A correlação entre o teto de gastos e o orçamento secreto
Fernando Facury Scaff
Nas monarquias diz-se que o trono jamais fica vago, pois, quando um rei morre, imediatamente outro ocupa o lugar — por isso a máxima: O rei morreu! Viva o rei. O poder não admite vácuo.
O teto de gastos foi criado através da Emenda Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016, e, a partir de então, o debate sobre as finanças públicas brasileiras passou a ser dominado por ele. Em tese, tudo é feito para respeitar o teto, e, invariavelmente, se acha um jeito de criar goteiras no teto – a tal ponto que ele cumpre hoje muito mais uma função mítica ou simbólica, do que a efetiva função de conter os gastos.
Tal como foi desenhado, entendo que o teto de gastos foi um erro. Uso uma metáfora para expor a ideia. Imaginemos o teto de gastos aplicado a uma família composta por um casal e dois filhos, com renda total de R$ 3.000 e gastos de R$ 1.500. Passados alguns anos, os filhos conseguem empregos e a renda familiar cresce para R$ 6.000, porém, em face do teto de gastos, mesmo com o acréscimo de renda, essa família só poderá gastar R$ 1.500. Em adendo, suponhamos que um dos membros adoeça e necessite de mais medicamentos e até da assistência de cuidadores — o teto de gasto será o mesmo, de R$ 1.500, a despeito do incremento das despesas com saúde.
Esse exemplo demonstra que o teto de gastos é um freio inadequado, pois impede que despesas sejam realizadas, mesmo ocorrendo (1) aumento da renda, ou (2), quando há necessidade de aumentar gastos básicos, como com saúde.
A sensação de erro na arquitetura do Teto aumenta quando se lê Mansueto de Almeida afirmar que “o teto de gastos foi elaborado em menos de 30 dias”. Seguramente a pressa é inimiga até mesmo da razoabilidade.
Utilizando o levantamento efetuado por Élida Graziane Pinto constata-se que foram diversas as alterações no teto.
A primeira alteração afastou do teto as transferências interfederativas e as despesas correlatas no âmbito da União, decorrentes da arrecadação de contrato de cessão onerosa de petróleo (EC 102/19, que acrescentou o inciso V ao §6º, do artigo 107, ADCT).
A segunda decorreu do Estado de Emergência estabelecido pela EC 106/20, com medidas visando o enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia, cujos efeitos duraram até o final do ano de 2020.
A terceira, fruto da EC 108/20, afastou as despesas referentes ao Fundeb.
A quarta decorreu da EC 109/21, que além de ter incorporado ao texto permanente diversas medidas financeiras previstas de forma temporária pela EC 106/20, também furou o teto, afastando o valor de R$ 44 bilhões para o pagamento de auxílio emergencial, previsto em seu artigo 3º.
A quinta foi a EC 113/21, que mudou a regra de cálculo do teto abrindo um espaço orçamentário ao empurrar sua apuração em vários meses (artigo 107, §1º, I, ADCT) e revogando o limite de apenas uma alteração nas regras do teto por mandato presidencial (artigo 108, ADCT).
A sexta foi a EC 114/21, que retirou do teto o montante dos precatórios federais (artigo 107-A, ADCT) e também afastou do teto em 2022 os gastos com “a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza” (artigo 118, ADCT), criando o Auxílio Brasil.
A sétima foi a EC nº 123/22, que reintroduziu em julho de 2022 o “estado de emergência decorrente de elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes”, turbinando o Auxílio Brasil.
A oitava alteração está na porta, e se constitui na PEC da Transição, que visa corrigir os erros ocasionados pelo governo Bolsonaro na elaboração do Projeto de Lei Orçamentária para 2023.
Nem vou tratar do espinhoso tema das renúncias fiscais, que são uma espécie de drible no teto, pois este só computa o que efetivamente sai dos cofres públicos (a despesa) e não o que deixa de entrar no Tesouro Nacional (as renúncias fiscais).
Enfim, com tantas goteiras no teto, para que ele serve atualmente? Seria possível dizer que o teto ao menos conteve a expansão dos gastos com pessoal? Também não. Isso ocorreu por conta do artigo 8º da Lei Complementar 173/20, que impediu esse tipo de gastos até final de 2021.
Hoje a função do teto é muito mais simbólica do que a efetiva contenção dos gastos públicos. O presidente que quiser gastar mais do que é estabelecido pelo teto terá que negociar previamente com o Congresso para sua ultrapassagem, como foi feito pelo governo Bolsonaro desde a EC 102/19. A consequência disso foi a instituição pelo Congresso do orçamento secreto, que segue a velha máxima de São Francisco, que “é dando que se recebe”, muito utilizada durante a Constituinte pelo centrão, então liderado pelo deputado Roberto Cardoso Alves, embora se comente que também o trancamento dos pedidos de impeachment devam ser levados em conta.
Observe-se que o teto distorce vastamente a transparência das finanças públicas brasileiras, pois, conforme se vislumbra, o governo Bolsonaro cumprirá o teto em 2022, porém à custa de todas as alterações constitucionais acima referidas, de as universidades federais permanecerem à míngua de recursos, do pagamento das bolsas pela Capes só ter ocorrido depois de muita pressão da sociedade, do sistema de aposentadoria e pensões ter sido artificialmente represado, dentre outras mazelas — sempre para respeitar o teto. Tudo indica que haverá até mesmo superavit primário, porém o déficit nominal permanecerá enorme, sem falar do déficit social.
Flávio Giambiagi defende a manutenção do teto, para “preservar a noção de limite” e por que demonstra a existência de “incentivos perversos”, o que aponta para a função simbólica aqui referida. Alega que a “ideia de que o teto fracassou é errada”, pois em 2022 “o gasto deverá ser de menos de 19% do PIB”, contra 20% no período anterior, bem como o déficit “poderá ser entre 7% e 8% do PIB”. Ao final, faz uma proposta de redesenhar o teto, o que comprova a inadequação do desenho original.
Marcos Lisboa também elogia o teto, apontando como seu subproduto a redução dos juros para cerca de 5% ao ano, sendo que, segundo ele, em face da pandemia, os gastos expandiram e os juros dispararam. Parece-me que nesta análise foram isoladas diversas variáveis, tendo sido feita uma “conta de chegada”, isto é, o autor buscou onde queria chegar e descartou as demais causas do fato observado.
Sabe-se que a ideia central em 2016 era que, com o freio nos gastos, a União fizesse uma reforma administrativa visando reduzi-los, porém, como se sabe, isso não ocorreu e apenas restou o teto.
Seria mais adequado acabar com o teto e validar a condução responsável do orçamento e de seu equilíbrio plurianual para as relações entre Executivo e Legislativo, sem a existência dessa trava simbólica, que nos gerou o orçamento secreto e dificulta as relações políticas. A bem da verdade e da transparência financeiras, penso ser necessário (1) passarmos a buscar superávits nominais e não superávits primários (para entender a diferença, ler aqui; (2) abandonar a regra do teto de gastos, como propôs o senador José Serra em sua proposta de PEC da Transição, a qual não foi devidamente considerada e (3) centrar a atenção em uma verdadeira reforma administrativa, que parece ter sido esquecida. Tudo isso (4) antes de fazer andar a reforma tributária (a que está em trâmite no Congresso possui mais de 117 páginas de alterações substanciais e fortíssimos impactos na economia).
Há um livro coordenado por Eric Hobsbawm, A invenção das tradições, no qual é demonstrado como algumas são recentes, embora apresentadas como ancestrais e cumprem funções simbólicas na sociedade. O teto de gastos faz parte desse tipo de invenção de uma tradição, e, hoje, cumpre apenas uma função simbólica — será que precisamos de um símbolo que apenas dificulta a vida financeira do país? Parece que estamos repetindo, como nas monarquias: O teto de gastos morreu! Viva o teto de gastos.
Fernando Facury Scaff
professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.