A Guerra Fiscal do ICMS e o Princípio da Segurança Jurídica

Rafael Santiago Araujo

1. Introdução

Tempos atrás – sem nos aprofundarmos às razões que levaram a este caminho – acreditava-se que a Guerra Fiscal seria interrompida com a criação do “ICM” (atual “ICMS”), que fora instituído para substituir o “IVC” (imposto sobre vendas e consignações), mas o que ocorreu, de fato, foi a exacerbação da Guerra, mormente após o advento da CF/88, pois a União, perdendo receita de IPI e IR para os Estados e Municípios, deixou de praticar políticas regionais [1].

Como consabido, em linhas gerais, a Guerra Fiscal do ICMS resulta da concessão irregular de benefícios fiscais por um Estado da Federação a determinado contribuinte, visando atrai-lo ao seu território com a finalidade de estimular a economia regional e reduzir as desigualdades sociais.

Pode-se entender por benefícios fiscais a isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, empréstimos subsidiados de longo prazo, etc.

No campo do ICMS, em razão do princípio da não-cumulatividade, quando um Estado concede benefício fiscal a determinada empresa para que se instale e opere em seu território, por consequência, acaba influindo na arrecadação do Estado receptor da mercadoria.

Nesse passo, o Estado de destino mercadoria, sentindo-se lesado pela concessão irregular de benefício fiscal pelo Estado de origem, resolve, unilateralmente (o que também é ilegal), glosar o crédito do contribuinte adquirente da mercadoria.

Diante deste cenário, instaurado está o caos da Guerra Fiscal, que vem há décadas sendo um problema ainda pendente de solução, e que tem como maior prejudicado o contribuinte.

2. A concessão de benefícios fiscais à revelia do CONFAZ

Consoante a dicção do art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88, compete à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados no âmbito do ICMS.

O instrumento normativo que trata da matéria de convênios para concessão de benefícios fiscais no âmbito do ICMS é a LC nº 24/75.

Segundo a indigitada lei complementar, para a concessão de benefícios fiscais relativos ao ICMS, é necessária a reunião e aprovação unânime de todos os estados-membros e do Distrito Federal, que se dará mediante a celebração de um convênio ratificado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ.

Tal sistemática visa justamente evitar conflitos entre os Estados-membros da federação, pois, como visto, a concessão de benefícios fiscais no ICMS interfere na arrecadação do referido tributo pelo Estado de destino da mercadoria, devendo este, portanto, estar ciente e de acordo com o benefício outorgado pelo Estado de origem da mercadoria.

Assim, não havendo convênio nos termos estabelecidos pela Constituição Federal e pela legislação de regência (LC 24/75), diga-se, à revelia do CONFAZ, tem-se que os benefícios fiscais assim concedidos são revestidos de inconstitucionalidade na sua forma.

A causa pela qual os Estados concedem os benefícios fiscais à revelia do CONFAZ, que a nosso ver, a priori, é legítima, eis que visa dar efetividade ao comando normativo do art. 3º da Constituição Federal, que apregoa ser um dos objetivos da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais, é ponto para outra discussão.

2.1. A não recepção do art. 8º da Lei Complementar nº 24/75 pela CF/88

Como dito, a Lei Complementar nº 24/75 regulamenta a celebração de convênios no âmbito do CONFAZ, bem como prevê as sanções aplicáveis aos Estados que descumprirem a formalidade prevista para a concessão de benefícios fiscais relativos ao ICMS.

A propósito, vale a transcrição do art. 8º da lei complementar nº 24/75:

“(…) Art. 8º – A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:

I – a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;

II – a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente (…).”

Escorando-se no dispositivo supratranscrito, os Estados destinatários das mercadorias, percebendo a concessão irregular de benefícios fiscais pelo Estado de origem, resolvem, unilateralmente, glosar o crédito do contribuinte adquirente e exigir do contribuinte alienante a diferença que fora concedida a título de benefício fiscal, incorrendo em flagrante violação ao princípio da não-cumulatividade, bem como em invasão de competência, uma vez que, se houvesse que se falar em cobrança dos valores concedidos a título de benefício fiscal, essa competência seria do Estado de origem da mercadoria.

Ressalte-se, por oportuno, que na esteira da melhor doutrina, não há necessidade de o ICMS ter sido efetivamente pago, bastando constar no documento fiscal a sua escrituração, o que, por si, já é suficiente para o contribuinte adquirente ter garantido o seu direito ao crédito.

Não obstante, ainda que fosse admitida a aplicação das sanções veiculadas no dispositivo supra, não haveria que se falar em aplicação simultânea, ou cumulativa, dos incisos I e II, eis que o primeiro (o pagamento do imposto no Estado de origem, consequência da ineficácia do crédito fiscal) exclui o segundo (o estorno do crédito no Estado de destino) por absoluta inadequação, pois, se o tributo foi pago no Estado de origem, o direito ao crédito torna-se indiscutível.

Por esse motivo, entende-se pela não recepção do art. 8º da lei complementar 24/75 pela Carta de 1988, uma vez que tal dispositivo, em sua literalidade, levaria ao entendimento equivocado de que, independentemente de julgamento por parte do STF, as normas relativas à concessão de benefícios fiscais não teriam presunção de validade e o princípio da não-cumulatividade do ICMS não deveria ser observado.

Corroborando este entendimento, é a lição do ilustre Prof. Paulo de Barros Carvalho, in verbis [2]:

“(…) Além do mais, cumpre observar que, considerado o caráter nacional do ICMS e o imperativo princípio da não-cumulatividade desse imposto, a anulação dos efeitos da norma jurídica concessiva de benefício fiscal teria como resultado restabelecer a exigência dos valores dispensados ou devolvidos pela Administração Pública (Estado de origem) ao contribuinte, e não alternativa ou cumulativamente, implicar a anulação do crédito de ICMS e a exigência do imposto pelo Estado de destino. Não podemos esquecer que o Texto Constitucional atribui ao legislador complementar a competência para fixar a forma de concessão das isenções, incentivos e benefícios fiscais, sem, no entanto, permitir a determinação de sanções à sua inobservância, muito menos quando a sanção estabelecida acarreta a anulação de créditos, em manifesta violação ao princípio da não cumulatividade, e possibilita a exigência do ICMS pelo Estado ou Distrito Federal de destino da mercadoria ou serviço, pessoa política que, nos termos da Constituição da República, não é competente para tanto. Esse é o motivo pelo qual entendo que o art. 8º da Lei Complementar n. 24/75 não foi recepcionado pela Carta de 1988 (…).”

A exemplo dessa atuação do Fisco Estadual, a Fazenda de São Paulo expediu o Comunicado CAT-36 de 29/07/2004, publicado em 31/07/2004, estabelecendo a impossibilidade de aproveitamento dos créditos de ICMS obtidos em operações cujos benefícios foram concedidos sem a celebração de convênio, nos termos da LC 24/75 [3].

Anote-se, aliás, que, malgrado tratar-se de flagrante violação ao princípio da não-cumulatividade, ao assim agir, o Fisco Estadual acaba também por incorrer em usurpação de competência jurisdicional, eis que, cabe à Suprema Corte julgar se tal benefício é ou não inconstitucional.

Assim, ao invés de, unilateralmente, o Estado de destino glosar os créditos advindos de operações anteriores, deve, pelo contrário, valer-se de medida judicial cabível, submetendo a questão à apreciação do Poder Judiciário, pois, em nosso ordenamento jurídico, é vedado a autotutela.

Ademais, a Constituição garante que não será excluída do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito.

Destarte, verifica-se que, diante de tal cenário, o Estado de destino age em confronto ao princípio da não-cumulatividade, usurpa a competência do judiciário, violando expressos comandos constitucionais, além de causar uma enorme instabilidade ao contribuinte, que é submetido a um estado de incerteza, que nada mais é que uma insegurança jurídica.

Não obstante, a Carta da República faz objeção ao crédito de ICMS apenas em duas hipóteses, que são os casos de isenção e não-incidência (art. 155, § 2º, II), advertindo ainda a possibilidade de legislação em contrário.

Ou seja, conclui-se que pode a legislação ordinária conceder o crédito e não vedá-lo, já que a vedação já está expressa no dispositivo constitucional supracitado.

Portanto, mostra-se totalmente descabida a aplicabilidade do disposto no art. 8º da Lei Complementar 24/75, uma vez que o referido artigo viola diversos princípios constitucionais, o que justifica a sua não recepção pela CF/88.

3. O posicionamento do STF e o princípio da segurança jurídica

Como não podia ser diferente, o cerne da Guerra Fiscal, isto é, a concessão de benefícios fiscais em ICMS à revelia do CONFAZ, chegou ao Supremo Tribunal Federal, que consolidou a inconstitucionalidade de tal procedimento por violar o artigo 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal.

A propósito, há uma proposta de súmula vinculante tramitando na Suprema Corte, cuja relatoria é do Ministro Gilmar Mendes, rezando justamente a inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos ao arrepio do que dispõe o comando normativo constitucional supracitado [4].

Não obstante o firme posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que se refere à inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos sem o consenso de todos os entes federados mais o Distrito Federal, é preciso que o STF, agora, posicione-se no sentido de dizer se o benefício fiscal já concedido e usufruído deve ser pago ou se a situação consolidada no passado permanecerá no seu status quo.

Melhor dizendo, mister se faz que a Suprema Corte module os efeitos de sua decisão, de modo a dizer se os efeitos retroagirão, anulando-se os benefícios fiscais já concedidos desde o início de sua fruição ou se valerá apenas para o futuro, consolidando-se o que no passado fora determinado, opção esta que nos parece mais viável em homenagem ao princípio da segurança jurídica.

Regra geral, as decisões de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo possuem efeito ex tunc, que é a decretação de nulidade da lei ou ato normativo desde o início, anulando-se, por conseguinte, todos os seus efeitos.

Contudo, conforme dito, em homenagem ao sobreprincípio da segurança jurídica, urge que o Supremo prospecte os efeitos do verbete vinculante, com vistas a garantir observância a um dos princípios estruturais do Estado Democrático de Direito [5].

O princípio da segurança jurídica visa garantir aos cidadãos estabilidade, certeza de que não haverá surpresa nas normas reguladoras de suas condutas em sociedade. O que poderia fazer o Supremo Tribunal, e assim cremos que o fará, é consolidar os fatos pretéritos, não prejudicando o contribuinte.

Segundo o magistério do eminente jurista Humberto Ávila, o princípio da segurança jurídica é dotado de três aspectos, a saber [6]:

a) cognoscibilidade: deve ser possível ao cidadão ter conhecimento das normas reguladoras de sua conduta;

b) confiabilidade: ao cidadão deve ser possível confiar no direito, de modo a ser preservado o que já se conquistou no passado; e

c) calculabilidade: é a previsibilidade das consequências dos atos praticados e o tempo no qual essas consequências incidirão.

Tais aspectos compõem um sistema jurídico inteligível.

Para melhor compreensão, tracemos alguns aspectos do princípio da proteção da confiança, o qual antecede o momento de ação do princípio da segurança jurídica.

Ainda de acordo com o ilustre jurista, a proteção da confiança consiste em três campos, quais sejam:

a) base da confiança: deve haver uma base de confiança, in casu, a exemplo, a validade do benefício fiscal. Isso porque, a princípio, não há motivo por parte do contribuinte para desconfiança de um ato normativo ato assinado pelo Governador do Estado, pelo Secretário da Fazenda e pelo Chefe da Fiscalização;

b) confiança: o contribuinte deve ter exercido a sua confiança, de modo que ela venha se materializar através dos empreendimentos, da atuação de sua atividade empresarial, etc.; e

c) confiança frustrada: mudança do comportamento Estatal em relação a um comportamento anteriormente adotado. Mudança de entendimento, interpretação, etc.

Aí entra em cena o princípio da segurança jurídica.

Para concluir os ensinamentos do festejado professor, o princípio da proteção da confiança pode ser descrito nos seguintes termos [7]:

“(…) O chamado princípio da proteção da confiança serve de instrumento de defesa de interesses individuais nos casos em que o particular, não sendo protegido pelo direito adquirido, em qualquer âmbito, inclusive no tributário, exerce a sua liberdade, em maior ou menor medida, confiando na validade (ou na aparência de validade) de um conhecido ato normativo geral ou individual e, posteriormente, tem a sua confiança frustrada pela descontinuidade da sua vigência ou dos seus efeitos, quer por simples mudança, quer por revogação ou anulação, quer, ainda, por declaração de sua invalidade. Por isso, o princípio da proteção da confiança envolve, para a sua configuração, a existência de (a) uma base da confiança, de (b) uma confiança nessa base, do (c) exercício da referida confiança na base que a gerou e da (d) sua frustração por ato posterior e contraditório do Poder Público (…).”

Desta feita, cumpre-nos trazer ao campo da indagação como ocorre a frustração da confiança na Guerra Fiscal, ou melhor, quando e como é acionado o princípio da segurança jurídica?

Em apertada síntese, conjecturemos uma situação: imagine-se um contribuinte, empresário, na busca legítima de lucros, procurando alternativas de aumentar os seus ganhos frente a diversos obstáculos árduos, a exemplo, a nossa carga tributária.

De repente esse contribuinte se vê diante de um Estado da Federação lhe acenando com benefícios fiscais notoriamente vantajosos, de modo a possibilitar a consecução da sua atividade empresarial com o tão perseguido aumento de lucros.

Para tanto, como condição, sem querer maçá-los com obviedades, o contribuinte deverá instalar-se no território do Estado concedente do benefício, que na maioria das vezes é concedido de forma onerosa, mediante uma contraprestação revestida de uma série de metas a serem alcançadas pelo empresário naquela determinada região, como a geração de determinado número de empregos, desenvolvimento tecnológico, etc. [8].

Pois bem. É notório que, até aqui, as duas partes se beneficiam do que fora acordado. O contribuinte, porque consegue aumentar os seus ganhos reduzindo a sua carga tributária. O Estado, mesmo abrindo mão de uma parcela em sua arrecadação no que se refere às atividades exercidas pelo contribuinte beneficiado, ganha, por outro lado, muito mais em razão da geração de empregos e consequente aquecimento de sua economia regional.

Até aqui, tem-se que o acordo foi justo para ambas as partes.

Agora imaginemos que o contribuinte em questão estava instalado em São Paulo, tendo que transferir-se ao Estado concedente do benefício, que em suposição, é o Estado da Bahia. Teve que transferir todo o seu maquinário, pessoal, contratar novos funcionários e enfrentar outros mais desdobramentos decorrentes dessa transferência.

Passa-se alguns anos, o contribuinte atinge os requisitos estabelecidos pelo Estado concedente, emprega pessoas, desenvolve o Estado tecnologicamente, fomenta a economia e, de repente, vê-se diante de uma decisão judicial que declarou inconstitucional o seu benefício fiscal. Não bastando isso, nessa decisão é declarado a nulidade do ato normativo que concedeu o benefício em inobservância do artigo 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88, de modo que o contribuinte deverá pagar ao Estado concedente tudo o que lhe fora concedido a título de benefício fiscal.

Ora, ainda que tal situação hipotética fosse contada a um leigo em matéria jurídica, este, evidentemente apontaria no sentido de que a devolução dos valores concedidos a título de benefício fiscal é de uma injustiça sem tamanho.

Nesse contexto, é flagrante a violação ao princípio da boa-fé, de tal sorte que a referida decisão faz exalar uma vergonhosa imoralidade por parte do Fisco, dotado de sua incontrolável voracidade fiscal.

Com efeito, é o mesmo que admitir ao Fisco se valer de sua própria torpeza, uma vez que o Estado de origem, ao cometer uma ilicitude concedendo um benefício fiscal sem a ratificação de convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, não pode beneficiar-se dessa mesma ilicitude por ele ocasionada.

Exemplificando, aquele que cria situações de maneira ilícita, não pode usufruir dos benefícios causados pela sua ilicitude, sob pena de estar-se incentivando a imoralidade.

Ou seja, temos que, para alcançar um resultado “Y”, o Estado deve agir de forma “X”. Logo, diante de uma atuação “X”, o resultado só pode ser “Y”. Mas diante desse cenário, vemos que, mesmo agindo de forma diversa, o Estado obtém o resultado “Y”. Ou seja, o Estado age de forma “Z”, e obtém igualmente um resultado “Y”.

Para melhor compreensão, para alcançar determinado resultado (auferir receita), o Estado deve agir em conformidade com a Constituição. Porém, ao decretar a nulidade do ato concedente do benefício fiscal desde o início, estar-se-ia admitindo que, ao agir contrariamente à Constituição Federal, o Estado também alcance o mesmo resultado (auferir receita). E isto é totalmente atentatório ao conceito binário de certo e errado.

Deveras, não é porque a norma ou ato normativo fora declarado inconstitucional que os seus efeitos devem ser ignorados. Ao gozar de um benefício fiscal, o contribuinte exerceu um direito fundamental, gerou efeitos que o beneficiaram como também beneficiaram o Estado concedente. É papel fundamental do Estado zelar pela segurança jurídica dessa relação.

De outro lado, indagações mais do que indevidas surgem no sentido de que: não deveria o contribuinte, antes de aceitar o benefício, verificar a sua constitucionalidade?

Ora, sequer é razoável conferir ao contribuinte essa obrigação. Até porque, não é dado ao contribuinte o poder de polícia, de fiscalização, nem mesmo o poder de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Tal poder-dever é atribuído somente à Administração Pública, nos termos do artigo 78, do Código Tributário Nacional.

Na verdade, cabe ao contribuinte apenas confiar na validade de um ato assinado, muitas vezes, pelo Governador do Estado, pelo Secretário da Fazenda Estadual e pelo Chefe da Fiscalização.

Outrossim, admitindo-se a retroação da decretação de nulidade, haveria apenas como restituir os valores concedidos a título de benefícios fiscais, mas não haveria como assegurar ao contribuinte o status quo ante. O que fazer? Demitir os cidadãos empregados? Desestimular a economia regional?

Veja-se uma série de objeções que se impõem a essa situação hipotética de retroação, de nulidade desde o início. Por tudo isso, é forçoso crer que o STF decidirá pela manutenção dos fatos pretéritos, modulando os efeitos da decisão apenas para o futuro.

Tem-se ainda nessa Guerra Fiscal a figura de outro contribuinte, o contribuinte que, mais alheio ainda à situação, compra a mercadoria e a recebe no Estado de destino com a documentação fiscal, na qual é escriturado o crédito correspondente ao valor concedido a título de benefício fiscal no Estado de origem.

Pelas mesmas razões acima expostas, não é dever do contribuinte-adquirente fiscalizar a concessão do benefício no Estado de origem ou decretar a sua inconstitucionalidade.

Nem por isso pode o Estado de destino, com espeque no art. 8º da Lei Complementar nº 24/75, glosar o crédito do respectivo contribuinte sem a observância do devido processo legal, a decretação de nulidade pelo Supremo Tribunal Federal.

Ainda que não fosse por isso, não haveria motivos para a glosa de créditos em razão da obrigatória observância ao princípio da não-cumulatividade.

E a respeito do poder de fiscalização não conferido ao contribuinte e do princípio da não-cumulatividade, vale transcrever um trecho da doutrina do Mestre José Eduardo Soares de Melo, in verbis [9]:

“(…) Questões circunscritas ao contribuinte originário, às quais os adquirentes dos bens, ou tomadores de serviços, são pessoas estranhas, e nem mesmo têm acesso – porque não lhes cabe o poder de polícia, de cunho fiscalizatório –, competem exclusivamente ao poder público (…) Mediante a aquisição de um bem industrial, comercial ou determinado tipo de serviço, nasce para o empresário o direito à não-cumulatividade tributária, operacionalizada por um crédito fiscal. Concretizando tal negócio jurídico, corporificado em nota fiscal (sempre que possível), o contratado pode escriturar os respectivos créditos de ICMS, independentemente da situação empresarial e financeira em que se encontra o fornecedor dos bens e serviços (…).”
 
O princípio constitucional da não-cumulatividade é princípio essencial à sistemática do ICMS, e a Constituição já cuidou de traçar as suas exceções, de modo que não pode ser restringindo nem mesmo por Emenda Constitucional, tendo em vista tratar-se direito individual do cidadão, consistindo em verdadeira cláusula pétrea.

Ademais, sobre a impossibilidade de glosa de créditos relativos ao ICMS pelo Estado de destino, bem como a necessidade de ADIn para se discutir a inconstitucionalidade do benefício concedido à revelia do CONFAZ, vale transcrever o seguinte julgado, da lavra do eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Castro Meira:
 
“(…) TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS. OPERAÇÃO INTERESTADUAL. CONCESSÃO DE CRÉDITO PRESUMIDO AO FORNECEDOR NA ORIGEM. PRETENSÃO DO ESTADO DE DESTINO DE LIMITAR O CREDITAMENTO DO IMPOSTO AO VALOR EFETIVAMENTE PAGO NA ORIGEM. DESCONSIDERAÇÃO DO BENEFÍCIO FISCAL CONCEDIDO. IMPOSSIBILIDADE. COMPENSAÇÃO. LEI. AUTORIZAÇÃO. AUSÊNCIA.1. O mandamus foi impetrado contra ato do Secretário de Estado da Fazenda, com o objetivo de afastar a exigência do Fisco de, com base no Decreto Estadual 4.504/04, limitar o creditamento de ICMS, em decorrência de incentivos ou benefícios fiscais concedidos pelo Estado de origem da mercadoria. Deve-se destacar que a discussão travada na lide não diz respeito à regularidade do crédito concedido na origem, mas à possibilidade de o ente estatal de destino obstar diretamente esse creditamento, autuando o contribuinte que agiu de acordo com a legislação do outro ente federativo. 2. Admite-se o mandado de segurança quando a impugnação não se dirige contra a lei em tese, mas contra os efeitos concretos derivados do ato normativo, o qual restringe o direito do contribuinte de efetuar o creditamento do ICMS. 3. Na hipótese, o Secretário de Estado da Fazenda possui legitimidade para figurar no feito, porquanto, nos termos do art. 22 da Lei Complementar Estadual nº 14/92, compete-lhe proceder à arrecadação e à fiscalização da receita tributária, atribuições que se relacionam diretamente com a finalidade buscada na ação mandamental. 4. O benefício de crédito presumido não impede o creditamento pela entrada nem impõe o estorno do crédito já escriturado quando da saída da mercadoria, pois tanto a CF/88 (art. 155, § 2º, II) quanto a LC 87/96 (art. 20, § 1º) somente restringem o direito de crédito quando há isenção ou não-tributação na entrada ou na saída, o que deve ser interpretado restritivamente. Dessa feita, o creditamento do ICMS em regime de não-cumulatividade prescinde do efetivo recolhimento na etapa anterior, bastando que haja a incidência tributária. 5. Se outro Estado da Federação concede benefícios fiscais de ICMS sem a observância das regras da LC 24/75 e sem autorização do CONFAZ, cabe ao Estado lesado obter junto ao Supremo, por meio de ADIn, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo de outro Estado – como aliás foi feito pelos Estados de São Paulo e Amazonas nos precedentes citados pela Ministra Eliana Calmon – e não simplesmente autuar os contribuintes sediados em seu território. Vide ainda: ADI 3312, Rel. Min. Eros Grau. DJ. 09.03.07 e ADI3389/MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa. DJ. 23.06.06).24: ADI 33126. A compensação tributária submete-se ao princípio da legalidade estrita. Dessa feita, não havendo lei autorizativa editada pelo ente tributante, revela-se incabível a utilização desse instituto. Precedentes. 7. Recurso ordinário em mandado de segurança provido em parte (…).” (31714 MT 2010/0044507-3, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 03/05/2011, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/09/2011)

Desse modo, resta saber quem será o responsável pelo ICMS não pago, de modo que, consoante os argumentos trazidos à baila, amparados no princípio da segurança jurídica e demais, não pode ser nenhum dos contribuintes envolvidos nesse campo minado da Guerra Fiscal, nem mesmo os Estados-membros, eis que não são sujeitos passivos de ICMS.

4. Conclusão

Portanto, não tendo um responsável pelos valores não recolhidos ao erário, resta a alternativa da manutenção da situação consolidada no passado pela concessão dos benefícios fiscais, de modo a se esperar que o Supremo Tribunal Federal prospecte os efeitos da iminente súmula vinculante nº 69, com o fito de se preservar a segurança jurídica das relações num Estado Democrático de Direito.

Notas

[1] MARTINS, Ives Gandra da Silva, 2012, p. 4;

[2] CARVALHO, 2012, p. 72-73;

[3] MELO, José Eduardo Soares de, 2006, p. 305;

[4] Vide acompanhamento processual no sítio do STF. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4222438>] CARVALHO, Paulo de Barros. Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributária. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: DP, n. 16, p. 79-103. 2007, p. 84;

[5

[6] ÁVILA, Humberto Bergmann, 2011, p. 110;

[7] ÁVILA, 2011, p. 360;

[8] A exemplo de benefícios que exigem do contribuinte uma contrapartida, temos o (i) Programa de Desenvolvimento Industrial e de Integração Econômica do Estado da Bahia – Desenvolve, criado pela Lei. 7.980/2002; o (ii) Programa Pró-Emprego de Santa Catarina, oriundo da lei 13.992/2007; o (iii) Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias – FUNDAP, proveniente da lei 2.508/1970; dentre outros;

[9] MELO, José Eduardo Soares de, 1996, p. 161-162.

 

Rafael Santiago Araujo

Advogado. Graduado pela Universidade Cruzeiro do Sul, em São Paulo.

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