, 2001. Fonte: Jota

Sergio André Rocha e Melina Rocha Lukic

SERGIO ANDRÉ ROCHA – Professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj. Diretor da ABDF.

MELINA ROCHA LUKIC – Diretora de Cursos da York University.

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