A compensação pela perda dos benefícios fiscais e o papel coadjuvante dos estados-membros

Fernanda Terra

A Lei Complementar 214, de 16 de janeiro de 2025, que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS), e cria o Comitê Gestor do IBS, retira a reforma tributária sobre o consumo, do campo teórico e o traz para o dia a dia do contribuinte.

As idealizações do novo sistema começam a tomar forma para aqueles que estarão na outra ponta do projeto — os pagadores de tributo — já em 2026, seja no cumprimento de novas obrigações acessórias, seja no recolhimento dos novos tributos, ainda que com uma alíquota teste, de 0,1% de IBS e 0,9% de CBS, para aqueles que desavisados não aderirem à nova exigência escritural.

Como se trata de uma nova estrutura tributária, de modo que o próprio legislador previu um período de transição, do qual falaremos em outro momento, nosso estudo inicia-se por um ponto que foi um dos motivadores de toda a reforma: os benefícios fiscais do ICMS.

Com o fim do imposto de competência estadual, foi necessária uma transição para os compromissos firmados entre os estados-membros e os contribuintes na concessão de incentivos fiscais. Afinal, a nova ordem coloca fim a uma política desenvolvimentista praticada no país pelo menos desde 1975, em especial a partir da Lei Complementar nº 24. Nefasta para alguns, benéfica para outros, a política de concessão de benefícios fiscais de ICMS para atração de empreendimentos foi largamente utilizada a ponto de tornar-se autofágica, além de despontar-se como um dos gatilhos que mobilizou o País na implementação da reforma tributária.

Fim de benefícios fiscais

Isto relembrado, analisaremos, doravante, a forma prevista pelo legislador como “porta de saída” e transição para o fim dos benefícios fiscais de ICMS.

A Emenda Constitucional nº 132 de 2023 instituiu o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros Fiscais, para onde a União deverá destinar a partir de 2025 e até 2032, R$ 160 bilhões (valores de 2023 atualizável pelo IPCA).

Este valor será utilizado para compensar a perda gradual dos benefícios fiscais, já que a alíquota do ICMS será reduzida a partir de 2029 em 10%, até 40% em 2032, nos termos do § 1º do artigo 128 do ADCT.

Spacca
As perdas proporcionadas nos benefícios fiscais pela redução da alíquota do ICMS, entre janeiro/2029 até dezembro/2032, poderão ser compensadas através deste fundo. No Livro I, Título VIII, Capítulo VI, artigos 384 ao 404 da LC nº 214/2025, temos os critérios, limites e procedimentos relativos a esta compensação.

O primeiro limite estabelecido é o temporal. Para enquadramento na possibilidade de compensação, o benefício deve ter sido concedido até 31 de maio de 2023, ou que o sujeito passivo tenha migrado para tal regime entre esta data e 20 de dezembro de 2023, desde que o ato concessivo (Tare, por exemplo) tenha sido emitido pela unidade federada até 16 de abril de 2025.

Benefícios onerosos
Ato seguinte, tem-se os benefícios onerosos, concedidos com prazo certo — e sob condição. A própria LC traz a descrição de cada um dos critérios, invocando o artigo 178 do CTN.

A lei afeta o conceito de ato “oneroso” à ideia de repercussão econômica do benefício, definindo esta como sendo a parcela do ICMS apropriada quando se tratar de crédito presumido, outorgado e outros, ou a parcela correspondente ao desconto de ICMS em função da antecipação do pagamento do imposto, cujo prazo havia sido ampliado. Nesta hipótese, caso a ampliação não ocorra em virtude da redução das alíquotas, aferir-se-á o ganho financeiro não realizado corrigido pela Selic.

Importante destacar que para este cálculo devem ser considerados todos os valores de natureza tributária, inclusive créditos escriturais de ICMS que deixaram de ser aproveitados e as contribuições aos fundos estaduais.

Por fim, a LC deixa a possibilidade da Receita implementar outras hipóteses de repercussões econômicas, como:

Prazo certo: estabelecido pela legislação estadual limitado a 31 de dezembro 2032;
Condição: que tenha como finalidade implantação ou expansão de empreendimento vinculado a processos de transformação ou industrialização; gerem empregos ou limitem o preço ou restrinjam a contratação de fornecedores;

As contrapartidas, porém, não podem ser mero cumprimento de deveres obrigatórios para todos os contribuintes, ou via declaração de intenções, sem estabelecimento de ônus ou restrições efetivos; nem mesmo que seja apenas contribuição a fundo estadual, exceto se o Fundo tenha sido constituído até maio/2023 e os recursos sejam empregados integralmente em obras de infraestrutura pública ou em projetos que fomentem a atividade econômica.

Concessão do benefício
Lado outro, a concessão do benefício poderá ser comprovada mediante ato administrativo ou pela prova de enquadramento da norma jurídica.

Ademais, a previsão da compensação feita pelo legislador vem de encontro com a jurisprudência pátria, pois, desde a Súmula 544/STF de 1969, as isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.

Em reforço, segue firme posição do STJ no Julgamento do Recurso Especial nº 1.725.452, julgado pela 1ª Turma do STJ, em 2021, do qual destacamos o seguinte trecho da ementa:

A proteção da confiança no âmbito tributário, uma das faces do princípio da segurança jurídica, prestigiado pelo CTN, deve ser homenageada, sob pena de olvidar-se a boa-fé do contribuinte, que aderiu à política fiscal de inclusão social, concebida mediante condições onerosas para o gozo da alíquota zero de tributos. Consistindo a previsibilidade das consequências decorrentes das condutas adotadas pela Administração outro desdobramento da segurança jurídica, configura ato censurável a prematura extinção do regime de alíquota zero, após sua prorrogação para novos exercícios, os quais, somados aos períodos anteriormente concedidos, ultrapassam uma década de ação indutora do comportamento dos agentes econômicos do setor, inclusive dos varejistas, com vista a beneficiar os consumidores de baixa renda. VI – A açodada cessação da incidência da alíquota zero da Contribuição ao PIS e da Cofins, vulnera o art. 178 do CTN, o qual dá concretude ao princípio da segurança jurídica no âmbito das isenções condicionadas e por prazo certo (Súmula n. 544/STF).

Destarte, é matéria consolidada no Poder Judiciário a necessidade de preservação dos benefícios concedidos de forma onerosa e por prazo certo, com vista à proteção da confiança, segurança jurídica, boa-fé e previsibilidade, tal qual resta resumido no trecho destacado acima, assim, a previsão constitucional e legal de reparação da perda inexorável em virtude da modificação do sistema evita, de antemão, a judicialização do tema.

Neste sentido, caminhou bem a reforma.

Ocorre que, na contramão do que já descrevemos, a legislação faz uma “curva” e determina a competência normativa, analítica, julgadora, disciplinadora, regulamentadora à Receita Federal.

Aduz o legislador complementar que cabe, em caráter privativo, ao auditor-fiscal da Receita, decidir sobre compensação, e, portanto, julgar matéria, que até outrora não era de sua competência. E, mais, caberá a ele também constituir crédito decorrente de indébitos, com previsão de multa, juros e representação para fins penais.

Conclusão
Concluímos relembrando o que deveria ser óbvio: estamos falamos de ICMS, um imposto de competência estadual, portanto, de benefícios fiscais concedidos por governadores como política de atração de empreendimentos econômicos para seus territórios, administrados até aqui pelas Secretarias de Fazenda/Economia das unidades federadas, que, doravante, ficaram com papel coadjuvante e obrigadas a prestar informações à Receita, ou seja, destituídas de toda competência constitucional que existia sobre o imposto, embora, ao fim e ao cabo, em caso de judicialização da matéria figurarão no polo passivo estas, via de seus entes federados.

Fernanda Terra

é advogada tributarista, mestre em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e sócia do Terra e Vecci Advogados.

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