A extrafiscalidade na transação federal

André Luiz Fonseca Fernandes

Está em curso no Brasil uma vasta releitura do direito fundamental de acesso à justiça (artigo 5º, XXXV da CR/88). Uma releitura influenciada pela chamada “terceira onda de acesso à justiça”, descrita no “Projeto de Florença”.

Trata-se do projeto capitaneado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth na década de 1970 e que produziu importante relatório (CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988). A premissa deste projeto estava fundada na dimensão social do Direito, na tentativa de buscar respostas para graves problemas e crises:

“(…) derivados das profundas transformações das sociedades industriais e pós-industriais modernas, nas quais o pedido de Justiça adquire um sentido cada vez mais decisivo para multidões cada vez mais vastas; de petição de igualdade não somente formal, senão real e efetiva igualdade de possibilidades, de desenvolvimento da pessoa e igual dignidade do homem” [1].
É, efetivamente, a partir desta premissa que se percebe a ampliação do alcance do direito fundamental de acesso à justiça na área tributária, sendo que o exemplo mais recente está na introdução de elemento relevante na autocomposição tributária federal: a observância de aspectos ambientais, sociais e de governança (ESG — Environmental, Social e Governance) nas transações.

Tais aspectos ambientais, sociais e de governança estão relacionados com os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) [2], oriundos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável adotada pela ONU em 2015. Trata-se de exemplo de soft law que refere um dever de proteção de direitos humanos a partir da perspectiva de desenvolvimento sustentável, abrangendo as dimensões econômica, social e ambiental. Tal agenda é composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que englobam, por sua vez, 169 metas [3].

Embora os referidos aspectos já estivessem presentes em algumas transações federais individuais — de modo mais específico, na forma de cláusula de projeto que prevê a transferência de tecnologia, assistência técnica, suporte gerencial e apoio financeiro do devedor para o desenvolvimento de cultura agrícola sustentável em prol de comunidade quilombola e, de modo mais geral, na forma de cláusula que, entre outras medidas, determina que o contribuinte deve respeitar o direito de livre associação e negociação coletiva de seus empregados e proteger/preservar o meio ambiente, a partir de práticas como a realização de coprocessamento (para substituir insumos e combustíveis por resíduos oriundos de outras empresas) e a recuperação do manejo de minas — a recente Portaria PGFN 1.241/23 deu um passo além: ela incluiu, na Portaria PGFN 6.757/22 (transação na cobrança), a necessidade de observar e perseguir, sempre que possível, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) (Resolução A/Res 70/1, de 25.9.15, da Assembleia Geral da ONU, subscrita pelo Brasil) na celebração das transações, “devendo-se buscar efeitos positivos a partir das concessões recíprocas que decorrerem do negócio” (artigo 18-A).

Este uso ampliado da discricionariedade técnica também assinala que acordos de transação individual indiquem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável neles envolvidos (artigo 18-B da Portaria PGFN 6.757/22, com a redação da Portaria PGFN 1.241/23).

A iniciativa tem grande mérito, mas também traz alguns problemas, que decorrem da renovada relação entre fiscalidade x extrafiscalidade no campo da autocomposição federal.

Se, na esfera da tributação, a doutrina tradicional vê a fiscalidade como o uso do instrumental tributário para buscar arrecadação, sem levar em conta outras finalidades, e a extrafiscalidade como a utilização do referido instrumental para buscar objetivos que não se confundem com a mera arrecadação [4], na área da autocomposição estas acepções ganham novas luzes.

Na transação na cobrança, a materialização da fiscalidade vinha e vem sendo predominante na negociação e nas concessões recíprocas entre administração tributária e sujeito passivo. Embora o art. 3º da Portaria PGFN 6.757/22 enumere outros objetivos para o instituto, o fato é que sua tônica reside, como se lê na Exposição de Motivos da Medida Provisória 899/19 (origem da Lei 13.988/20), na “ótica do interesse da arrecadação e do interesse público”.

Tal modalidade de transação atua, assim, como instrumento de reforço da fiscalidade: ela “(…) transporta o princípio da capacidade contributiva para a fase de cobrança e o aplica com elevada intensidade mesmo após a constituição do crédito” [5].

Transacionar a partir de normas extrafiscais [6] que perseguem os ODSs constitui, de seu lado, um reforço da extrafiscalidade. Se nas normas tributárias extrafiscais a finalidade que justifica a sua existência não é, em maior medida, a arrecadação, mas sim a promoção de finalidade econômica, social ou política [7], o seu emprego em regime transacional suscita a promoção destas finalidades: a negociação e reorganização de débitos tributários também assumem funções extrafiscais na transação na cobrança [8].

Isto traz, contudo, problemas que não podem ser desconsiderados. Um dos mais importantes é a necessidade de controle da extrafiscalidade na transação, tanto no campo da validade (porque a extrafiscalidade desiguala contribuintes não com base na capacidade contributiva, mas a partir da finalidade pública que justifica a sua existência) quanto no da eficácia (porque a norma extrafiscal deve ser apta a gerar os efeitos pretendidos) [9].

Quanto ao controle de validade, é importante notar que a PGFN buscou um foco específico para adoção de princípios de ESG no regime transacional: “Aspectos relacionados a prazos e garantias são exemplos de benefícios que as empresas que empreendem iniciativas capazes de trazer ganhos socioambientais para o país podem desempenhar”. Esta desigualação de sujeitos passivos na transação — na definição de prazos de pagamento e garantias, por exemplo — a partir dos ganhos socioambientais almejados demanda um controle de proporcionalidade para evidenciar, ao menos, se há maiores benefícios ou malefícios tanto em relação às finalidades extrafiscais buscadas quanto em relação ao próprio regime transacional.

Não está claro como este controle de proporcionalidade é ou será feito em cada transação na qual esteja envolvido um ou mais ODSs. E, sobretudo, não está claro como será feito o controle de eficácia destas transações, de modo a verificar se são, ou não, aptas a gerar o efeito pretendido e, se não o forem, a indicar os reflexos na transação celebrada que, em tese, poderiam envolver até mesmo a sua rescisão.

Problemas relevantes, mas não insolúveis. A ampliação do uso da discricionariedade técnica segue o perfil que vem sendo conferindo à transação mas há, neste caso, déficit de positivação. Cabe à PGFN resolvê-lo e regulamentar pontos indispensáveis para aproximar ainda mais o sistema transacional federal da dimensão social do direito inerente ao acesso à justiça.

[1] CAPPELLETTI, Mauro. Processo, Ideologias e Sociedade. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, pp. 383/384.

[2] Elidie Palma Bifano esclarece: “Os critérios ESG, a despeito de serem discutidos no exterior desde 2004 com o objetivo de introduzir princípios de investimento responsável, só mais recentemente chegaram ao Brasil e para os stakeholders das empresas eles são índice de solidez, melhor reputação e, também, maior resistência em meio às incertezas. Os critérios ESG estão relacionados com os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estratégia dos negócios que reúne desafios e vulnerabilidades das entidades.” ((BIFANO, Elidie Palma. A reforma tributária deveria considerar os princípios do ESG/Tributação? Conjur, 27 de abril de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-27/consultor-tributario-reforma-tributaria-deveria-considerar-principios-esg-tributacao; acesso em: 26 nov. 2023).

[3] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9ª. ed. rev. e amp. São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 364. Estão entre estes Objetivos a erradicação da pobreza extrema, a fome zero, a igualdade de gênero, a redução da desigualdade e a concretização do acesso à justiça.

[4] Cf., por exemplo, COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 45.

[5] GROGNET, João Henrique Chauffaille e DIAS, Theo Lucas Borges de Lima. A Transação Tributária Federal como Ferramenta de Transformação Social. In: BOSSA, Gisele Barra et al. (orgs.). Cooperative Compliance e Medidas de Redução do Contencioso Tributário: das Boas Práticas à Criminalização de Condutas. São Paulo: Almedina, 2022. p. 350.

[6] Cf. POMPERMAIER, Cleide Regina Furlani. A Utilização da Extrafiscalidade no Combate à Desinformação. Valor, 1 de junho de 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/a-utilizacao-da-extrafiscalidade-no-combate-a-desinformacao.ghtml. Acesso em: 28 nov. 2023.

[7] LEÃO, Martha. Extrafiscalidade: entre Finalidade e Controle.In: LOBATO, Valter de Souza (coord.). Extrafiscalidade: Conceito, Interpretação, Limites e Alcance. Belo Horizonte: Forum, 2017, p. 173.

[8] FERNANDES, Edison. Covenants ESG nas Transações Tributárias. Fio da Meada, 21 de novembro de 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2023/11/covenants-esg-nas-transacoes-tributarias.ghtml. Acesso em: 28 nov. 2023.

[9] LEÃO, Martha. Ibid, pp. 178 a 185.

André Luiz Fonseca Fernandes

Sócio do escritório Alcides Jorge Costa Advogados Associados, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, membro do Grupo de Pesquisa "Métodos Alternativos de Resolução de Disputa em Matéria Tributária" do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito-SP e conselheiro do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária.

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